Prosa de Cyro | Imprimir |

Flávio Wolf de Aguiar*


Recentemente trabalhei no estabelecimento de duas antologias. A primeira chama-se Com palmos medida: terra, trabalho e conflito na literatura brasileira e a segunda, A escola e a letra. Aquela deve ser publicada ainda em 99 e esta provavelmente em 2000. Com palmos medida trata dos dramas da ocupação da terra no Brasil, e seu espelhamento, que á vasto e generoso, em nossas letras. A escola e a letra tem por tema a educação, no sentido amplo, constando de textos literários que tratem dos problemas e realizações da formação humana em nossa terra, através de memórias, poemas, contos, crônicas e uma infinidade de outros gêneros.

Em ambas as antologias a obra de Cyro está presente. Na primeira, obviamente, por suas preocupações com o gaúcho pobre, dito "a pé", despilchado, que termina expulso da terra e na época (década de 30 e subseqüentes) migra para a cidade. Na segunda, pela mesma preocupação: mostra-se ali a descrição de uma escolinha de campanha, aberta por conveniência política do estancieiro local, no tempo da palmatória. Escolhi o capítulo 13 do romance Sem rumo, de 1937. Nele o personagem Chiru, ainda menino, enfrenta manhã de geada braba para ir à escola fazer face e um mestre improvisado, grosseiro e rude que só entende na verdade daquele instrumento de castigo.

Para a primeira antologia, decidi que o viés com que Cyro a ela compareceria era o da denúncia do mandonismo, tão característico de nossa campanha gaúcha como de outras latitudes brasileiras. Sem ser de caso pensado, escolhi o capítulo 12 do mesmo romance, onde o estancieiro nomeia um de seus posteiros mais pobres e rudes como professor, pois as eleições se aproximam e os chefes políticos querem que por ali haja uma escola, para mostrar as realizações do governo. Sobre todos paira a figura vetusta do Dr. Borges de Medeiros, que governou nossa bela província durante 28 anos ininterruptos.

Neste jogo Cyro cria uma imagem de continuidade e reprodução de mandonismos, indo desde o chefe da província até a ponta da palmatória, mostrando como uma coisa prepara e encilha a outra, para reproduzir um vocabulário de campanha. E foi com uma certa dose de surpresa que constatei pela primeira vez com clareza que os capítulos podiam ser lidos com uma certa independência. É óbvio que o sentido final de cada um se completa com a leitura complementar do outro e do romance inteiro; mas eles têm uma certa consistência de conto, narrando um a cena cômica, se não fosse trágica, da nomeação improvisada de um professor bronco, e o outro a cena da descoberta de um novo mundo pelo guri enregelado. Foi inevitável pensar na estrutura de Vidas secas, de Graciliano Ramos, contemporâneo de Sem rumo. Há uma certa descontinuidade narrativa, portanto, que pode ser interpretada como marca de estilo característica da época. No caso de Graciliano essa descontinuidade espelha o esgalhamento de espírito que se desenha na vida íntima dos personagens: a pobreza de linguagem, a inexistência ou quebra dos nexos, uma visão de mundo que se constitui mais como lampejos e fagulhas do que como um crepitar contínuo. Vidas secas, neste sentido, é um enorme sintagma em indireto livre. Mas Sem rumo não, embora o indireto livre também esteja presente. Esta descontinuidade ressalta portanto sua evidência como algo, uma cunha, característica em primeiro lugar da consciência do narrador. Há nela uma espécie de perplexidade do espírito (e quem conheceu Cyro sabe o quanto ele, em sendo um homem de princípios firmes, era avesso a dogmas) diante daquelas vidas pobres, uma espécie de ironia dramática ao revés, como se o narrador em terceira pessoa, supostamente onisciente, não fosse afinal tão onisciente assim. E celebrasse, de modo modesto e humilde como as vidas de seus personagens, o mistério maravilhoso da existência que nelas se manifesta.


*Flávio W. Aguiar
é professor, escritor e crítico


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