A língua única de Schlee e suas múltiplas vozes | | Imprimir | |
Joana Bosak de Figueiredo Leio Os limites do impossível – contos gardelianos, de Aldyr Garcia Schlee**. A curiosidade era grande, já que em junho eu havia assistido ao autor na Palavraria, discorrendo, contando, charlando sobre essa obra ainda à procura de um editor. E o Alfredo Aquino teve a sensibilidade e a decência de correr atrás e publicar o Schlee, que, pasmem, não tinha editor. Em tempos de crespúsculos de uma certa literatura, às vezes é isso o que nos resta. Ainda bem que existe o Schlee, pra eclipsar uma forma tão empobrecida de contar histórias. Pois bem, volto à leitura, ainda inacabada, mas impaciente por ser regurgitada. O certo, dentro da realidade crua que Schlee nos apresenta seria dizer vomitada mesmo. Com suas doze mulheres, que nos falam ou são faladas, Schlee se converte num escritor que entende plenamente o feminino. Sentimos o que elas sentem e mesmo o que há de mais íntimo aparece na escritura desse autor múltiplo. Regionalista. Não. É pouco. Fronteiriço. Com certeza. Acima de tudo, universal. Universal porque conversa e converge com o mundo e as vidas pequenas e a escrita enorme e vigorosa de um registro único, de um autor idem. Narrativa na fronteira, escritura no mundo. Quiçá a fronteira seja realmente o único lugar possível para estar no limite do impossível do universo que Schlee propõe. Superamos a barreira limite. Superamos mesmo o entre lugar. A fronteira é O lugar. O lugar onde se pode escrever numa língua única, a língua de Schlee, que doma, alumbra e alambra aquilo que não pode ser cerc(e)ado: uma identidade, uma maneira una, porém múltipla de ser e estar nesse mundo tão homogeneizado por uma cultura de massa, mas ao mesmo tempo, tão sedento de representações próprias de seu próprio teto – ainda mais quando o teto são estrelas feitas de letras. Ao ler Schlee se me escorrem as certezas e as tipificações acerca da literatura regional, pois ela repete as pátrias pequenas de todos os lugares, e isso a torna muito maior. Schlee bebe num tempo perdido que parece que ficou pra trás, mas que nunca nos abandona – os Oitocentos, tão únicos e tão fundadores de nossa cultura -, mas, ao mesmo tempo, projeta o presente e o futuro numa linguagem que ziguezagueia entre o ocorrido e o devir, como se o tempo passado continuasse sendo narrado ad infinitum até virar o agora – e o que resta é o que somos hoje. E aí somos brindados por “documentos” que atestam a existência “real” dos fatos em questão, como se estivéssemos lendo a correspondência ativa de alguma personalidade do século XIX cuja voz só apareceu hoje. Essa é uma narrativa intemporal, coloca-se, parece, no passado, mas flerta como se fosse hoje o tempo inteiro. Nessa costura narrativa Schlee não perde o fio da meada e o que parecem ser contos interligados converte-se em um romance polifônico, onde cada voz representa uma protagonista feminina que reveste de significados próprios uma história coletiva com interpretações pessoais de rara beleza e força marcantes. Todas elas têm razão. Todas elas têm a sua razão. Todos os contos são delas e de quem mais for narrando. E o perverso se justifica; não fosse ele não haveriam doze mulheres que contam e que são contadas, não haveria Gardel, não haveria esse livro mágico de Schlee. As múltiplas vozes de Schlee são proferidas por mulheres da vida, no sentido de que são absolutamente verossímeis: elas estão – ou melhor, estavam – nas fazendas, nos arrabaldes, no limite do urbano, nas cidadezinhas de uma enorme fronteira que se alarga cada vez mais em nosso imaginário: os limites entre o mundo hispânico e o luso no sul da América do Sul e mais ainda: nos limites de um mundo real e de outro inventado, onde as barreiras são tão tênues que impossíveis de serem visualizadas. O que fica é a impressão de que tudo é possível dentro dessa pretensa impossibilidade porque absolutamente visível nas imagens e paisagens interiores dessas mulheres. A vida doméstica, a alcova, os segredos, tudo aquilo que se sabe e que se oculta, tudo sobre o que se deve calar está lá. Schlee não esconde toda a devassidão de homens e mulheres, incesto, estupro, gozo, prazer. É nas margens que tudo acontece. É na fronteira do impossível que vivemos e escrevemos nossas vidas permanentemente. Há espaço pra tudo na prosa de Schlee: para homens sedentos de sexo, para mulheres que não abrem mão de seu prazer – por inusitado ou amoral que seja -, para mucamas que vêem mais do que deveriam, para chinas que não se contentam em ser chinas, para filhas que não são apenas filhas, mas cúmplices, amantes, mães. E essa é nossa América profunda. O sul, ao qual volvemos sempre, não se olvida. E é no cruzamento – e não no entrechoque – dessa língua particular que Schlee, tradutor, escritor e fronteiriço escreve. É uma língua toda sua, o teto sob o qual se abriga. Sob o qual abriga as raízes de sua cultura. Mas se abriga, não se esconde, porque o trunfo desses contos gardelianos é justamente uma realidade ficcional verossímil completamente exposta. Doi. Schlee não alivia. Mas um tango, pra ser bem cantado, precisa dessa dor. E se Gardel precisava de uma pré história pra existir ainda mais completamente ela já foi contada. E quem não acreditar que invente um causo melhor. Depois de Schlee há que ser muito bagual pra conseguir.
Porto Alegre, jan/2010 e-mail: jobfigueiredo@yahoo.com.br
*Os limites do impossível – contos gardelianos. Aldyr Garcia Schlee. Porto Alegre, ARdoTEmpo.2009. |