RIO GRANDE DO SUL, UM ESTADO DE FRONTEIRA | Imprimir |

Ruben George Oliven - Antropólogo


O Rio Grande do Sul é geralmente considerado como ocupando uma posição singular em relação ao Brasil. Isso se deveria às suas características geográficas, à sua posição estratégica, à forma de seu povoamento, à sua economia e ao modo pelo qual se insere na história nacional. Apesar do estado ter uma grande diferenciação interna (do ponto de vista geográfico, étnico, econômico e de sua colonização), ele é freqüentemente contraposto como um todo ao resto do país, com o qual manteria uma relação especial, a ponto de ser às vezes chamado jocosamente por outros brasileiros de "esse país vizinho e irmão do Sul".

Historicamente, um tema recorrente na relação do Rio Grande do Sul com o Brasil é justamente a tensão entre autonomia e integração. A ênfase nas peculiaridades do estado e a simultânea afirmação do pertencimento dele ao Brasil se constitui num dos principais suportes da construção social da identidade gaúcha que é constantemente atualizada, reposta e evocada.

Primeiro haveria o que é chamado de "o isolamento geográfico do Rio Grande do Sul" e que seria responsável por sermos "um todo separado do mundo pelos areais litorâneos, pelos rios, pelas serras e pelas selvas"(1). A natureza, ao mesmo tempo que nos teria premiado com um espaço físico dos mais favorecidos e benéficos às atividades humanas, nos teria contemplado com uma posição de difícil acesso, ilhando-nos no Continente de São Pedro e fazendo com que este ficasse isolado por dois séculos do Brasil.

A essa peculiaridade geográfica somar-se-ia uma história sui generis. Ela inicia com uma integração tardia ao resto do país. Assim, embora descoberto no começo do século XVI, o Rio Grande do Sul só começa a se articular às atividades econômicas do Brasil colonial mais de um século depois através da preia do gado xucro cujo objetivo era a exportação de couro para a Europa que era feita através de Buenos Aires ou Sacramento. É recém no final do século XVII que estes rebanhos ganham importância a nível nacional pois passam a ter um mercado interno na florescente mineração da zona das Gerais, o que estimula paulistas e lagunistas a virem prear o gado xucro existente no Rio Grande do Sul e a levá-lo à área de mineração.

O objetivo da coroa portuguesa era, entretanto, o de povoar as terras que iam do sul de São Vicente até a Colônia de Sacramento (fundada por ela em 1680) e nesse sentido o Rio Grande do Sul desempenhava "uma função estratégica, como ponto de apoio para a conservação do domínio luso no Prata"(2). Isto faz com que no começo do século XVIII a Coroa começasse a distribuir sesmarias aos tropeiros que se sedentarizaram e aos militares que se afazendaram, criando-se assim as estâncias de gado. Os conflitos militares em torno da Colônia de Sacramento e as disputas relativas à delimitação de fronteiras significou uma crescente militarização da região, que em 1760 foi elevada à condição de capitania com o nome de Capitania do Rio Grande de São Pedro.

A posição estratégica do Rio Grande do Sul faz com que ele seja visto como uma área limítrofe que estaria nas margens do Brasil e que poderia tanto fazer parte dele como de outros países dependendo do resultado das forças históricas em jogo. Respondendo a uma escritora nordestina que considerava os gaúchos acastelhanados e pertencendo mais à órbita platina do que à brasileira, o romancista Érico Veríssimo assim definiu essa situação de liminaridade:

Somos uma fronteira. No século XVIII, quando soldados de Portugal e Espanha disputavam a posse definitiva deste então "imenso deserto", tivemos de fazer a nossa opção: ficar com os portugueses ou com os castelhanos. Pagamos um pesado tributo de sofrimento e sangue para continuar deste lado da fronteira meridional do Brasil. Como pode você acusar-nos de espanholismo? Fomos desde os tempos coloniais até o fim do século um território cronicamente conflagrado. Em setenta e sete anos tivemos doze conflitos armados, contadas as revoluções. Vivíamos permanentemente em pé de guerra. Nossas mulheres raramente despiam o luto. Pense nas duras atividades da vida campeira - alçar, domar e marcar potros, conduzir tropas, sair para faina diária quebrando a geada nas madrugadas de inverno e você vai compreender por que a virilidade passou a ser a qualidade mais exigida e apreciada do gaúcho. Esse tipo de vida é responsável pelas tendências algo impetuosas que ficaram no inconsciente coletivo deste povo, e explica a nossa rudeza, a nossa às vezes desconcertante franqueza, o nosso hábito de falar alto, como quem grita ordens, dando não raro aos outros a impressão de que vivemos num permanente estado de cavalaria. A verdade, porém, é que nenhum dos heróis autênticos do Rio Grande que conheci, jamais "proseou", jamais se gabou de qualquer ato de bravura seu. Os meus coestaduanos que, depois da vitória da Revolução de 1930, se tocaram para o Rio, fantasiados, e amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco - esses não eram gaúchos legítimos, mas paródias de opereta.(3)

Nessa citação, Erico Verissimo evoca elementos que são recorrentes no discurso gaúcho. O primeiro é o caráter de fronteira de nosso estado. O segundo é a escolha: o Rio Grande preferiu fazer parte do Brasil quando poderia ter optado por pertencer ao antigo Império espanhol. O terceiro é o alto preço pago por essa opção e que é representado pelas guerras em que o estado esteve envolvido e pela necessidade de se insurgir contra o governo central quando se sente vítima de injustiças ou de intervir na política nacional em momentos de crise. O quarto elemento é a existência de um tipo social específico - o gaúcho - marcado pela bravura que é exigida do homem ao lidar com as forças da natureza e a árdua vida campeira. Finalmente, o quinto elemento toca na questão da autenticidade de costumes e comportamentos. Temos também a presença das mulheres que aparecem na condição de enlutadas. Elas comparecem nesse texto de forma indireta como a conseqüência da ação beligerante dos homens. Mas é a elas, na condição de órfãs, viúvas e mães que perderam seus filhos que caberá com freqüência assumir a responsabilidade de sustentar a família. Elas criam (dão à luz) enquanto os homens destroem (matam).

O que se depreende desse conjunto de elementos é um clima de adversidades que têm de ser constantemente enfrentadas. A necessidade de garantir fronteiras, dominar a natureza, rebelar-se contra os desmandos do governo central, além os conflitos internos do próprio estado, ajudariam a explicar o caráter um tanto fogoso que já teria se incorporado ao inconsciente coletivo gaúcho.

As peculiaridades do Rio Grande do Sul contribuem para a construção de uma série de representações em torno dele que acabam adquirindo uma força quase mítica que as projeta até nossos dias e as fazem informar a ação e criar práticas no presente.

Ruben George Oliven
é Professor da UFRGS


Notas:
1. PRUNES, Lourenço Mário. "O Isolamento Geográfico do Rio Grande do Sul". In: Fundamentos da Cultura Rio-Grandense.. Quinta Série. Porto Alegre, Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, 1962, p. 143.

2.PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1980, p. 13.

3. VERISSIMO, Erico. "Um Romancista apresenta sua Terra". In: Rio Grande do Sul: Terra e Povo. Porto Alegre, Globo, 1969, p. 3-4.