Homenagem ao Dr. João Gomes Mariante |
Saúde Mental - VII Jornada Cyro Martins sobre Saúde Mental |
Blau Souza *
Ao Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins, o agradecimento por esta oportunidade ímpar de privilegiar méritos e amizade. Fernando Neubarth, médico e escritor, gastou algumas páginas com um personagem invulgar: Nato, o breve, que resultou de uma visita a cemitério e da leitura de datas de nascimento e morte. O surpreendente é que o tempo de vida do personagem fora de apenas um dia. Imaginem os senhores o calhamaço que eu teria de ler sobre a vida do doutor João Gomes Mariante, fagueiro e lépido aos noventa e dois anos de idade, se a proporção fosse mantida. E tudo ficaria mais complicado quando a qualidade e a densidade da vida do homenageado aumentassem ainda mais o material a ser lido. Mas, descansem... serei breve.
De boa cepa açoriana e com a adição de sangue germânico por parte da mãe, nasceu o menino João em 26 de fevereiro de 1918 numa casa da Rua Mariante, esquina com a Castro Alves, na Porto Alegre dos tempos em que as crianças nasciam em casa, aparadas pelas parteiras. Por coincidência, nasceu no mesmo dia em que morria seu avô, Guilherme Mariante, o homem a quem a rua homenageia. Boa parte da infância, viveu o pequeno João na estância do pai em local, que não por acaso, se chama Porto Mariante, plantado às margens do Rio Taquari e surgido em tempo de diáspora dos açorianos no Continente de São Pedro. Aprendidas as primeiras letras, fontes múltiplas de conhecimento o prepararam para a aprovação num exame de madureza, o chamado Artigo 100, e que o ligou ao Colégio Pedro II no Rio de Janeiro. Logo Ingressou na Faculdade Fluminense de Medicina, na qual se formou em 1946. Durante o tempo de faculdade também se iniciou no jornalismo. Foi editor da revista Medicina Social e comentarista de saúde pública no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Ao final do curso, era tida como certa a escolha de um colega paulista para falar pelos formandos e o tal doutorando se jactava de ter nascido em São Paulo, a locomotiva que puxava um trem pobre chamado Brasil. João Mariante aproveitou a bravata e lembrou que o maquinista do trem nascera em São Borja e que o carvão, fonte de energia para a locomotiva, vinha de São Jerônimo. Em tempo de escolha, deu João Gomes Mariante como orador da turma. Recém formado, voltou para exercer a medicina no local em que vivera a infância, Porto Mariante. Cheio de ideais, construiu edifício para hospital e que ainda hoje é usado como colégio. Numa quebra de paradigmas, atendia aos chamados num jeep dos usados pelos americanos na segunda guerra mundial e que mandara pintar de vermelho. Com frequência , usava cavalo e, muitas vezes, a balsa ou barcos para atravessar o rio no exercício da profissão. Mas era difícil imaginar que um doutor da família Mariante, filho de grande fazendeiro local, fosse viver da medicina, sustentado pela população, em geral pobre, da localidade em que nascera; permaneceu pouco tempo em Porto Mariante. Transferiu-se para Venâncio Aires e assumiu a chefia do Posto de Higiene da cidade. Sempre com preocupações comunitárias, fundou o Rotary Clube de Venâncio Aires e organizou campanhas e medidas simples e efetivas de higiene e saúde pública como, por exemplo, a distribuição de latões com óleo queimado para combate ao mosquito. Ficaram histórias curiosas deste tempo como médico no interior do Rio Grande do Sul. Uma delas foi quando teve de usar um barco e lhe recomendaram que usasse o do seu Carneiro. Ao fazê-lo, cumprimentou o barqueiro chamando-o pelo nome. Ficou surpreso com a agressividade do homem que o atendeu contrariado e pediu que parasse com o assunto... Na volta do atendimento, até usou outro caminho para evitar aquele barco. Depois, soube que o barqueiro tivera envolvimento com roubo de ovelhas e que por isso fora apelidado de carneiro... Decidido a exercer a medicina em centro maior e com especialização, foi aprovado em concurso para psiquiatra no Rio de Janeiro. Trabalhou e morou no Rio por vários anos, sempre mantendo contato com Porto Alegre, onde foi por algum tempo o representante do Serviço Nacional de Doenças Mentais. Na busca da excelência, resolveu fazer formação psicanalítica em Buenos Aires. Foi e lá permaneceu por oito anos. Não só fez formação como passou a formar gente. Foi professor extraordinário da Universidade John Kennedy e proferiu por duas vezes a aula magna na Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. Ainda na Argentina, foi professor das faculdades de psicologia de Córdoba e de Rosário. Fez muitas conferências e no El Ateneo Sigmund Freud, por exemplo, foi palestrante ao lado de Jorge Luis Borges e de outras personalidades da cultura e da psicanálise da Argentina. Foram tão intensas suas atividades e tão grande o número de amigos conquistados que, ao anunciar sua volta para o Brasil, a despedida durou quarenta e cinco dias de almoços e jantares. No Brasil, fixou-se na capital paulista e foi aceito por unanimidade como membro titular da Sociedade de Psicanálise de São Paulo. Desenvolveu intensa atividade científica e didática como membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise e professor de pós-graduação de Psiquiatria Dinâmica da Faculdade de Ciências Médicas. Sempre com muito trabalho, o Dr. João Mariante morou em São Paulo por vinte e seis anos. Conveniências da família Mariante e o chamamento terruño, trouxeram o doutor João de volta aos pagos. Estabeleceu-se como psicanalista em Porto Alegre e continuou ativo como sempre. Por vezes o incomodava certa incompreensão do meio e que o aproximava ainda mais do colega e amigo Cyro Martins. O amor à independência, à liberdade, sua aversão à aceitação de dogmas, ainda que com embalagem científica, uniam os dois numa visão ampla de mundo, numa visão humanística. Mas a vida quase rotineira, de tarefas e resultados previsíveis, se interrompeu de golpe. Em poucos minutos, o Dr. João teve seu espaço vital, seu consultório-residência, destruído por incêndio que nada poupou. Biblioteca com livros de valor real e estimativo incalculáveis, obras de arte, anotações de uma vida inteira, fotografias de momentos inesquecíveis, diplomas e comprovantes de participação ativa em cursos, congressos, encontros culturais e científicos, arquivos, guarda-roupa, documentos, valores, tudo foi consumido pelas chamas. Mas, se nada sobrou do ponto de vista físico, material, sobrou e se multiplicou a vontade férrea de um homem desafiado à superação. Sentiu que o momento exigia adaptações e voltou a valorizar suas vivências jornalísticas da juventude. Sem abandonar vínculos com a psicanálise e a medicina psico-somática, passou a editar, quase sozinho, um jornal que se impõe a cada edição e que teima em continuar crescendo. Com uma tiragem de trinta e cinco mil exemplares e com distribuição no país e no exterior, o jornal MenteCorpo informa e educa; sempre com bom gosto e sem ranços. O trabalho intenso nunca o impediu de escrever e sonhar. Ensaios, crônicas, editoriais, depoimentos e vivências viraram livros. No primeiro com o título de Os Três Azes de Trinta e depois com Três no Divã, o Dr. João Mariante analisou aspectos da vida de três vultos ilustres da Revolução de Trinta e do Brasil moderno: Getúlio Vargas, Flores da Cunha e Oswaldo Aranha. Buscou, com embasamento psicanalítico, melhor entender certas atitudes e a repetida exposição a riscos, tão freqüentes nos examinandos. Desafiar a morte, impor-se condutas públicas, querer mudar um país, viver o poder, foram desafios para homens que se tornaram líderes e que o Dr. João Mariante analisou num metafórico divã. A estranha divisão do tempo adotada pelo Dr. João explica muito do que consegue realizar aos noventa e dois anos de idade: trabalha vinte horas e descansa, quatro. Sem concordar com esta divisão das horas do dia, tive outro problema ao entrevistar o Dr. Mariante: eu queria falar sobre o passado e ele insistia nos planos para o futuro. Entusiasmado, falava dos dois novos livros que está escrevendo, de modificações que pretende instituir no jornal e do possível lançamento de uma revista. Apesar da atividade intensa, sempre resta algum tempo para ser rotariano, com sessenta e cinco anos de serviços prestados, ou para enfrentar um ônibus e trabalhar num centro de cultura que idealizou no interior do Estado. Este João Gomes Mariante, membro honorário da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina, é quem desejo homenagear e que merece a admiração e o respeito de seus filhos, de seus netos e de todos nós. Eu teria material para encher horas sobre o muito que João Gomes Mariante fez ou faz. Encerrarei, entretanto, falando de uma atividade sua que é menos conhecida, a de poeta. Não me aterei a versos líricos, como os que ele dedicou a sua amiga Marta Rocha, com quem conviveu nos tempos de Buenos Aires, quando ela já era viúva de milionário argentino. Encerrarei lendo uma poesia que tem tudo a ver com sua infância e com um Rio Grande telúrico que jamais desapareceu de sua vida. Assim como Alcides Maia se extasiava diante duma lagoa de campo e a considerou uma imagem dele mesmo, João Mariante se enche de ternura diante de uma sanga, cuja origem associa a uma campereada ciclópica. Eis o encerramento desta homenagem através da pena e da inspiração do próprio homenageado, que assim escreveu em 1939:
Sanga Funda Sanga funda, Eu acho que foi assim: Com o puxão que levou, Do escalavrado que ficou Em cada manga d'água Ouve-se, lá pelas tantas, Essa sanga guarda Tem um poço E se eu disse, Porto Alegre, 14 de agosto de 2010
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