FREUD PASSEIA NA RUA DA PRAIA* | Imprimir |

Ruggero Levy**


Cyro Martins foi um dos primeiros intelectuais a divulgar a psicanálise

Cyro Martins, psicanalista e escritor, com seu talento poético, sua sensibilidade aguçada aos mínimos detalhes da experiência emocional, nos ajuda a visualizar a presença de Freud em Porto Alegre, já nos idos de 1939. A presença do criador da psicanálise em nossa cidade se faz notar não apenas como notícia de seu falecimento, mas já como um pensador de alta relevância, com uma compreensão profunda do homem como um portador de ansiedades e pulsões que podem fazê-lo destruir as construções da civilização por ele mesmo empreendidas, ou torná-lo um ser altamente criativo.

Na verdade, a presença de Freud em Porto Alegre já ocorria desde os anos 20, com as primeiras traduções de seus trabalhos ao português e os primeiros grupos de estudos formados por psiquiatras e intelectuais da época, notadamente Dyonélio Machado, conhecido escritor e psiquiatra daqueles tempos. Mas o primeiro psicanalista de nossa cidade foi Mário Martins, que, em Buenos Aires, se analisou com Angel Garma. A capital da Argentina era - e segue sendo até hoje - um grande centro da psicanálise mundial, visto que os analistas de lá recém haviam retornado da Europa, após se analisarem com grandes psicanalistas daquele continente.

Mário Martins retornou a Porto Alegre em 1947 e, posteriormente, ele, Cyro Martins, Celestino Prunes e José Lemmertz organizaram a Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), que foi oficialmente reconhecida pela International Psychoanalytical Association (IPA), em 1963. Os fundadores da SPPA imprimiram-lhe suas características. Parte deles, a exemplo de Mário, Celestino e Prunes, dedicou-se mais ao aprimoramento interno na formação dos novos psicanalistas, com muita seriedade e cuidado, ao mesmo tempo em que se ocupava da Faculdade de Medicina da UFRGS. Outros, especialmente Cyro Martins, por sua condição de escritor, estreitavam os laços com o meio cultural, motivando inúmeros jovens a se interessar pela psicanálise.

A psicanálise em nosso meio, então, foi se desenvolvendo em múltiplas frentes: internamente, aprimorando constantemente o padrão de formação dos novos analistas; em sua frente junto à universidade, em contato direto com a pesquisa científica e com o ensino de Medicina e posteriormente de Psicologia; e em sua frente junto ao meio cultural. Entretanto a característica marcante da psicanálise aqui praticada sempre foi sua preocupação central em aprimorar o método de tratamento do sofrimento humano. Sua ancoragem na clínica e sua preocupação com a ética fortaleceram sua credibilidade.

Porto Alegre foi se tornando um centro psicanalítico importante não apenas pelo acima descrito e pela proximidade com Buenos Aires, mas porque gradualmente foi sendo estabelecido um intercâmbio de alta densidade científica nos anos 70, 80 e 90, com psicanalistas ingleses, franceses, americanos e mais recentemente italianos, que foram reconhecendo o nosso meio como um centro de excelência.

O desenvolvimento da psicanálise em Porto Alegre redundou, em 2001, com o reconhecimento por parte da IPA de uma segunda sociedade psicanalítica, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, formada por psicanalistas que eram membros da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e de outros que haviam feito sua formação analítica diretamente em Buenos Aires. Outros grupos psicanalíticos, especialmente os de orientação lacaniana, também foram se desenvolvendo de modo intenso.

Essa trajetória foi coroada com a eleição de Cláudio Eizirik à Presidência da Associação Psicanalítica Internacional. Membro efetivo e analista didata da SPPA, Eizirik é o primeiro brasileiro a presidir a IPA, entidade maior da psicanálise internacional, fundada por Sigmund Freud em 1910.

Como vemos, temos muito a festejar no próximo dia 6 de maio, quando se comemoram os 150 anos do nascimento de Sigmund Freud. A Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e o Memorial do Estado do Rio Grande do Sul promovem um grande evento, que pretende justamente destacar o impacto das idéias psicanalíticas no tratamento do sofrimento humano e na cultura em geral.

Freud estará presente novamente na Rua da Praia, ou próximo a ela, como naquela manhã de 1939, tão belamente descrita por Cyro Martins. Entretanto, não será para noticiar sua morte, mas sim o quanto estão vivas e pujantes suas idéias.

"Numa manhã nublada, a manhã de 22 de setembro de 1939, eu subia a ladeira da rua principal da minha cidade, a Rua da Praia, com um jornal na mão, o Correio do Povo, atento às notícias da guerra, da flamante guerra de apenas três semanas, quando, inesperadamente, num canto da segunda página, embaixo, à esquerda, deparei com um telegrama de Londres, que me soou insólito naquele momento histórico, consagrado aos males bélicos. Noticiava-se o falecimento, ocorrido na véspera, de Sigmund Freud, o criador da psicanálise, como dizia o jornal.

"Experimentei um impacto de singular riqueza, pela complexidade de seus estímulos... Eu sabia que Freud estava velho e enfermo, pois acompanhara através da imprensa diária, mais especialmente a revista francesa Conferência, sua curta estadia em Paris, procedente de Viena, exilado pelos nazistas, e viajando com destino a Londres. Contemplara comovidamente a fotografia do sábio ancião saindo do aeroporto, entre o embaixador americano na França e sua amiga e discípula princesa Marie Bonaparte. Sua aparência era a de uma pessoa combalida, pelos anos, pela doença e pelas apreensões dolorosas da hora. Entretanto, o brilho de seu olhar inquieto, de humanidade ferida, que se surpreende transpassando a vidraça do automóvel e as lentes do óculo, num instantâneo flagrado ao desembarcar em Londres, bem evidenciava sua lucidez e a força de penetração de sua visão mental das ansiedades e conflitos que ligam, nivelam e separam os homens."

(Cyro Martins, em Perspectivas do Humanismo Médico, 1973)


* Matéria transcrita de Zero Hora, Porto Alegre - 29/04/2006 - com autorização da redação e do Autor, Ruggero Levy.

** Dr. Ruggero Levy é médico psicanalista, atual Presidente da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre(SPPA)