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O Petiço Douradilho - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Estampas e Perfis


 

Foi o meu primeiro petiço, regalo do tio Poli. Crina grossa, a cola uma massaroca, cheio de corpo, troncudo, trote duro e miúdo, queixudo, manhoso, atrevido, coiceiro, mas voluntário como ele só.

Montado nele fui aprender a ler na escola do seu Lucílio Dutra Caravaca. Além dos defeitos de caráter já apontados, devo dizer que o petiço douradilho era também intrometido e esganado. E isso ficava mais patente no inverno, na hora da ração de milho, manhazita cedo, animalidade solta, dorso crispado, minuano açoitante, uma fúria. Comia a sua ração ligeiro e depois dava um jeito de tirar o bornal e ia meter o focinho na manjedoura dos outros. Não tinha a menor consideração com a fraqueza dos pintos que vinham debicar farelos em torno dele. Coiceava. Matou vários. Por essas e outra, nem todos simpatizavam com o petiço douradilho. A gente da campanha gaúcha leva muito à sério os cavalos, tanto que se ofende, se os ofendem. Eu também participava desses sentimentos. Ficava sentido quando destratavam o meu petiço.

Fui crescendo, fui mandado para o colégio da cidade, longe. Nas férias era um alegrão reencontrar o meu petiço douradilho e montá-lo, no mesmo dia da chegada.

Na revolução de 23 foi arrebanhado. No ano seguinte, soube da triste notícia. Não me contaram tudo de supetão. Adivinhei aos poucos.

Teria morrido em combate? Ou de peste? Ou abombado? Ou se extraviara, não atinando com o caminho da querência?

Um consolo, porém, eu tive. Foi levado por uma coluna revolucionária o que condizia tão bem com o seu temperamento impetuoso.

Vejo-me em 1917- 18, montado em meu petiço douradilho, a sacola de livros a tiracolo, as rédeas machucando os dedos duros de frio, as pernas encolhidas, os olhos abismados para o lençol de geada, rumo à escolinha do seu Lucílio, que ficava entre o Capão do

Tigre e o Capão do Leão. Na volta, desencarangados com o sol do meio-dia, a gente vinha correndo carreira. O meu petiço ganhava sempre. Oh, sem desfazer da escola probrezinha do seu Lucílio, o gosto de ganhar que o petiço douradilho cola grossa me transmitiu, valeu-me mais na vida que aquele bê-à-bá e aquela tabuada, cantados lá naquele fundo remoto da beira do Capão do Leão, num faz-de-conta que a gurizada baguala das redondezas estava descobrindo o mundo com o dois e dois são quatro, e assim num manhã inteira os números se juntavam e se esparramavam , como as ramas das árvores ao vento, num balançar pra cá, figurando agachadas e de a desandando caminhos para diminuir, cravando esporas para somar, três e três são seis. Pra multiplicar e dividir, lá pucha!, só indo para o quadro-negro que tinha na aula, sim senhor, conquista trabalhosa do professor e dos pais dos alunos, enviesado num canto, impondo respeito, exigindo um matutar dos diabos para se entender os números.

Se me viro pra trás e contemplo a minha escolinha, vejo-a sumindo na distância, anônima, efêmera, um tiquinho de existência apenas. Tenho ganas de afagá-la. E uma pungência indistinta, perdida na solidão do pampa e nos longes da memória.

Mas o sol está apertando. Seu Lucílio já olhou duas vezes para a sombra encolhida no beiral. Já recende o cheiro apetitoso da comida da Manuela. Seu Lucílio pensa também na sesta. Tem uns guris grandes na aula que compreendem tudo.

Pronto, livres, montar! Ouço o bater dos cascos do petiço douradilho na coxilha. Eta flete ligeiro!

 

In: Rodeio (estampas e perfis).

Porto Alegre, Movimento, 1976.