Das páginas de hoje: aliando dois ensaios do Dr. Cyro Martins | Imprimir |

*Cibele Pires Ferrari

 

Vasculho na memória algumas vivências e penso qual se aproximaria com mais propriedade dos ensaios que li, de autoria do Dr. Cyro Martins. Considerando “Bases Psicodinâmicas da Delinqüência” e “Reflexões Psicanalíticas sobre a Família” em minha realidade profissional, tenho um tesouro nas mãos! Se fechar os olhos para a ortografia, data, época, enfim, quando Dr. Cyro produziu esses ensaios, diria que estava lendo o jornal de hoje, escutando notícias sobre política no rádio, sabendo dos últimos acontecimentos gerais  em termos sócio, político, econômico, policial... Além do mais, diria ser possível identificar  a dinâmica familiar atual e suas vicissitudes.

E é pela família que começo minha perspectiva. Tenho algumas experiências profissionais em abrigos. Abrigos tipo residenciais, abrigos tipo institucionais, realidades diferentes entre si. Populações diversas, histórias de vida que só um ambiente como esse pode dar a oportunidade a um profissional “conhecer”. Refletir sobre algumas razões que levam um menor ser retirado da família para habitar um abrigo faz-nos pensar quão frágeis são essas relações, em nossa época. Por exemplo, quando a família  representa risco ao menor, este pode ser levado a ficar por anos e, em alguns casos, para vida toda, em um abrigo institucional. Ali, fatores como identidade e individualidade vão se perdendo ao longo do tempo.

Falar em fragilidade das relações chegaria a soar leve aos ouvidos, porém sabemos que a realidade dos abrigados com suas famílias vai muito além de tal questão.

É fato que a medida de proteção ao menor dirige-se principalmente ao bem-estar da criança; sabe-se, também, que a família faz parte desse contexto. Contudo, quando a família oferece risco, como maus-tratos, abuso, negligência, a proteção entra em ação. Ocorre que muitos dos menores que vejo em situação de acolhimento, pelas razões citadas acima, se encontram com sequelas graves, marcas que ficaram daqueles que hoje perderam a guarda desses menores.

Sempre tenho a sensação de impunidade desses agressores, independente de qual pena estejam cumprindo, algo que poderíamos entender como insuficiência na pena aplicada à delinquência. O estado físico, neurológico e psicológico das crianças me causa essa impressão.

A frase que se encaixaria muito bem nesse contexto, retirada do “Bases Psicodinâmicas da Delinqüência” é aquela em que Dr. Cyro relata a perturbação da função sintética do ego no indivíduo delinqüente. Então, diz: “Daí o déficit de autocrítica, a desconsideração da realidade e a sempre possível eclosão criminosa”. Nesse sentido, inclino-me a pensar no sujeito causador da situação de risco ao menor.

Essa reflexão que o autor aponta me faz perceber que não somente no ambiente profissional tenho a contribuição de exemplos, mas também relembro um acontecimento recente ocorrido na vizinhança do bairro onde moro. Relato de maneira muito resumida: o marido descobriu possível envolvimento da esposa com outro homem, através de e-mails, e assassinou a mulher e o filho de cerca de 6 anos de idade. Logo tentou o suicídio pulando de uma ponte, mas pescadores o salvaram. Em relato à polícia, o suspeito disse que a mulher estava viajando com o filho, sendo que ele os havia matado.

Esse exemplo nos mostra claramente o déficit do sentido de realidade, de autocrítica, da capacidade de síntese do ego, bem como a busca no crime a forma de fugir da realidade que o cerca. Isso fica demonstrado claramente quando ele diz, em outro momento, que matou o filho porque o menino não suportaria a saudade da mãe.

É possível inferir que um ego sem condições de adaptar-se terá muitas dificuldades. Refiro-me ao fato de que hoje, - e já como se conta nos ensaios-, a capacidade de adaptação do ego não é importante somente para a construção de uma personalidade saudável o quanto possível, mas também para uma sobrevivência socialmente saudável. A sociedade, os avanços tecnológicos, a competitividade econômica: todos esses elementos assombram muitas vezes o viver cotidiano de cada um.

Assim, torna-se cada vez mais desafiante saber viver “adequadamente”, saber fazer correto, saber ensinar as crianças sobre o que é correto. “Reflexões Psicanalíticas sobre a Família” traz a saga da criação dos filhos, o que é correto e o que não é e um mar de dúvidas em que todos já mergulharam, penso eu. O medo que subjaz é a formação de indivíduos cujo ego não tenha condições de adaptar-se, irrompendo na ‘sempre possível eclosão criminosa’, como referiu Dr. Cyro Martins.

Aliar os dois textos foi muito interessante, pois me fez pensar. Pensar no trabalho, pensar na família, pensar nos acontecimentos que me cercam. E, como disse no início, ler esses ensaios foi como estar lendo páginas com a data de hoje.

*Psicóloga (ULBRA) e Pós-Graduanda em Saúde Mental Coletiva pela mesma Instituição. Realizou estágios curriculares, durante a graduação, na Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPERGS), onde atualmente atua profissionalmente como Assistente de Direção.