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Alguns Comentários a respeito de 'Memórias do Subsolo', de Dostoievski | Imprimir |  E-mail


Alguns comentários a respeito de Memórias do Subsolo, de Dostoiévski

Juarez Guedes Cruz


O jornalista Manuel da Costa Pinto, editor da revista Cult, ao comentar, em um site da internet, os romances de Dostoiévski, diz que, neles, “Tudo... está às portas dojuízo final”. Espero, em minha participação neste debate, mostrar o quanto concordo com tal afirmativa.

 

Muitos de vocês já devem ter passado - ao ler um livro - pela seguinte situação: a vontade é sublinhar tudo. E isso me aconteceu ao me preparar para a atividade de hoje.

 

São tamanhos o poder e a força quase magnética das páginas de ‘Memórias do subsolo’, que mal consegui me desprender do texto e, em função disso, não encontrei modo melhor e mais eficaz para iniciar meu comentário do que ler um extrato de suas vinte linhas inaugurais. Assim inicia a novela:

 

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (...) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva.(...) sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.


Já faz muito tempo que vivo assim: uns vinte anos” (Dostoiévski, 1864, p.15). 

 

Esse discurso — desesperançado, pessimista e irônico — dá o tom de toda a primeira parte do livro, cerca de um terço do mesmo, e nele estão expostas as bases do que virá na obra desse vasto romancista que é Dostoiévski. Quando digo ‘o que virá’, não estou me referindo apenas aos parágrafos que seguirão, a este primeiro, na construção da novela de 1864, mas, também aos romances posteriores: ‘Crime e castigo’, de 1866, e ‘Os irmãos Karamázov’, de 1879. A diferença reside no seguinte: enquanto em ‘Memórias do subsolo’, um protagonista sem nome, solitário e infeliz, planeja crimes de vingança, mas sempre volta atrás, por culpa ou por covardia, nos dois grandes romances que seguem, o assassinato é consumado. Aquilo que, em ‘Memórias do subsolo’, é arrogância silenciosa e incapacidade para agir, nas obras posteriores é realizado por personagens objetivamente identificados que passam, como alguém já disse, “... da teoria à prática” (Kjetsaa, 1987, p.174), da ruminação do pensamento ao crime.

 

Ao mesmo tempo, as frases elaboradas por Dostoiévski para abrir a novela, criam, de início, aquilo que os professores de literatura chamariam de um campo semântico que prepara o leitor para entrar no clima sombrio e agressivo da trama. Os psicanalistas, por seu turno, considerariam essas frases iniciais como conjunções constantes, a indicarem os conflitos e principais características da personalidade do protagonista. A oração de abertura — “Sou um homem doente... um homem mau. Um homem desagradável” —, é bastante tentadora para os que se dedicam ao estudo da psicopatologia, e qualquer psicanalista ou psiquiatra precisa resistir bravamente aos ímpetos classificatórios da especialidade para não reduzir sua análise dessa obra tão magnífica a um mero exercício clínico sobre a doença mental de um homem.

 

Ainda mais que Dostoiévski não está se referindo a um homem, mas a todos os homens, em maior ou menor grau, em seu subsolo inconsciente. Vejam o que o próprio escritor afirma a respeito de sua novela: “Orgulho-me de ter sido o primeiro a descrever um autêntico representante da maioria russa, o primeiro que mostrou o aspecto feio e trágico de sua natureza. (...) Sou o único que representou a tragédia do subsolo, uma tragédia que provém do sofrimento, do reconhecimento de que existe algo melhor que não pode ser alcançado...” (Kietsaa, 1987, p.174).

 

Podemos ampliar o comentário de Dostoiévski: ele não está falando apenas de ‘um representante da maioria russa’, mas expressando literariamente, através de seu personagem, aspectos subterrâneos de todos nós, nossas pequenas e grandes infelicidades, nossos ressentimentos, maiores ou menores, nossas grandes e pequenas covardias de cada hora. Nossas coisas de ‘camundongo’, como ele vai nos chamar lá pelas tantas. De nossos planos secretos que não vêem a luz e se escondem, tímidos, nos desvãos de nossas almas. Como é doloroso reconhecer isso que, de modo tão singelo Dostoiévski coloca no final do comentário: o sofrimento proveniente da consciência de que ‘existe algo melhor que não pode ser alcançado’. É uma profunda reflexão sobre as origens da inveja: a negação dos nossos limites e deficiências e a crença, quase delirante, e muitas vezes delirante, de que só não temos tal ou qual qualidade porque o outro, o invejado, a possui. O raciocínio é quase matemático: não é que eu não possua ou não tenha desenvolvido tal ou qual predicado. É que o outro o possui com exclusividade. Portanto ele, o invejado, precisa ser destruído para que eu adquira o que ele detém.

No desfecho do episódio, descrito na segunda parte do livro, em que tenta vingar-se do oficial, mais alto e mais forte, que o tratara com desprezo, fica demonstrada a inutilidade de buscar humilhar ou destruir o outro como método de recuperar o amor próprio. Isto nos lembra que uma das conquistas mais importantes e árduas de um processo analítico é aceitar a responsabilidade pela própria vida e reconhecer nossas limitações quando somos cercados de tantos infinitos. É muito difícil lidar com a percepção dessa dolorosa verdade expressa na frase de Dostoiévski: ‘existe algo melhor que não pode ser alcançado’.

Então só nos resta, do mesmo modo que Jorge Luis Borges em ‘Borges e eu’, lamentar o fato de que, inevitavelmente, “... todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre” (Borges, 1960, p. 206) e, para citar apenas um exemplo entre as pessoas que se encontram nesta sala, um Juarez Guedes Cruz está, de modo inapelável, destinado a ser Juarez Guedes Cruz e não poderia fazer outra coisa, hoje, a não ser escrever essas palavras circunstanciais que vocês estão ouvindo a respeito do texto de um portento da grande história da literatura, do qual ele se aproxima algo tímido e temeroso.

 Na introdução que escreveu a esta novela, Dostoiévski comenta: “Tanto o autor quanto o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade (...). O que pretendi foi apresentar ao público... um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros” (Dostoiévski, 1864, p.14).

Assim, antes mesmo de iniciar o texto literário propriamente dito, Dostoiévski adverte os leitores a respeito do que lerão nas páginas seguintes de ‘Memórias do subsolo’. Podemos dizer que tal advertência, se olhada sob um vértice sociológico ou histórico, encontra sua razão de ser: os fatores sociais, na Rússia da metade do século XIX, eram diferentes e não superponíveis à sociedade soviética de hoje. Entretanto, se olharmos a questão sob o ponto de vista psicológico, essa estirpe dos infelizes, dos deserdados e dos solitários não vivia, nem de longe, seus dias derradeiros. E mais: tudo indica que nunca deixarão de existir. Eles estão aí nas ruas e, o que é mais assustador, em maior ou menor grau, como já disse, dentro de cada um de nós. Nossas inúmeras vacilações do dia a dia, uma certa dose de cinismo muitas vezes necessária para o convívio social, proliferam no subsolo. Naquele lugar onde somos, nas palavras do narrador dessas ‘Memórias’, camundongos “... a esgueirar-se vergonhosamente para a sua fendazinha” (Dostoiévski, 1864, p.23).

Nesta, que é sua novela mais ‘psicológica’, Dostoiévski não nos poupa, e não é por acaso que muitos desistem da leitura desta obra. Diz ele, a certa altura: "Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio (...). Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio (...) não é possível ser absolutamente franco... e não temer a verdade integral. (...) uma autobiografia exata é quase impossível, e... uma pessoa falando de si mesma certamente há de mentir" (Dostoiévski, 1864, p.52/53).

Tudo leva a crer, portanto, que o protagonista de ‘Memórias do subsolo’ tem muito mais a mostrar a respeito da natureza humana do que as passagens, muitas vezes dramáticas e até caricaturais da novela permitiriam supor. Quando terminei de reler este livro, a impressão que fiquei é de que se trata de uma longa e triste metáfora a respeito do império do ódio no mundo interno, da inveja e da solidão a ele conseqüentes. Falei em reler. Na verdade eu já lera esse livro há uns vinte anos e seguramente, na época, a leitura foi tão incômoda que muito pouco guardei da trama.

Quero, agora, me centrar nesta palavra ‘trama’. Quando, ao preparar este texto, a escrevi, me ocorreu algo interessante. Uma dessas coincidências que são mais que coincidências. Eu assistira, há poucos dias, um show do cantor uruguaio Jorge Drexler. E uma das músicas intitulava-se ‘Amar la trama’ e ali o poeta fala em amar mais a trama do que o desenlace do conflito a ela associado. Parece-me que, do mesmo modo, o protagonista de ‘Memórias do subsolo’ também não quer um desenlace, uma resolução para o seu sofrimento. Não quer porque não pode. Necessita ficar enredado na trama. Ela o protege do caos: pelo menos, metido até a raiz dos cabelos no delírio, ele pode identificar inimigos, desafetos, e livrar-se da penosa sensação de que é um solitário infeliz. Mais fácil odiar do que amar. O amor desarma o sujeito e o põe nu. O ódio permite que utilize uma rígida e sólida armadura. Por isso, as frases iniciais do texto: “... não me trato e nunca me tratei (...) [e] se não quero me tratar, é apenas de raiva...” (Dostoiévski, 1864, p.15).

 

Na segunda parte da novela é descrito seu relacionamento com Liza, uma prostituta. Uma relação cruel e talvez a mais ilustrativa do caráter do protagonista: com medo de afeiçoar-se a Liza, passa a maltratá-la. Quando Liza vai procurá-lo em seu apartamento, ele a trata com rispidez e a humilha:

e, por favor, para que veio a minha casa? (...) Por que você veio? Responda! Responda! Exclamava, quase perdendo a consciência de mim mesmo. — Vou dizer-lhe, mãeznha, para que veio aqui. Veio porque eu disse então a você palavras piedosas. Pois bem, você ficou enternecida com elas, e agora quis ouvir de novo ‘palavras piedosas’. Pois saiba, saiba de uma vez, que eu então estava rindo de você. E agora também rio. Por que está tremendo? Sim, eu ria! (...) Tinha que desabafar sobre alguém o meu despeito... apareceu você, e eu descarreguei sobre você todo o meu rancor, zombei de você. Humilharam-se, e eu também queria humilhar; amassaram-me como um trapo, e eu também quis mostrar que podia mandar... Eis o que aconteceu; e você pensou que eu fui lá de propósito para salvá-la, não? Você pensou isto? Você pensou isto?” (Dostoiévski, 1864, p.137). 

 

Ele necessita da trama instaurada para exercitar seu ódio. E as críticas com relação a Liza são modos de alimentar a raiva. A maneira como se defende de qualquer sentimento terno que pudesse colocá-lo na delicada situação que se instala quando dependemos afetivamente de alguém. A contabilidade dos afetos amorosos é muito mais sutil e delicada do que a contabilidade do ódio.

 

Finalmente, eu gostaria de destacar no texto da novela o uso, extremamente eficaz e, às vezes impiedoso, da ironia. Isto já fora anunciado na frase que li no início: “... sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina”. Ou seja, o motivo que ele dá para respeitar a ciência médica e os médicos, é um motivo que, ao mesmo tempo, os desqualifica: só acredita neles porque é supersticioso. É necessária muita atenção para compreender o quanto este comentário encerra uma verdade profunda, pois muitas vezes, vemos certas afirmativas científicas serem aceitas sem questionamento, como se fossem algo religioso que não admite discussão.

 

Há vários outros exemplos onde a ironia é exercida quase com crueldade e onde, ao mesmo tempo em que trata os interlocutores com uma respeitosa segunda pessoa do plural ‘vós’, ridiculariza seus leitores, e a si próprio, sem trégua. Seria novamente injusto com o texto de Dostoiésvski, encerrar sem ler, diretamente, o modo magistral como ele termina o livro:

“... não será melhor encerrar aqui as ‘Memórias’? Parece-me que cometi um erro começando a escrevê-las. Pelo menos, senti vergonha todo o tempo em que escrevi esta novela: é que isto não é mais literatura, mas um castigo correcional. (...) um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos os traços de um anti-herói, e... tudo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida. (...) Sei que talvez ficareis zangados comigo por causa disto, e gritareis, batendo os pés: ‘Fale de si mesmo e das suas misérias no subsolo, mas não se atreva a dizer ‘todos nós’. Mas com licença, meus senhores, eu não estou me justificando com este todos. E, no que se refere a mim, apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousastes levar até a metade sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por sensatez... (...) Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. (...) Mas chega; não quero mais escrever ‘do Subsolo’ ” (Dostoiévski, 1864, p.145 a 147). 

 

Realmente tem razão o editor da Cult, Manuel da Costa Pinto: muitas vezes, ao ler Dostoiévski, nos sentimos ‘às portas do juízo final’.

 

Bibliografia

BORGES, Jorge Luis (1960) Borges e eu. In: _____ (1923 – 1988) Obras completas (2) , Editora Globo, São Paulo, 1999.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich (18640 Memórias do subsolo. Editora 34, São Paulo, 2000.

KJETSAA, Geir (1987) Dostoyevski. La vida de um escritor. Javier Vergara Editor, Buenos Aires, 1989.

PAMUK, Orhan (1999) Dostoyevsky’s Notes from underground: the joys of degradation. In: ___ (1999) Other colors. Essays and a story. Alfred A. Knopf, New York, 2007.

PINTO, Manuel da Costa (2010) Dostoiévski e Tolstói. Disponível em 8 de agosto de 2010, em  www.revista.agulha.nom.br/mcostapinto01.html