A Andrade Neves Neto
1
FOI ASSIM:
num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.
Os homens viveram abichornados, na tristeza dura: e porque churrasco não haviam, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os tições...
Os olhos andavam tão enfarados da noite que ficavam parados, horas e horas, olhando, sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai... As brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes.
Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência: até nem sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia andando... Ia andando...
2
Minto:
no meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar: era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já...
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu - quero=quero! - tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia agüentando a esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento, então, nem nada.
3
Minto:
na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d’alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d’água que levou um tempão a cair, e durou... E durou...
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num: os passos cresceram e todo aquele peso d’água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E era terneiros e pumas, touradas e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!...
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas boiavam os ratões e outros miúdos.
E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na cobra-grande, a - boiguaçu - que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando.
Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer as carniças. Mas só comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia.
4
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira, que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também nos homens, que até sem comer nada dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e toma tenência doble com os raiados e baços!...
Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que, tantos olhos comeu.
5
Todos - tantos, tantos! Que a cobra-grande comeu -, guardavam, entranhado e luzindo, um rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos - tantos, tantos! - com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no princípio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada...
6
E vai, como a boiguaçu não tinha pelos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era um luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu, azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos.
7
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela primeira vez viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra de fogo, boitatá, a boitatá!
E muitas vezes a boitatá rondou as rancheiras, faminta, sempre que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente - tatá, de fogo - que media mais braças que três laços de conta e ia alumiando baçamente as carquejas... E depois choravam. Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos, e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfaravam...
8
Mas, como dizia: na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era por ela que o téu-téu cantava de vigia, em todos os flancos da noite.
Passado um tempo, a boitatá morreu: de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo, mas lhe não deram substância, pois que substância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos...
Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, abre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como coisa da terra, que se estraga de vez.
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí.
E até pareceu coisa mandada: o sol apareceu de novo!
9
Minto:
apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no coloreado do céu; depois foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir uma lista de luz... Depois a metade de uma cambota de fogo... E já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.
10
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, paranascer de novo: só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu.
Anda sempre arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada.
Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário.
A boitatá, toda enroscada, como uma bola - tatá, de fogo! - empeça a correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagado... E quando um menos espera, aparece outra vez, do mesmo jeito!
Maldito! Tesconjuro!
11
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechado apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrondilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lhe em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... Mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emutilar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.
Campeiro precatado! Reponte o seu gado da querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste...
Tenho visto!
IN: Simões Lopes Neto. Obra completa. Porto Alegre, Sulina, 2003. p. 410-414.
Simões Lopes nasceu em 1865 na estância da Graça, nos arredores de Pelotas, Rio Grande do Sul. Apontado pela crítica como um dos maiores escritores da literatura gaúcha e brasileira, precursor de João Guimarães Rosa, é autor de uma obra pequena mas que nasceu para ficar: Cancioneiro Guasca, 1910; Contos Gauchescos, 1912; Lendas do Sul, 1913; Casos do Romualdo (folhetim de jornal em 1914, livro póstumo em 1952); Terra Gaúcha, publicado também postumamente, em 1955. Foi ainda autor de várias peças de teatro e muitos artigos de jornal. O conto escolhido é de Lendas do Sul e se tece a partir do cruzamento das histórias da cobra de fogo, a Boitatá, considerada uma superstição popular, com outras cobras lendárias, como a Boiuna e a Cobra Grande, mais os mitos do nascimento do dia e do dilúvio. Esse texto híbrido --conto-mito-lenda-- consegue, através de um estilo ao mesmo tempo simples, solene e sonoro, recompor a unidade perdida. Se a superstição é o mito desintegrado, aí ela reencontra o todo de que saiu. Assim, em vez de fazer rir das crenças do gaúcho pobre, como faziam alguns regionalistas brasileiros na época, Simões Lopes recupera, pela sua escrita, tanto a dinâmica da fala do narrador popular, como a verdade do mito.
Ligia Chiappini
Profa. de Literatura e pesquisadora