Literatura e Medicina: diálogos possíveis |
Humanismo Médico - Apresentação |
Léa Masina
Para situar-se perante as obras literárias, o leitor comum costuma depositar excessiva confiança na autoridade do crítico ou do professor, quando não na força inercial mas altamente persuasiva das lista de “best sellers”¹. Mas não é preciso nada disso para lermos um bom romance e avaliá-lo subjetivamente, eis que é subjetivamente que avaliamos as obras literárias. Essa conclusão, no entanto, está ancorada na concepção de literatura como prática cujo produto, a obra, resulta de uma pulsão psíquica que, com certeza, se produz a partir de diferentes emoções de seu autor. Esse processo de criação, que difere de pessoa a pessoa, consiste, em última análise, na liberdade do escritor de ler o mundo à sua maneira e de articulá-lo em formas verbais. Desse modo, ele possibilita que o outro – os leitores – refaçam o caminho de volta, partindo da obra escrita para, através da subjetividade da interpretação, chegar ao ponto de partida do escritor. Esse poderá ser um momento de iluminação que, mediante o trabalho sistemático com a palavra, irá se transformar em texto literário, o espaço de uma viagem clandestina que o escritor realiza e propõe ao leitor, ancorando-se na linguagem. Assim, cercado de estranheza, o escritor moderno vive a clandestinidade irremediável, para mostrar que os extremos se tocam “Coração oposto ao mundo”, como disse Fernando Pessoa, o escritor moderno vê crescer à sua volta o espectro da estranheza, que deixou de ser monopólio de uns devaneios bizarros, para se tornar patrimônio comum, (...) fragmentos de um espelho finamente polido em que a realidade se vê refletida². Ora, essa estranheza primordial que produz a “iluminação” do escritor (aquele estado inquietante do sujeito que o leva a expressar-se através da arte) nada mais é do que a percepção sensível da vida, o desejo de libertar-se dos fantasmas que assolam o homem capitaneados pela memória, sensível ou literária, bem como pela experiência da vida que, não raro, supera em terror ou paixão a própria realidade. A literatura nasce de um estranhamento. Já para Roland Barthes, literatura é o “espaço da liberdade”, um lugar utópico onde tudo é possível, onde o sonho e a imaginação rompem os limites previsíveis da realidade. Com isso, gera-se um estado de liberdade, catártico, sem dúvida, processo mental e emocional que decorre da apreensão de uma idéia que fica incubada para eclodir depois numa forma artística qualquer. Ouçamos Barthes: “Entendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso portanto, essencialmente, o texto, isto é, o tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto. As forças da liberdade que residem na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas um “senhor” entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua³. Tratando-se de literatura, explica Barthes que a língua e, em consequência, a linguagem, são perpassadas de ideologias e estão a serviço de alguma coisa externa, o real. Expressam idéias, pensamentos, manifestam vontades, estabelecem contatos, servem de ancoradouro ou de passagem para outras coisas que não elas próprias. Mas, fundamentalmente, o escritor “trapaceia” a linguagem ao dar-se conta de que ela não reproduz ou demonstra, mas representa o real, como se fosse em um teatro. Isso ocorre porque a literatura tem a primazia da função poética da linguagem, capacidade de significar por ela mesma, tendo como um dos seus objetivos tocar o leitor com a forma do texto. Aqui, cabe a imaginação, a invenção e a fantasia, que usam a palavra para além da intenção de significar o apreensível pelo intelecto e pela inteligência. É com o corpo, a pele, os sentidos aguçados por uma estranha sensibilidade que se pode escrever ou ler um texto literário e viver a emoção estética. Se a literatura tem o real como seu objeto de desejo e esse não é demonstrável, mas representável, estamos diante de uma utopia. E essa será superada porque a linguagem literária não se rende à impossibilidade da representação do real. A linguagem literária inventa nova realidade, com seres e coisas antes inexistentes e os consubstancia enquanto novos corpos que passam a circular no espaço do texto.. É preciso, pois, acordar todas as possibilidades criativas do corpo para que o escritor verdadeiro, o artista da palavra, escreva, reescreva, elabore um texto que sintetize uma visão de mundo tão pessoal e complexa que irá despertar outra liberdade – a do leitor – e assim completar-se o ato da leitura. É no ato da leitura que duas percepções, duas sensibilidades se encontram, mediadas pela síntese do texto. Nesse momento, ocorre o “fato literário”4, fenômeno que transforma papel e tinta em arte, insuflando-lhe sentidos. Pode-se dizer, na esteira de Barthes, que a leitura é a convergência de campos de liberdade pessoal compondo o espaço livre do texto. E, assim, a literatura comporta tudo o que o homem ousa e se permite sentir, pensar, imaginar ou desejar. Ouçamos Barthes em outro momento: “A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejos. A emoção de um duplo contacto: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é “eu te desejo”, liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação".5 A literatura – como, de resto, toda a arte – tem a ver com as emoções que expressa ou suscita a partir do corpo do autor em outros corpos. E aí, quer-me parecer, encontram-se as aproximações possíveis entre literatura e medicina. E para levar adiante essa aproximação que, na verdade nada mais é do que uma tentativa de justificar a paixão dos médicos pela literatura, quero narrar uma história verídica. Ela foi vivida por um jovem médico há mais de quarenta anos 6, quando fazia sua residência num hospital e foi-lhe solicitado realizar um atendimento num local onde havia uma criança doente. Era o primeiro trabalho desse tipo que o jovem realizava e, depois de inúmeros percalços, chegou a uma vila onde, numa casa simples, havia uma sala, rodeada de pessoas sentadas à volta de um pequenino caixão branco. O médico, sem saber o que o esperava, procurou pela mãe da criança e encontrou-a abraçada, ninando o corpinho pequeno e visivelmente morto. A mulher falava com a criança como se ela pudesse ouvir e se negava a entregar o corpo. O jovem, perplexo, logo compreendeu que sua tarefa era dizer à mãe que o filho havia morrido. Mas, como fazê-lo, quando as palavras pareciam inócuas, incapazes de nomear um sentimento e uma circunstância dolorosos e inusitados? Esse sentimento de impotência diante da morte, do desvalimento da pessoa humana sufocada por uma dor insuportável, impedia o médico de encontrar as palavras adequadas para dimensionar aquela dor. Dor de morte, aliás, inexorável à condição humana. Desespero afásico decorrente da falta de palavras para nomear algo que nunca foi experimentado é, numa aproximação com a literatura, idêntico ao do escritor que não tem palavras para dizer do assombro que percebe na vida, mediante sua sensibilidade apurada, diferente de muitos que nada percebem com tamanha intensidade . Os médicos, por sua vez, no seu trabalho diário com as pessoas, tem mais oportunidade de viver, de modo íntimo, o sofrimento, as emoções, as pequenas e grandes angústias que aniquilam o ser humano, ou o redimem, até a morte. Com base em depoimentos pessoais e no convívio diário com médicos escritores iniciantes e experientes, torna-se claro que eles buscam a literatura, como escritores e leitores, porque a medicina os obriga a um contato constante com situações-limites. E ela própria, a literatura, leva-os a transfigurar essas situações em temas, assunto, objeto central de suas obras. Longa é a lista de médicos escritores, cujas obras são exemplares dessas ricas aproximações. Basta citar como exemplo, dentre os clássicos, Anton Tchekov, Arthur Schnitzler, Somerset Maugham e entre nós, brasileiros, Guimarães Rosa, Pedro Nava e o nosso Cyro Martins, Aureliano de Figueiredo Pinto, Moacyr Scliar. E ainda os contemporâneos, Juarez Guedes Cruz, José Blaya, Waldomiro Manfroi, Fernando Neubarth, Celso Gutfriend, José Eduardo Degrazia , Paulo Sergio Guedes , Rogério Xavier, Blau Fabrício de Sousa, Franklin Cunha e tantos outros. Assim, apesar dos horários disponíveis serem mínimos, os médicos procuram um espaço para sublimar o horror e a maravilha contida na realidade. Isso os ampara na tarefa diária de lidar com esse tipo de real contido na natureza humana: as doenças que ameaçam e desqualificam a vida; a morte em seus estágios surpreendentes, lentos, dolorosos, sempre inexoráveis; a loucura, o sofrimento sem resposta; o milagre do nascimento, força e fragilidade suscitando sentimentos com os quais é um desafio conviver. Alguns médicos optam pela busca de uma frieza defensiva, que salva e não pensa, que cura e não cogita. Outros, entregam-se, corpo e alma, à profissão. Muitos encontram na prática literária uma razão a mais para viver e produzir transformando, eis que, ao transitar em um espaço de liberdade, a literatura, podem elaborar, transgredir, rever e recriar. A criação artística, há que repetir, nutre-se da vida e da morte, os limites do humano. E a literatura existe para apontar ao homem a sua irrenunciável humanidade. Literatura e medicina aproximam-se, portanto, pela compaixão, que se traduz na prática de amparar o outro. Não basta referir a necessária catarse do impacto de viver constantemente situações-limite. Há mais do que isso. É possível que a necessidade de olhar para o outro com solidariedade, assisti-lo ao nascer e ao morrer, minorar-lhe os sofrimentos e proporcionar-lhe uma vida mais qualificada e melhor seja o que aproxima médico e escritor. Assim como na medicina, a literatura resulta numa prática generosa, transformadora, movida pelo impulso de multiplicar e dividir visões de mundo. O processo de identificação do leitor- escritor-paciente com o texto que escreve e lê completa esse movimento que, a meu ver, é um importante vetor de proximidade entre medicina e literatura. E aqui se insere uma nova questão: se não conseguimos nomear nossos sentimentos mais complexos, nossos assombros e deslumbramentos, o terror, o pânico, a ira incontida, a inveja e todas as pequenezas que fazem parte do dia a dia humano, cabe ao bom escritor ser o agente desses registros. O sentimento, a sensação de ter de dizer aquilo “que não tem nome” obriga a criar, não raro, a metáfora, explorando o manancial inesgotável da língua. Essa construção virá a ser interpretada ao longo dos anos, dos séculos, ressemantizada conforme as diferentes leituras que dela forem feitas. E sempre estará disponível para ser consultada, relida, acrescida de valores e ideologias. Cabe citar, como exemplo, um ficcionista que vem sendo muito lembrado: João Guimarães Rosa, autor, dentro outros, de Grande Sertão: Veredas . Na vastidão sem limites do sertão dos Gerais, o homem está perdido, sem referências, sem fé, sem identidade, sem raiz, imbuído de uma religiosidade tosca, vivendo num mundo mítico onde as coisas sequer tem nome. Esse perdimento, o escritor reduz a uma palavra: “Nonada”. O neologismo mostra que a palavra empregada em sentido poético serve para suprir aquilo que “não há palavras para dizer”. O homem perdido no meio do nada, circunstância universal do nascimento à morte. E esse procedimento acompanha todo ato de criação das grandes personagens. O mundo literário é feito de constatações geniais: quem, senão Shakespeare, poderia conceber, de modo exemplar, um ser perverso, cruel, ambicioso, calculista, cínico, egoísta e ao mesmo tempo adorável e apaixonante como Ricardo III? Com isso, não se está a sugerir – ou aceitar – que os médicos, os psiquiatras e psicanalistas em especial, vejam a literatura como um depósito de doenças psíquicas identificáveis didaticamente. Isso seria um modo redutor de leitura. Mas, se pensarmos que a literatura nos oferece duas faces, a da escrita e a da leitura, o diálogo e a reflexão interna que a leitura suscita com certeza contribui também para tornar o médico mais apto para o seu trabalho com a pessoa humana, pois o ensina a melhor perceber e a escutar. E, finalmente, aproximam-se literatura e medicina na medida em que a primeira complementa a prática da segunda, haja vista a produção literária dos médicos escritores, o número expressivo de obras que publicam, o modo sistemático como buscam participar de atividades de leitura e escrita e a preocupação em organizar suas próprias antologias quase sempre com temas abstraídos da área médica. Essa verdadeira atração que sobre eles exerce o texto escrito se particulariza com relação aos médicos psiquiatras e aos psicanalistas, sempre atentos a enxergar as sombras, os avessos, as margens daquilo que se explicita como palavra no texto. Tamanha sensibilidade, treinada para a captação da diferença, do desvio, pode gerar um impulso, muitas vezes insuportável, de transpor para alguma forma de arte a matéria que se vai acumulando. E aí se impõe a literatura como prática, fruto de uma pulsão psíquica, que obriga o escritor a dar forma a sentimentos, emoções, percepções, eis que dispõe do “espaço de liberdade” que a consciência do ser ficcional lhe proporciona. A verdade do texto não se mede à luz da verdade da vida. O texto acolhe tudo que nele se dispõe com respeito à sua coerência interna, o que significa o acolhimento da fantasia, do sonho,daquilo que poderia ser, segundo os velhos conceitos aristotélicos de verossimilhança e de imitação. E como disse o poeta Quintana, “sonhar é acordar-se para dentro”. Em suma, os médicos aproximam, na prática, medicina e literatura porque esta lhes proporciona sempre um mergulho hermenêutico a profundezas ilimitadas, do qual, com certeza, ressurgem todos mais livres e revigorados.
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