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Uma das características que mais admiro na tese de Fábio Varela Nascimento - Cyro Martins - os anos decisivos é o diálogo dele com os fatos, os dados, as situação de vida de Cyro Martins que, não raro, ficam como pontas soltas, mas cujas lacunas o pesquisador vai preenchendo, pela reflexão e por relações significativas, levando seu leitor a pensar junto. No excerto que segue há um tanto disso. (MHM)

 

 

UMA NOVA ESTRADA NA FORMAÇÃO*

Fábio Varela Nascimento**

           

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            Entre 1926 e 1927, Cyro não frequentou nenhuma instituição de ensino e é difícil de saber, até mesmo, onde morava. Ele voltou a Quaraí após o trágico incêndio, mas é complicado afirmar que tenha ficado por lá até a data da inscrição no vestibular da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, em 12 de março de 1928[1].

Cyro não falou sobre esse período nos textos de Rodeio ou nos diálogos com Slavutzky em Para início de conversa.No volume da série Autores gaúchos dedicado a ele, 1926 e 1927 também não figuram na cronologia que traz momentos importantes de sua vida e de sua obra. Esses fatos mostram que, durante os dois anos nebulosos, foram poucos os rastros deixados por Cyro. Por que apagar 1926 e 1927? Por que fingir que não viveu nesses dois anos? As duas questões não têm respostas exatas, no entanto, é possível fazer algumas suposições em torno delas.

Quando se deu o sinistro no Cerro do Marco, Cyro quis interromper os estudos para auxiliar na reconstrução da casa e do armazém. A vontade de ajudar deve ter continuado até a chegada das férias e a saída do Anchieta. Os Martins só deixaram a estância emprestada pelo Coronel Prates em 1927, o que leva à conclusão de que a reforma no Cerro do Marco ocupou 1926 e partes de 1925 e 1927. Nesse período, Cyro poderia estar na terra natal, trabalhando com Bilo e com o resto da família para reerguer o que haviam perdido. Se fizesse parte da reconstrução, Cyro não falaria sobre o fato? Tão ligado à figura do pai e à imagem do Cerro do Marco, Cyro não escreveria e não diria uma palavra sobre o momento de união familiar que levou ao reerguimento da moradia e da venda? O homem que tanto escrevia sobre si não lembraria de ter exercido um papel, por menor que fosse, naquele episódio tão importante para os rumos dos Martins?

A falta de comentários sobre o episódio também não é um indicador decisivo para a sua ausência ou a sua permanência no Cerro do Marco. Se ele não estava lá, poderia estar em Porto Alegre, o segundo lugar que mais conhecia. No entanto, nos tempos em que os Martins moraram de favor, a maioria de seus recursos era voltada para a reforma. Desse modo, pouco sobraria para a manutenção de Cyro em Porto Alegre. Ainda que ele utilizasse os serviços das pensões mais baratas, comesse pouco e se vestisse mal, estar em Porto Alegre, sem compromissos acadêmicos e sem emprego, seria um desperdício de dinheiro.

Algumas raras pistas apontam que o rapaz de dezoito para dezenove anos esteve em Porto Alegre em determinadas datas, principalmente naquelas próximas ao término do ano e aos exames finais dos preparatórios. Em 23 de dezembro de 1926, Cyro prestou, no Anchieta, exame para Geometria, sendo “aprovado simplesmente”, com nota 5. Já em 29 de dezembro de 1927, ocorreram as avaliações de Inglês, Latim, História Natural, Física e Química. Na primeira delas, Cyro teve seu melhor desempenho – “aprovado plenamente, com nota 8” –; em Latim e História Natural, voltou ao “aprovado simplesmente” e à nota 5; em Física e Química aconteceu o pior, foi reprovado[2].

A presença de Cyro nessas avaliações é relevante. Ele não buscava as notas finais apenas com a intenção de concluir o Curso Ginasial, ele pretendia ingressar em uma faculdade e, para que isso acontecesse, aquela etapa era necessária – assim como era preciso que ele se preparasse para os exames. Onde aconteceu essa preparação, em Quaraí ou em Porto Alegre? É mais provável que na capital. Em Para início de conversa, quando responde a Slavutzky sobre alguns de seus amigos da época de estudante, Cyro fala de um tal Chico, Francisco de Almeida Maciel, também natural de Quaraí e um dos poucos que fez Cyro “experimentar a vibração do gênio”. Chico entrou na Faculdade de Medicina em 1927, era dotado de grande inteligência e possuía “dons didáticos”, pois deu muitas aulas de Física, Química e Geometria a Cyro[3]. Como Cyro foi aprovado no exame de Geometria no final de 1926 e participou das avaliações de Física e Química em dezembro de 1927, as lições sobre as disciplinas devem ter ocorrido ao longo desses dois anos.

            Embora a fragilidade da hipótese, é plausível pensar que as aulas de Chico aconteciam esporadicamente e, por isso, podiam se dar em algumas viagens de Cyro a Porto Alegre ou de Chico a Quaraí. Os rapazes atravessariam o Rio Grande do Sul por umas poucas horas de Física e Química? Provável que não. Além disso, há outros rastros que alimentam a ideia da permanência de Cyro na capital. Em julho de 1926, surgiu a Vibração: revista de literatura e illustração. Victor Graeff, César Santos e Alexandre Ribeiro eram os editores do periódico e, logo na primeira página, afirmaram que a Vibração nasceu do “entusiasmo de uma falange de moços estudantes”[4]. Cyro estava entre esses moços, pois, no número inaugural da revista, entre os textos de José Salgado Martins, João Otávio Nogueira Leiria e fotografias dos “Templos de Ensino” do Estado, apareceu, com assinatura de Cyro dos S. Martins e dedicatória a André Carrazzoni, uma narrativa curta intitulada “Viagem noturna”.

A publicação de Cyro é importante por diversos aspectos – inclusive o de sua presença em Porto Alegre. O texto de Vibração mostra o crescimento das aspirações literárias de Cyro e não é apenas por criar e por publicar que as ambições se tornam perceptíveis. Entre os dois atos, há outro, ligado à inserção do autor iniciante em um determinado sistema. Cyro, Dante de Laytano, José Salgado Martins, Percy de Abreu Lima, Francisco de Almeida Maciel e Aparício Cora de Almeida liam e discutiam suas produções em prosa e verso em um grêmio literário. Segundo as informações do fascículo “Cyro Martins”, da série Autores gaúchos, o grêmio foi fundado em 1923 e, através dele, surgiu a Vibração[5]. De fato, textos de Cyro e de outros membros do grupo, como José Salgado Martins, saíram na revista, mas ela não era dirigida por nenhum deles. Também é difícil conceber que aqueles jovens divididos entre pensões baratas tivessem recursos para imprimir e fazer circular um periódico que beirava as 80 páginas e trazia ilustrações. Essas questões, mesmo que pouco claras, não apagam o episódio no qual Cyro se envolveu com grupos de aspirantes a intelectuais. Era preciso estar no meio dos acontecimentos e entre aqueles que se movimentavam. Ao ingressar em grêmios e colaborar em jornais ou revistas, Cyro demarcava, de forma lenta e gradual, seu espaço. A dedicatória a André Carrazzoni é mais um sintoma do estabelecimento de relações e da busca por espaços. O diretor de A Liberdade já publicara um artigo de Cyro e oferecer-lhe o conto era uma maneira de agradecê-lo pela oportunidade e de manter as portas do jornal abertas.

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* Fragmento de Cyro Martins os anos decisivos (1908-1951). Fábio Varela Nascimento. Porto Alegre: Movimento, 2019, p. 59-61        

** NASCIMENTO, Fábio Varela. Cyro Martins – os anos decisivos (1908-1951). Porto Alegre: Movimento, 2019, p. 59-61.

Doutor em Teoria da Literatura PUCRS

http://lattes.cnpq.br/4587113398031609

 

 

 



[1]Os documentos referentes ao período de Cyro na Faculdade de Medicina se encontram na secretaria da FAMED da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na caixa 122, que, na verdade, é um envelope, estão: a cópia autenticada da certidão de nascimento de Cyro, os boletins que comprovam as aprovações nas matérias cursadas no Anchieta, diversos requerimentos, solicitando inscrição para o vestibular, matrículas, inscrições para os exames finais, correspondências referentes à situação de Cyro na faculdade e uma folha datilografada, datada de 02 de junho de 1941, na qual aparecem todas as notas atingidas por Cyro durante o curso de Medicina.

 

[2]Notas de Cyro no Anchieta segundo os boletins do envelope 122.

[3]MARTINS, Cyro. Para início de conversa. Porto Alegre: Movimento, 1990, p. 36.

[4]GRAEFF, Victor; RIBEIRO, Alexandre; SANTOS, César. Editorial. Vibração: revista de literatura e ilustração, Porto Alegre, n. 1, p. 1, julho 1926.

[5]A informação sobre o grêmio encontra-se em Autores gaúchos – Cyro Martins, 1997, p. 11.