Um encontro com Cyro Martins | Imprimir |

Um encontro com Cyro Martins - Léa Masina

 

Aconteceu quando, muito jovem, eu trabalhava no Instituto Estadual do Livro. E ,ao mesmo tempo, cuidava dos filhos pequenos e preparava minha dissertação de Mestrado. Há fases na vida em que é preciso multiplicar as horas e, muitas vezes, o descanso, o relaxamento e uma noite bem dormida são projetos bem difíceis de realizar. 

Foi nessa fase que, por sugestão de amigos, comecei a tomar e apreciar vinhos. Tive a sorte de conviver, nessa época, com a Professora Isolda Paes, então dedicada a orientar "sommeliers" de restaurantes locais . Ela organizava em sua casa sessões de degustação, aulas completas que abrangiam desde o conhecimento geográfico das regiões vinícolas, distribuídas em mapas,  até a identificação de odores, sabores e procedência das diferentes uvas. Para ela, estimular o gosto e o conhecimento dos bons vinhos do mundo era mais uma missão cultural.

Em casa, aos poucos, buscando equilibrar as energias, descobri o efeito organizador do whisky que, bebido na dose certa,  funciona como um poderoso ansiolítico, qualidade associada à delícia harmoniosa do seu paladar. Puro prazer.

Às vezes, porém, desconfiava de que vinho e whisky, sempre  bem vindos como relaxantes, tendiam a tornar-se também parceiros habituais. E estava preocupada com isso quando encontrei, por acaso, Dr. Cyro Martins, num evento do Instituto Estadual do Livro. Nós já nos conhecíamos por trabalharmos juntos em encontros literários. Ele adorava as viagens que fazíamos às cidades do interior do Estado, cumprindo uma agenda de encontros com alunos de escolas locais.  Então, sentia-me a vontade para abrir-me com ele sobre o hábito que, com certeza adquiria,  e cujas consequências – e eu imaginava as mais desastrosas - fatalmente me aguardavam a curto prazo.

Cyro me escutou atento, sentado, com paciência, a cabeça inclinada para a frente, os braços cruzados no peito. Quando terminei o relato da luta contra o tempo, da minha pequenez ante a imensidão dos projetos que tinha pela frente, encerrando a narrativa com a questão etílica, ele me perguntou, com voz bondosa, quando e a que horas eu bebia. Respondi. Ele continuou:   E qual é o whisky que preferes ?  Quase envergonhada, respondi que era o Johnny Walker Double Black. E os vinhos que tomas ?  Quase arrasada, temendo o sombrio diagnóstico, lembrei  os locais, chilenos, argentinos, e  enumerei alguns.

Cyro parou de falar e me olhou, pensativo.  Depois do silêncio, que me pareceu eterno, concluiu com picardia : "Não te preocupa, não és alcoólatra... Mas és uma mulher de muito bom gosto".

Saudades do Velho Cyro.