CYRO DE ONTEM E DE HOJE * |
Fortuna Crítica |
João Gomes Mariante**
Senhoras e Senhores Esta honrosa homenagem que hoje recebo de vossas mãos não é exclusivamente por minha contribuição intelectual, mas significa, essencialmente, um gesto magnânimo, um preito de gratidão pela profunda afeição que dediquei a Cyro Martins. Posso hoje, com humildade e orgulho, ressaltar o teor de sensibilidade e as amplas afinidades que a ele me prendiam. Peço vênia, para incorporar essa homenagem, ao patrimônio intelectual e afetuoso que o consagrado escritor soube tão bem administrar. Cometeria elevada pretensão querer traçar, em rápidas pinceladas, uma vida tão pródiga de um artífice intelectual da estirpe de Cyro. Assim é que vou focalizar apenas alguns tópicos do trabalho que preparei. Ele foi um artista de raça, o senhor de conquistas admiráveis. No ano de 1969, há 41 anos, quem hoje vos fala escrevia no Correio do Povo um artigo intitulado “A Entrevista” denominação homônima do título do pequeno grande livro A Entrevista de Cyro Martins. Foi quando se iniciou minha curiosidade por seus escritos, seus pensamentos, sua cultura e sua erudição. A citada obra encerra o desígnio de encarcerar o leitor na expectativa do que vai acontecer: A reação do protagonista, Doutor Augusto do Amaral, diante de um convite jornalístico para conseguir uma entrevista, que termina não ocorrendo. Doutor Augusto, personagem central do trabalho é registrado como ingênuo e crédulo, do tipo panglossiano. Deixa-se levar pela promessa da publicação que não ocorre e isso acarreta profundas consequências no psiquismo do ingênuo aspirante que, diante da atuação sádica de um jornalista, entra em depressão ansiosa em virtude da frustração, que agrediu seu narcisismo. A Entrevista, de Cyro, constitui um tratado emblemático e seletivo da literatura psicológica nacional.
O conceito de liberdade
Cyro posicionou-se sempre ao lado dos que defendem os princípios da liberdade, e era obediente à cultura do livre arbítrio. Sustentava com excelente argumentação a liberdade madura e sadia, que só os portadores de equilíbrio emocional conseguem executar. Foi um hábil espadachim, contra a prática da opressão. Valendo-se da literatura, da psiquiatria e da psicanálise, concedeu amplos recursos intelectuais para incrementar uma cultura elevada, especialmente destinada às gerações juvenis. Suas propostas para o exercício das liberdades cívicas, no terreno das ciências e das artes, da política e do pensamento, eram emergenciais. Foram tantas e tão profundas proposições, que, praticamente, reproduziam o imortal conceito: “liberdade ainda que tardia”, o lema da Inconfidência Mineira. Seu conceito de liberdade, profundamente introjetado, foi tão notório que liberou simbolicamente seus competidores para investirem nos vários flancos da sua personalidade. Para assim proceder, é mister coragem para combater os fariseus da liberdade. Ele sempre norteou sua conduta de enfrentar adversários, críticos e oponentes com a coragem e a certeza de vencê-los.
Cyro foi um combatente de vanguarda, jamais se refugiou na retaguarda das centúrias regionais. Como hábil esgrimista da pena e da palavra, não temia a crítica destrutiva, porque se valia de um peculiar florete para levantar a luva do desafio e desferir o último touchê. Ele era audaz, sem ser audacioso, era valente sem apregoar valentia.
Os cavalos da Infância
A existência de um cavalo e dos petiços em sua infância, merece um capítulo a parte, que as limitações de tempo não permitem. Na página 78 de Campo Fora, encontra-se uma passagem das mais belas e tocantes que a literatura meridional encerra: a descrição do pesaroso sentimento do gaúcho pela morte do seu cavalo. A amizade, a afeição pelo companheiro inseparável, é antológica, ontológica e clássica. Assim relata:
“Numa dobra de cerro, esbarrou o cavalo. E acordou da saudade. A poucos metros um matungo deitado. Era quase só o esqueleto. De acabado, nem a cola sacudia para espantar o mosquedo revoando em torno, em zoada de mormaço. Teve pena. Upa! Alçado pela cola, o animal levantou a cabeça no mais. E de novo se estirou no chão, como um corpo morto. O gaúcho olhou bem o pelo, carregou as linhas rijas do semblante. Caiu uma cerração na sua alma. Conhecia demais aquela marca.” Encerra dessa forma:
“Clarimundo sumiu-se a galope na concavidade do horizonte”. Toda a écloga pampiana chora pelo ente equino, quase gente, quase humano, quase Clarimundo, que saiu a cavalo para prantear ao longe na “concavidade do horizonte”. Possivelmente, ao evocar a agonia do cavalo, estivesse revivendo, através de Clarimundo, a perda do petiço “Doradilho”, que a Revolução de 23 surrupiou-lhe. O petiço “Doradilho” foi o seu primeiro meio de transporte, da venda do Seu Bilo, para a escola de campanha, onde sorveu as primeiras letras. O cavalo e os petiços das primeiras montarias, da infância e adolescência, foram os seguidores dos primevos cavalos de pau, precursores dos equinos reais. Em uma historieta, na página 47 de Rodeio, ele relata uma faceta de outro petiço maleva e caborteiro, o petiço “Tordilho Negro”. Em resumo, conta que ao cavalgar o petiço, foi, depois de alguns corcovos, estirado no chão. Tais episódios, que na campanha não são raros, significam um certo menosprezo pela inépcia do agarrador, que não consegue manter-se no lombo do cavalo. Cyro então relata:
“Encilhei o petiço. Notei que o bicho estava muito cosquilhoso. No segundo corcovo me fui paleta abaixo. Me levantei das moitas desajeitado e com algumas esfoladuras. Nunca mais o petiço mereceu a minha inteira confiança, embora continuasse a estimá-lo”. Da mesma forma, enquadrou os petiços humanos que corcovearam a sua volta, mas ao contrário daquele, não conseguiram derrubá-lo. Tal como na cena do petiço, não deixou de considerá-los; com o recurso do esquecimento e a superioridade de quem perdoa deu sequência à crítica e a rebeldia. É profunda e comovente a forma como Cyro descreve o cenário do Pampa. Ao retratar determinados vultos humanos, companheiros de infância e adolescência, se redescobre através deles e com eles se identifica e até se amálgama, sem contudo imitá-los. Na sua criação mais elevada assenta-se a ressonância que se interpõe entre a tradição e a experiência, entre o pretérito, o presente e o porvir. Com a mesma elegância e profundidade que fala de um mundo agreste, um mundo dizendo adeus a uma época acabada, aborda com fidelidade um outro período, revolucionário. Este surge para transformar uma “sociologia romântica”, no dizer de Moisés Velhinho, em algo que suprimiu virtudes, afetuosidade, fidalguia e cavalheirismo. O novo panorama situa o gaúcho a pé sem bombacha ou chiripá, sem guaiaca, sem lenço no pescoço, como um novo pária, cumprindo sua triste sina. Aquele que está fadado a catar resíduos alimentícios em bolsões de miséria dos centros urbanos, novo destino para as vítimas da revolução agrária. É profundamente comovente ver como Cyro retrata o cenário do Pampa e como bem caracteriza seus habitantes. Muitas páginas, que ele consagra à vida no interior gaúcho, foram por ele vividas e revividas em sua vasta produção intelectual. Os episódios e as ocorrências primam pela combinação das formas, a um só tempo antigas e atuais. Eles se constituem em melhores subsídios destinados a reforçar suas criações e inspirações e para transportá-las à contemplação do presente e o aplauso das atuais e futuras gerações. Ele coloca à deriva para que outros os incorporem. Assim procedeu com a seleção de alguns elementos para que suas produções não viessem a cair na vala comum do esquecimento. Dessa forma seus filhos também procedem, no afã de livrá-lo do ostracismo provinciano e preservar sua cultura autóctone, e resguardá-la do desaparecimento. Isso é de extrema importância diante da onda avassaladora da literatura de cartel e a de cunho invasivo, que concentra as de natureza subliminar, midiáticas e das novelas televisivas, de pura índole primária, responsável pela opiazição das massas. Cyro retrata magistralmente a alma da querência, descrita ora com uma visão da realidade, ora com a perspectiva de sonho e a essência mítica de tempos heróicos, dos nossos avoengos. Essas visões fazem ressurgir em páginas admiráveis determinados trechos, como este que estampa no final do último capítulo de Paz nos campos, pela virtuosidade do lirismo romanesco:
“O sol entrou sem grandes esplendores. A noitinha caiu suavemente. Que paz naqueles campos!”. Por vezes seu espírito sonhador abandonava o mundo cotidiano e citadino da vida que levava para transportar-se e conduzir-nos à vida que viveu. Para isso, utilizava uma convocação indireta e simbólica, para que o acompanhássemos. Cyro, sempre numa nitidez gráfica incomparável e uma intuição profunda dos segredos inconscientes dos seres humanos, retratava com fidelidade a vida que já não é. Os painéis descritivos de sua prosa causam-nos a impressão de estarmos vivenciando uma cena em terceira dimensão, que nos achamos diante de imagens visuais e de símbolos e perante mitos coadjuvantes, em grande número por ele decifrados. Quando entre nós surge um talento portador de tão elevada sabedoria e comprovada idoneidade intelectual, as evidências obrigam-nos a reverenciá-lo como um ato de sagrada veneração. Diante dele cabe a nós exercer a virtude da resignação e elevar nossos espíritos, aplaudi-lo e consagrá-lo louvando seus méritos e triunfos. A resignação que menciono gira em torno de uma consciência de humildade e nos dá o ensejo para conscientizar que não chegamos aonde ele chegou. A identidade do mestre
Inúmeros são os fatores que influenciaram a manutenção de sua identidade. Cyro foi portador de concepções inalteráveis, permanentes e sólidas. Sua personalidade gozava de um equilíbrio inigualável. Certo dia, Arnaldo Rascowiski em comunicação verbal sentenciou: “Cyro, es siempre lo mismo”. Ele portava uma audácia sem jactância e um arrojo sem nunca perder os limites. Sabia como poucos manejar as efusões dos seres meridionais. Diante de um obstáculo, desses em que a vida é plena, dominava a técnica de transpor e vencer barreiras e atingir incólume o lado oposto. No dizer campeiro: quando vítima de uma rodada, caía de pé com a rédea e o cabresto na mão. O vigor da sua personalidade amalgamada nas produções literárias, transfigura-se na sua própria imagem. A sua imagem é a efígie do Pampa, que se entrelaça em sua alma, no seu caráter, no seu todo e se consubstancia em arte e se transfigura em exemplo. Ele concebia o Pampa como extensão de si mesmo. A imagem plástico-sensitiva da planície quedou em sua visão interna em condição imutável e dilatada. Não se restringe aos contra-fortes do Cerro do Marco. Os elementos nativos do proscênio pampeano, o cavalo, o petiço das primeiras montarias, os elementos celestiais, a vastidão e a toponímia, plasmaram a sua existência. Deram-lhe, ainda, uma posição permanente e uma peculiar categoria. Tais condições o tempo não apaga e a evolução não suprime. A identidade genérica é imortal e constante. “Cyro es siempre lo mismo”, Rascowisk tinha razão. Quando o ser humano vê-se privado de sua identidade, perde o direito de cidadania; vê-se impedido de circular no país interno do seu próprio self. Talvez tenha sido essa a razão que o levou a guardar a identidade gaúcha e a identificação com o interiorano e a do homem da fronteira, que nunca deixou de ser. As raízes que o berço lhe deu e que a morte não conseguiu arrebatar permaneceram incólumes, imortais e perenes. Tais conquistas prosseguirão como destino certo e impostergável porque seus filhos não permitirão que se estanque no meio da jornada. Sua memória continua a exaltar a grandeza de sua estirpe mental, na excelência das páginas imortais, no vigor de uma prolífica contribuição intelectual, na gratidão de seus pacientes, na memória de seus amigos e de quantos o conheceram. Em muitos dos textos o escritor revela pendores poéticos. Mas os seus “poemas” virtuais apresentam-se sem rima e sem métrica e o que falta em métrica e rima, sobra em inspiração, originalidade e lirismo. Através deles, revela-se o poeta que não quis ser. Em Campo Fora, brinda-nos com páginas inesquecíveis, aonde o poeta se revela mais uma vez. Assim diz ele:
“Estalava no chão o tropel prolongado das patas dos baguais. E tilintavam no ar, fino e claro da manhã recém aberta, os cincerros das madrinhas”. Reduzido é o número de leitores que conhece a palavra cincerro e o vocábulo madrinha em tal contexto. Cincerro é um sino, que fica pendurado no pescoço de uma égua que é a guia da manada: a “égua madrinha”. O gaúcho de Cyro Martins
O gaúcho que Cyro retrata está longe de igualar-se à figura caricata que Lins do Rego encontrou fantasiado na Rua da Praia. Deu-se de cara com quem representava mais um personagem mudo, num teatro de fantoches. O gaúcho de Cyro é portador de uma identidade permanente. É o sul-rio-grandense histórico e não cíclico dos tempos atuais; é o espécime que simboliza uma etapa vencida da história. O gaúcho de Cyro estampa a marca e a estirpe dos mouros e o perfil de uma nova raça, consequente da miscigenação indianizada. O gaúcho que ele retrata, conserva a primazia de autêntica tradição, mantém a fidelidade histórica, e não prioriza tanto o que ele é, mas substancialmente o que ele foi: o monarca das coxilhas. Ele conserva a marca de uma identidade primeva. O representante que ele considera autêntico carrega nas entranhas a alma bravia do açoriano, a altivez, a perspicácia do silvícola e o colorido da maragateria. Sua ênfase é na paulatina extinção de uma raça autóctone para ceder espaço a uma outra, forjada no cadinho da história. O resultado desta florada humana foi o evento de novas raças representadas pelos deutch-gaúchos, agricultores e industriais; dos beps-gaúchos, enólogos, musicistas e igualmente empreendedores, além de outros povos e outras raças que aqui aportaram. Esses, de igual maneira, metamorfosearam o gaúcho autêntico, o gaúcho a cavalo, além de implantarem em nosso meio, status cultural e os albores da técnica industrial. Tais fenômenos e ocorrências, Cyro faz acontecer no plano literário, valendo-se especialmente das ideias, do simbolismo e da mítica que nascem dentro dele, como emanações de lampejos bíblicos. Paz nos Campos e Campo Fora comprovam a assertiva. O mestre possuía notável aptidão para repensar o que foi pensado. Ao citar a famosa frase de Raul Pompéia: “O Coração é o Pêndulo Universal dos Ritmos”. Cyro acrescenta, como homem de ciência: “O movimento isócrono do músculo é como aferidor natural das vibrações harmônicas, nervosas, luminosas, sonoras”. Nota-se, pelo complemento da frase, seu habitual propósito de poetizar até as ciências naturais, imprimindo-lhes uma sonoridade harmônica. Senhoras e senhores:
Essa solenidade poderá transformar-se em modelo para outras de igual significado; poderá priorizar o ensejo de exaltar uma vida consagrada aos mais altos desígnios do espírito universalista. Tais propósitos tendem a mantê-lo vivo, através do labor diferenciado dos seus filhos. Este prêmio pós morte, este titânico empenho de colocá-lo entre nós, é mais que um preito filial, porque se consubstancia na consagração de uma glória imorredoura. Para gáudio seu e dos que o veneram, a exaltação da sua memória, eleva um ser diferenciado e divulga uma obra intelectual, que, acima de tudo, e com o artesanato das palavras nos fala das coisas eternas. A Entrega do “Diploma ao Mérito” e Reconhecimento de “Ciência e Cultura” torna-se, para mim, como uma láurea, um galardão, que representam mais que uma simples homenagem, para transfigurar-se em afeto, ternura e solidariedade e amor. Digo-vos movido por um categórico imperativo, que o título que recebo, significa a mais expressiva das insígnias, que ao longo da existência chegaram às minhas mãos. Tenho a impressão que essa iniciativa cultural, essa jornada, irá certamente predispor outros agraciados como eu a seguir o caminho para chegar ao sentido primordial e civilizador das letras, das artes e da liberdade para criar. Existe melhor guia do que Cyro Martins? Este encontro representa mais que uma homenagem à memória de um pai; é mais que uma consagração filial, porque é justa, digna, autêntica e detentora de um superior exemplo. Torna-se um ato que eleva e consagra um intelectual que assentou o Rio Grande do Sul no pedestal consagrado aos grandes imortais da inteligência universal. O seu legado intelectual bafeja a condição das coisas eternas e a eternidade como dimensão desconhecida, existia antes de todos os começos.
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* Discurso pronunciado ao receber o Diploma ao Mérito Cyro Martins: Reconhecimento da Ciência e Cultura por ocasião da VII Jornada Cyro Martins sobre Saúde Mental - 14 de agosto de 2010 **Dr. João Gomes Mariante - Full Member of the International Psycho-Analytical Association - |