Depressão e suicídio como conseqüência de Pressões econômicas e sociais: a atualidade de Cyro Martins* | Imprimir |

Fernando Lejderman**


O romance “Porteira Fechada” de 1944 que juntamente com “Sem Rumo” e “Estrada Nova” constitui a famosa “trilogia do gaúcho a pé” de  Cyro Martins,  é uma narrativa ambientada na região de fronteira do RS.   Descreve a história do gaúcho retirante das coxilhas o qual contribui para aumentar o cinturão de miséria da periferia dos centros urbanos. Com a percepção privilegiada dos escritores, Cyro Martins relata a história de João Guedes, gaúcho pobre que vive com a  mulher e cinco filhos numa pequena propriedade rural arrendada de um fazendeiro no município de Boa Ventura. Esse fazendeiro, seu Bento, imerso em dívidas foi obrigado a vender a propriedade. Quando o novo proprietário, desejoso de maior área para a criação de gado, assume a propriedade, João Guedes é forçado a ir morar com sua familia em outro lugar. Muda-se então para a periferia de Boa Ventura, cidade que vem acumulando uma leva de miseráveis advindos da zona rural,  e que estão vivendo em precárias condições sociais e econômicas. Desadaptado, sem conseguir emprego, João Guedes passa a freqüentar o “bolicho” onde se reúnem os “beberrões” do lugar. Progressivamente entrega-se ao vício do álcool e, sem alternativas de trabalho, acaba envolvido no roubo de ovelhas, comercializando os pelegos como uma forma de sustentar a família. Ao mesmo tempo que ingressa no crime, é “corroído por grande saudade dos antigos tempos”, os quais apesar da pobreza, eram de fartura e dignidade.  João Guedes acaba preso em flagrante dentro de uma fazenda e vai para a prisão. Alguns meses depois é solto, uma filha morre de tuberculose,  outra se prostitui e foge de casa. Do passado feliz lhe  restam apenas os “arreios” que  é obrigado a vender, aumentando a sua humilhação e a  disposição à depressão. Sua trajetória após sair da propriedade na qual  arrendava é uma sucessão de perdas e decadência, que associada ao uso de álcool e  comportamento antisocial, colaboram para um triste fim. Mata-se, então, com um tiro na cabeça.


O contexto histórico deste romance é um RS agro-pastoril que está perdendo força no mercado nacional onde é necessário competir com produtos do centro do país. Neste momento histórico são favorecidos os grandes latifúndios da elite rural, as pequenas propriedades rurais são atingidas, há redução da renda familiar e o surgimento dos fluxos migratórios no RS. A partir desta contextualização também  é  possível compreendermos  o suicídio do personagem João Guedes como uma expressão das tensões emocionais  decorrentes da realidade  econômica e social  a que estão submetidos os trabalhadores rurais desta época, a qual  corresponde as décadas de 20 e 30 do século passado.


Decorridos  mais de sessenta anos da publicação do romance de Cyro Martins, encontramos na   revista Carta capital, de julho de 2007, uma reportagem com o seguinte título: “Suicídios em série na França : A depressão ligada a atividades profissionais faz vítimas na Peugeot, Renault e EDF, com as exigências da globalização”. Ao longo desta reportagem tomamos conhecimento que a França está sendo sacudida por uma onda de suicídios ligados ao trabalho.  Na realidade, o assunto  considerado tabu por empresas e sindicatos  passou a ter repercussão após 3 casos de suicídio na fábrica Renault ocorridos em 2007. Foram investigados pela delegacia do trabalho francesa  que considerou a hipótese destes casos serem  enquadrados como acidente de trabalho. Na mesma época, outros casos de suicídio foram relatados na montadora Peugeot-Citroën e, em dois anos, houve cinco suicídios na estatal francesa de energia (EDF). Para a Confederação Geral do Trabalho (CGT ) as mortes estão ligadas à degradação das condições de trabalho, com a diminuição dos postos nas fábricas e constantes pressões por mais qualidade a custos mais baixos.  De acordo com a reportagem, alguns especialistas em relações de trabalho, afirmam que as novas técnicas de organização empresarial estão gerando uma maior  solidão dos empregados, além de menos solidariedade entre eles. Como resultado, as fábricas estão disponibilisando aos funcionários atendimento psicológico gratuito e reuniões para prevenção de novos suicídios. De acordo com a Organização Mundial da Saúde ( OMS ) a França ocupa a terceira posição, atrás da Ucrânia e dos Estados Unidos, no ranking das nações que registram maior número de casos de depressão ligados a atividades profissionais. De acordo com o psiquiatra e professor de Medicina Legal, Michel Debout, a maior parte dos suicídios na França ocorrem entre os 30 e 60 anos (6,2  mil dos 11 mil casos anuais) e neste contexto de “guerra econômica”, “globalização” e altos índices de desemprego, é visivel o aumento da pressão sobre os trabalhadores que acabam “espremidos como limões”.


Do interior do RS  nas décadas de 20 e 30 do século passado,  retratado  através da literatura  humanista de Cyro Martins, até a França de 2007 - uma das sociedades mais desenvolvidas do mundo atual-,  observamos que  as reações humanas  se apresentam de forma  semelhante. Pessoas vulneráveis, quando pressionadas além de determinados limites,  poderão responder com condutas autodestrutivas da magnitude do suicídio. É do conhecimento psiquiátrico que tanto a depressão  como o suicídio são originados de uma interação complexa de fatores emocionais, biológicos e culturais. Essa combinação de fatores torna-se progressivamente mais  perigosa quando nela se insere a ausência de perspectivas ou a desesperança .




Bibliografia:


  1. Porteira Fechada. Cyro Martins. Editora Movimento,11ª edição,Porto Alegre, 2001.
  2. Revista Carta Capital de 25 de Julho de 2007.


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* Texto originalmente publicado no "Jornal da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul ", Ano XIV, Nº 63, dez/2007.

**Fernando Ledjerman é médico psiquiatra do

Departamento de Psiquiatria Clínica da Sociedade de Psiquiatria do RS