A Relação Médico-Paciente na Atualidade* | Imprimir |

Fernando Lejderman **


A reedição do livro Perspectivas da relação médico-paciente, organizado pelo psiquiatra, psicanalista e escritor Cyro Martins e publicado pela então editora Artes Médicas, em 1980, reflete um renovado interesse sobre a dimensão humana da medicina. É por intermédio do complexo relacionamento entre uma pessoa – paciente, portadora de queixas, sofrimentos e doenças – com um médico, credenciado pelos seus conhecimentos e habilidades, que se desenvolve a estrutura fundamental da prática médica. Abordar esse tema, com a visão atual dos autores que o escreveram há 30 anos, é, sobretudo, oportuno, devido às mudanças de paradigma que atingiram a medicina nesse período.


As conquistas científicas e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas proporcionaram avanços inimagináveis na prática da medicina. A etiologia e a fisiopatologia das doenças têm sido esclarecidas em diferentes níveis. A biologia e a genética molecular estão sendo utilizadas para mapear e identificar a base genética das doenças. A qualidade dos exames laboratoriais e exames por imagem possibilita diagnósticos cada vez mais precoces e mais precisos. Os transplantes de órgãos se tornaram uma realidade impressionante e os procedimentos cirúrgicos menos invasivos vêm apresentando resultados notáveis. As medicações se tornaram mais sofisticadas e eficientes, modificando a evolução de doenças até pouco tempo consideradas incuráveis. Em todas as especialidades médicas, os resultados são surpreendentes em comparação a épocas passadas. A medicina se tornou uma profissão especializada, atingiu um nível de excelência extraordinário e nunca, em sua história, esteve tão capacitada para realizar estratégias de prevenção, eliminar o sofrimento e salvar vidas; como consequência, as pessoas estão vivendo progressivamente mais e com melhor qualidade de vida. Sob esse ponto de vista, portanto, a medicina jamais foi tão humana.

Por outro lado, a globalização, os níveis intensos de competição e as ultramodernas tecnologias de informação do mundo atual estão tornando a velocidade um novo paradigma de comportamento adotado por quem deseja ter sucesso, estar integrado e concorrer no mercado. A pressa se tornou uma marca registrada desses novos tempos e, inevitavelmente, se fez presente no cotidiano da prática médica. Uma das principais críticas contemporâneas à comunidade médica é que os médicos estariam mais interessados nas doenças do que nos doentes. O tempo, antes dedicado ao paciente, foi sendo gradativamente substituído ao tempo dedicado às técnicas de apoio ao diagnóstico, como os exames laboratoriais, radiografias, ecografias, cintilografias, tomografias e ressonâncias magnéticas que, por sua vez, aumentam a certeza dos diagnósticos e a segurança dos médicos.

Outras críticas à medicina atual, com repercussões significativas na relação médico-paciente, estão diretamente relacionadas aos custos financeiros dos cuidados médicos e ao nível de organização dos serviços de saúde, principalmente os serviços públicos que, em determinadas situações, são realmente precários. A expansão dos planos de saúde e da medicina institucional é uma decorrência inevitável do elevado custo financeiro de uma medicina progressivamente dependente dos aspectos tecnológicos. O vínculo emocional do paciente, então, não é mais somente com o seu médico, mas sim, com os planos de saúde e com as instituições.

As demandas por atendimento médico no sistema público de saúde são permanentemente maiores que os recursos disponíveis. O cenário da medicina atual apresenta um panorama  de diminuição de vagas nos hospitais e coloca em evidência as emergências médicas superlotadas, tanto as públicas quanto as privadas. É um problema importante para a população e um desafio para os profissionais responsáveis por políticas públicas mais adequadas e para os governantes diretamente envolvidos na gestão na saúde. Os médicos, por sua vez, nessa difícil realidade, enfrentam frequentemente más condições de trabalho e baixa remuneração. Não há como negar as repercussões negativas na relação médico-paciente em ambientes com sobrecargas dessa natureza.

O humanismo médico de Cyro Martins previu, há mais de 30 anos, algumas dessas questões em torno da relação médico-paciente. Publicar novamente um livro sobre esse tema é uma oportunidade de reflexão que a editora Artmed proporciona a todos os leitores sobre a importância do vínculo emocional entre médicos e pacientes. É preciso ouvir algumas críticas como uma advertência de que a ênfase excessiva nos aspectos científicos e tecnológicos da medicina e a sua crescente necessidade de financiamento não resulte numa erosão da relação médico-paciente. Valorizar o aspecto emocional presente na relação médico-paciente é uma tarefa essencial da medicina e também um fator de proteção contra ansiedades e incertezas naturais despertadas pela doença e pelo sofrimento. Essa face humana da medicina pode ser considerada um bom guia para os futuros planejamentos na área da saúde.


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* Este texto está publicado como Posfácio da Edição comemorativa de Perspectivas da Relação Médico-Paciente  - 30 Anos. Cyro Martins (org). ARTMED. 2010.

* * Dr. Fernando Lejderman é Psiquiatra, Coordenador de Humanismo Médico do CELPCYRO