Vida Morna* | | Imprimir | |
Cristina Macedo
Chego tarde, como sempre. Meu marido, na cozinha, toma um café enquanto prepara nossa janta. E, igual a sempre, pergunta como foi meu dia. Respondo ótimo, trabalhei bastante. Não posso contar que deixei o escritório cedo e fui ao encontro da turma. Minha turma de mulheres, há alguns dias, resolveu extrapolar e, depois de seduzir aquele stripper, uma delas levou-o para casa. Levou-o não, levamos: eu fiz parte de cada sórdido detalhe. Depois de o exaurirmos a sexo e álcool, alguém lançou a ideia. E ela ficou suspensa no ar. De início, dissemos não, nem pensar. Mas, ela ficou ali, rondando. Não escaparíamos dela.
- Queres mais um cafezinho, amor? - pergunta meu marido, arrancando-me do devaneio.
Começo a bebericar aquele café quentinho e, enquanto ele conta sobre seu dia, quase igual a todos os dias, volto ao desigual do meu. Pois a ideia ficara ali e, por mais que tentássemos evitá-la, não nos deu mais sossego. Eu não sabia por que iríamos fazer aquilo com ele, mas sabia que o faríamos.
Enquanto não acontecia, o homem ficara amarrado à cama de nossa amiga. Por vários dias. Nós o tratávamos bem, vinho, boa comida, sexo. Ele, prisioneiro. Meio que gostando daquilo tudo, meio que temendo o momento seguinte. - O café vai esfriar - diz meu marido, novamente me trazendo para nossa casa. Bebo alguns goles. Sinto-me inquieta. Meu pensamento foge dali. Resolvêramos, as amigas, que o desenlace seria hoje. E fomos em frente. - A janta ainda demora? - pergunto.
Quando ele diz 20 minutos, decido tomar um banho. A água que escorre pelo meu corpo, limpa qualquer vestígio de sangue. Penso na cena em que o matamos.Ele se desesperou, incrédulo, e nós batemos sem piedade. Mais e mais, tanto mais ele se debatia. Quando aquietou-se, quase morto, fui eu que abriu a bolsa e o atingiu, com vários tiros. Não podia deixar pedra sobre pedra.
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Para de tossir* O ônibus ia para a capital. A viagem recém tinha começado e ela já se preocupava com as passageiras a seu lado: a menina, que parecia ter sete anos, e sua gorda avó. As duas ocupavam a mesma poltrona, grudadas nela. Será que vou aguentar tantas horas com estas estranhas criaturas tão perto de mim? – ela pensava. O sentimento era ambíguo: por um lado, tinha pena. As duas estavam mal acomodadas, uma apertando a outra. Mas sentia também raiva pelo desconforto que lhe causavam. À medida que o ônibus avançava, as coisas iam piorando. A menina ficava mais e mais inquieta; não parava em posição alguma. E sua avó, muda e imóvel. Eis que começa a tosse. Quanto mais o desconforto da viagem aumentava, mais a menina tossia. E ela, ao lado, se descontrolava também. Lançou olhares de ódio para a menina, que lhe devolveu os mesmos olhares, enquanto seguia tossindo irritantemente. A avó continuava sem perceber nada, talvez dormisse. Ela pensou em dormir também; com os barulhos da menina seria impossível. Tentou se acalmar, mas estava cada vez mais nervosa. A menina, agora sentada no chão, a encarava, sempre tossindo. Por que uma simples tosse a deixava tão incomodada? Não conseguia atinar, porém não aguentava mais. Aproximou seu pé do corpo da menina e fez uma pequena pressão com o bico da bota. A menina tossiu mais. A avó continuava de olhos fechados. A menina tossiu mais e mais. Ela virou o pé e apertou o estômago da menina com seu salto fino. A garota tossiu assustadoramente. Era sua única reação, tossir, tossir e tossir. Ela tampou os ouvidos e fechou os olhos com força: estava enlouquecendo. Ficou assim por alguns minutos, talvez. Quando voltou a abrir os olhos, já estava escuro.
Inclinou-se até a menina... Não ouviria mais nenhuma tosse.
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*In: Arca Profana . Vários autores. Porto Alegre. Território das Artes. ---------------
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