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A FORMATURA* - Cyro Martins PDF   E-mail
Estante do Autor - histórias vividas e andadas

 

 

Onze e meia da manhã do dia da formatura. Mário Martins e eu colamos grau na secretaria, perante o velho Sarmento. Velhos amigos e companheiros de estudo, descemos, no entanto, a escadaria da Faculdade com as vistas voltadas para miras diferentes, as minhas mais longínquas e incertas, as dele mais próximas e definidas. Até nem me lembro sobre o que falamos àquela hora daquele dia de dezembro de 1933.

À noite a turma colaria grau no salão nobre, na estica, de linho-branco, afinal vitorioso. Não era por orgulho ou outras diferenças que nós, Mário e eu, não compareceríamos incorpo­rados aos colegas para receber o ambicionado canudo, mas sim­plesmente por pobreza, bem compreendida e aceita com natura­lidade. O custo do linho-branco ultrapassava longe as nossas nenhumas posses, por mais que cavoucássemos no forro dos bolsos.

De chegada na pensão, o primeiro abraço foi de dona Antônia, que me desejou felicidades mil e um mundaréu de di­nheiro. Em seguida, atendendo ao pedido de Ritinha, fui até o seu quarto, para ouvir de seus lábios descorados as mesmas ex­pressões que a mãe usara. Retribuí a ambas, dizendo convenci­onalmente que esperava para breve o restabelecimento da doen-tinha. E escapei para o quarto, porque dona Antônia me infor­mara dum telegrama chegado pouco antes. Naturalmente, deve­ria ser de casa. Mas apesar de haver procurado esgueirar-me ao passar pela porta de dona Margarida, ela me deteve.

— Venha cá, doutor. As minhas felicitações. Que case com a moça dos seus sonhos!

— Obrigado. O mesmo lhe desejo. Que Dom Ramon se decida!...

Ela ria contente, demonstrando uma crença pueril no que ouvira, enquanto eu me mandava.

Em cima da mesa, o telegrama. Fiquei ansioso. O coração bateu forte umas vezes. Só poderia trazer um abraço de felicita­ções e dizendo que todos em casa me esperavam muito felizes. Abri-o com uma inquietação despropositada. Era mesmo da família, logicamente. Entretanto, a esta altura da vida, quarenta e oito anos depois, eu me questiono: tal telegrama existiu? A minha gente morando na campanha, longe da cidade, sem os hábitos citadinos desse tipo de demonstrações afetuosas e com dificuldade de transporte para chegar até o telégrafo... Bueno, faz de conta que recebi o telegrama.

Tenho a vaga impressão de que após a leitura do telegrama, real ou simples lembrança encobridora, me recostei na mesinha, apoiando-me nas suas bordas com ambas as mãos. Depois de dois anos, ia deixar aquela água-furtada, através de cuja janela me familiarizara com o desânimo da vista de telhados velhos e seus beirais, castigados pelas chuvas de pedra, pêlos vendavais de primavera, pêlos solaços de janeiro, pêlos muitos anos que infiltraram por eles cansaço e dor nas almas encolhidas que habitam embaixo deles e os chamam de "meu teto". Rememorando, simbolizei naquele todos os quartos de pensão onde morara desde a saída do internato. Diferiam quase nada entre si. Uma cama estreita, de lastro frouxo. Um lavatório de três pés. Um jarro de folha. Uma quartinha. Um balde de despejo, exalando odores amoniacais, por mais que eu evitasse mijar ne­les. Vinha de gerações aquele cheiro impregnado na vasilha. Guarda-roupa? Uns pregos esparsos pelas paredes, sustendo cabides ordinários de mil e quinhentos réis.

Nunca como naquele momento me pareceu mais sem conforto aquele cómodo apertado de pensão barata. Passo em revista o soalho sujo, encardido e carunchado, a colcha amarela que cobre a cama, o mosquiteiro rabão, pardacento, que tanto impressionara o poeta Augusto Meyer, e que mal me protegia a cabeça, nas noites quentes, contra os ferozes insetos zumbidores. A mesinha humilde, meio pasma, meio deslumbrada pelas ideias e imagens que em cima dela desata­ram voo. Muitas se extraviaram no ar, mas outras se juntaram, se tramaram e deram história. Minhas mãos a apertam naquele instante como num abraço de despedida. Debruçado sobre ela passei as horas mais proveitosas dos dois últimos anos, numa convivência silenciosa e atenta com os poetas, os prosadores e os manuais de medicina.

A um canto, enviesava-se um móvel guenzo, quebrado, esfolado, lascado pêlos excessivos maus tratos que outros, an­teriores a mim, lhe deram. O móvel sobressaía aos demais so­bretudo pela estima que eu lhe votava. Era uma modestíssima cadeira de vime, de assento fundo e côncavo, de encosto cómodo e braços arredondados, que um dia a escassa sobra de vinte mil-réis alcançara para adquiri-la, de acaso, ao passar num leilão. Sentado nele, os pés espichados sobre a cama, lera muito verso guapo e deixara evolar-se pela janela mil fantasias, algumas estremunhadas, outras desejosas de criar alma nova num conto.

— Ah, pensei que hoje... Por isso nem fervi a seringa.

— Não faz mal, dona Antônia, eu espero. E aquelas flores?

— São para o senhor — disse Ritinha, a voz minguada, sem um gesto.

— Por que fizeram gastos? Um buque precioso.

E enquanto aguardava as bolhas de fervura, acomodado numa cadeira de balanço, demorei-me a fitar a menina, encontrando-a definhada, as saliências ósseas mais agudas, os olhos negros mais negros e cintilantes, as olheiras pronunciadamente escavadas, os lábios cada vez mais finos, um risquinho apenas, e afogueadas as rosetas fatais. A expressão fisionómica adquirira uma tristeza obstinada, contrastando com o ar habitual de ingénua crença na ressurreição. Que dúvida, a piora fora consequência do corte iminente, talvez no outro dia, da nossa profunda e silenciosa confidência.

— Como não estará feliz a sua mamãe! — disse-me a velhinha, baixando os olhos, com aquele seu amargor de todos os dias, reticente e cândido.

Agradeço-lhe, dona Antônia, a sua manifestação de amor, da qual eu estava carente. Sinto a presença de sua sombra, am­bígua, que nem é sombra, é transparência, uma visão nesta ma­nhã lindíssima, inundada de luz, com o mistério do mar ali pertinho, e árvores, e canto de pássaros.

Mas voltemos para o ambiente de alma abafada do quarto de Ritinha. Como diríamos hoje, para aquele sufoco. Também Ritinha e o bafio daquela peça, uma mescla de cheiro de remédios, de vapores de folhas de eucalipto, de tuberculose e desesperança, são agora um ponto vago no espaço e no tempo, difíceis de evocar, porque não pertencem mais a este mundo, ao mundo correntoso dos meus dias atuais. Mas quem sabe? Farei um esforço. Ponho-me a olhar para dentro. Silêncio prolonga­do. Sim, dona Antônia, a minha mãe devia estar mesmo muito contente. Que me lembre, porém, não soube como lhe retribuir na hora, preso à aparência acabadinha da enferma, cujo desen­lace não esperaria por muito tempo. Chegaria ao inverno? Que esperança! Ao outono? Talvez a março. Para que calcular? Que adiantava?

Quadros desses eram duma familiaridade cotidiana nas cidadezinhas e nas capitais do território nacional.

Fiquei uns minutos, quem sabe se meia hora ou cinco se­gundos, considerando a inutilidade — uma verdadeira farsa, se não encerrasse um valor mais humano que o químico da  droga— das picadas diárias naquelas veiazinhas por onde circulava um pálido sangue minguante.

— Está pronta a seringa, doutor.

Sim, vinha da própria doentinha, expressando uma ânsia de querer viver, a voz que me surpreendeu no instante em que começava a não acreditar na possibilidade de que em sua laringe ressoasse uma palavra sequer, quanto mais uma frase.

Serrei a ponta da ampola. Enchi a seringa. Passei a borra­cha em volta do bracinho delgado. As veias encheram-se mal. Mesmo assim consegui espetar a agulha numa delas, uma agulhinha curta, a propósito, de bisel afiado e calibre fino. Cui­dadosamente e devagar fui injetando o líquido claro, requintan­do em habilidade, pois aquela seria a última injeção que aplica­ria na menina. Quando o êmbolo trancou no fundo, puxei a seringa. A operação transcorrera esplêndida.

— Não doeu nada, doutor.

— Nem uma ardenciazinha?                                       
Nada.

Mas onde diabo fora parar a agulha? Foi a pergunta súbita que me fiz, fixando, pasmado, o canhaozinho dourado embuti­do no bico da seringa. Fiquei confuso. E instintivamente levei a mão ao braço da menina, comprimindo-o com violência. Ela soltou um "ai" que foi menos de dor que de susto da minha cara transtornada. Mas continuei a apertar-lhe os músculos débeis cada vez com mais força, trémulo, fulo, o coração a bater sacudido por um tufão de medo. E só larguei o bracinho frágil ao constatar que a menina embranquecia e entrava em desfalecimento. Fitando-lhe o rosto imóvel, exclamei: morta! Recuei, levando as mãos à face como quem quer esconder dos próprios olhos uma realidade tenebrosa. Uma única explicação me ocorrera para aquilo, obsedante: a agulha havia subido pelas veias do braço, penetrado na subclávia, descido por veias gros­sas e, finalmente, ferido o coração! Bela estreia, ótimo começo, no dia da formatura...

Imobilizado na beira da cama, braços caídos em derrota, olhos fixos na lividez de Ritinha e dentro de mim nenhuma es­perança de salvação — eu pensava em levantar-me e fechar a porta, para ficar só com a minha vítima, purgando desesperadamente a minha caiporice. Por fim, chamaria dona Antônia. Que remédio! E que rebuliço iria convulsionar a pensão! Abaixei as pálpebras. Tudo embaralhando, turbilhonando em redor. Já ou­via o rumor de passos de pessoas estranhas, entrando atropeladamente para ver, bisbilhotar, dar fé. Olhares curiosos de gente querendo conhecer detalhes do fato, e como foi, como não foi, ora já se viu uma desgraça igual, quando menos se espêra... Seria imperícia? E naquele ir e vir ouviam-se murmúrios de suspeitas, as de sempre, nessas ocasiões. Alguém levantaria a hipótese de que o jovem médico era partidário da eutanásia. Um escândalo. A polícia chegando, o corpo sendo removido para o necrotério, para ser necropsiado. E no coração encontra­riam o corpo de delito!

Dez, vinte, trinta segundos, um minuto? Era-me impossível avaliar que tempo durara a minha perplexidade. Quando tornei a encarar a doentinha, percebi o leve arfar das narinas. As pupilas eram duas tristezas geladas.

Desviei o olhar para baixo da sua mesinha de luz. Um fiozinho metálico luzia entre duas tábuas do assoalho. Sem co­mentários, me agachei e apanhei a agulhinha. Sim, era ela, a bandida.

Ao deixar o quarto, notei a exaustão que pesava sobre meus ombros e não pude fugir à comparação clássica: mãos de chumbo me seguravam. La pucha, que experiência!

Pela janela do corredor, divisei um avião deslizando entre nuvens. Um detalhe insignificante cortando o fio da história.

 

*in: A dama do saladeiro: histórias vividas e andadas.
Porto Alegre: Movimento, 2000. (pgs: 57-63)

Leia o Discurso de Formatura que, na impossibilidade de ser lido na cerimônia, foi lido  por Cyro Martins na Festa de Despedida dos Doutorandos  de 1933.