CYRO MARTINS LEITOR DE ALCIDES MAYA | Imprimir |

RONALDO MACHADO*


"Em Alcides Maya há saudade e poesia".
Cyro Martins. Alcides Maya

"Ele era da raça dos que não cabem nos
seus livros e ficam sobrando na página composta."
Augusto Meyer. Alcides Maya


Cyro Martins foi um fiel e consistente leitor de Alcides Maya, a ele se vinculando afetiva e intelectualmente, ficando dessa relação profundas e importantes marcas, o que se revela explicitamente em seus ensaios críticos e de forma intertextual em sua obra ficcional. Em Cyro Martins, a própria lembrança do homem Alcides Maya se estampa com a mesma densidade plástica e profundidade psicológica que identifica na sua obra:

A presença de Alcides Maya é inesquecível. Vejo-o ainda, dominante e acolhedor, os olhões negros ora entrefechados, ora contemplando a distância, embora estivesse diante de uma parede. Parecia circundar-lhe a imponente cabeça estatutária um halo tecido da vibração das lonjuras e do adejo das evocações. Movia-se invariavelmente na plenitude dum reino de fantasia criadora e de idéias, alcançando-se, sobranceiro, acima da implacável contingência da vida. Dava a impressão, não raro, de errar pelas idades sem destino certo. Mas a bruma azulada, em que parecia perdido, clareava-se às vezes de repente ao tocar num episódio, numa lembrança, numa anedota do grupo dos seus mais gloriosos dias, propiciando-nos matéria para decifração dos arcanos daquele imenso frêmito interior. Com um gesto, uma palavra, mergulhava nos acontecimentos, nas almas, perfilando, na transfiguração da saudade, nomes ou fatos ameaçados de olvido. Fazia-os reviver intensamente, ainda que fosse por um momento, na fugacidade de um comentário, para evidenciar neles ou a propósito deles a verdade histórica ou a beleza de uma atitude, de uma idéia, de um sentimento. 1


Esse imperativo de saudade e a deleitação de fundo nostálgico 2, já antes identificado por Augusto Meyer na obra de Alcides Maya, que figura o espaço da campanha sulina pela retórica grandiloqüente das suas páginas barrocas, desdobra-se para além das margens da sua trilogia regionalista - Ruínas Vivas, Tapera, Alma Bárbara - e comparece de modo seminal na prosa de martiniana. Destacando o poder evocativo que a exuberância poética de Maya lhe suscita, Cyro Martins recortará e transfigurará justamente o cerne desta obra - a poética da saudade:


A exuberância do seu estilo, o colorido visionário das páginas através das quais amplifica a realidade, a heroicidade de seus protagonistas principais, os enredos altamente dramáticos, todos esses painéis revelam sua íntima sintonia com os feitos épicos da gente gaúcha. Ao toque vibrante e comovido de suas evocações, acorrem, desprendendo-se do fundo imortal da história, fundidas, as sombras dos campeiros que desapareceram anônimos, depois de muito mourejar, e as sombras dos valentes que criaram a nossa tradição de heroísmo. 3


Assim, a ênfase que Cyro Martins confere aos vínculos presentes na obra de Maya entre evocação e poesia, entre as sombras do passado e o colorido visionário da ficção, será o ponto exato da confluência das duas obras. É o que se apresenta em Apenas uma tapera, crônica pela qual relata sua visita, depois de 41 anos de ausência, ao Cerro do Marco, local onde viveu sua infância e adolescência. Nesta crônica, publicada em 1976, a referência a Alcides Maya se apresenta desde o título e logo no primeiro parágrafo:


Nem poderia exclamar como Alcides Maya, no pórtico do seu livro Tapera: "Morta e de pé!" Não. O que resta é tão pouco que apenas assinala o lugar da nossa antiga morada. 4


Na ausência da tapera real esperada, a memória figura o espaço, o lugar da nossa antiga morada, a partir das imagens poéticas colhidas da leitura de Alcides Maya. A insuficiência dos restos materiais da casa primeva é suprida pela imagem da tapera em ruínas, figurada no ermo da imensidão nua e deserta, no espaço da solidão árida, a partir do intertexto de Alcides Maya:


Morta, mas ainda de pé, em debuxo ao fundo ermo dessa imensidão triste, que sensações estranhas provocas! Abandonaram-te talvez por velha; sucumbiste, quem sabe, a algum pampeiro: não tens o passado de glória dos lares que tombam heróicos por entre as chamas ou se despovoam tumultuariamente numa tragédia de ciúme, de vingança, de ódio. (...) Sozinha entre solidões áridas; ponto mais deserto e mais nu da paisagem deserta e nua, a tapera fica, perdura nos escombros, sarcasticamente erecta e descolmada, altivamente serena, morta e de pé. 5


Do clima de reminiscências que identifica na obra de Alcides Maya, dos painéis que geram efeitos nostálgicos, o constante retorno dos quadros de retirada, os derivados da saudade 6, Cyro Martins transfigurará a saudade em indagação existencial e concomitante reflexão sobre a condição humana.


Estou aqui para sentir a ressonância do que sobrou. Para sondar o mistério das ruínas. Para insuflar um pouco de vida a estes rastos de passagem humana que observo absorto e extático. Em vão tento inevitavelmente pôr em realce e fixar algumas imagens. Inútil o meu esforço. Não são mais do que tons esfumados, traços finos, fugidios, compondo variedades rítmicas, que me sensibilizam e me enriquecem a imaginação, no sentido de que talvez possa um dia trabalhar com elas sem compromissos de realidade. E entrando nesse retouçar do fantástico, talvez lhes restitua um naco da natureza humanizada que, em vida, chamamos existência. 7


Essa transfiguração da saudade, de estática nostalgia em recherche existencial, se consubstancia pela ressimbolização do espaço da campanha sulina, que de estampas enrijecidas se tornam imagens vivas que aprofundam lembranças vividas, deslocam recordações vividas, para se tornarem lembranças da imaginação. 8 Assim, a presença de Alcides Maya na obra de Cyro Martins se dá pela transfiguração da saudade que, trabalhando a figuração do espaço pela memória, assume o caráter de um itinerário ao fundo do homem que somos, aos desvãos dos recantos infantis . Como já destaquei em um artigo anterior (É preciso reler Cyro Martins!), essa perspectiva dará a característica fundamental da sua obra: a íntima junção entre memória, regionalismo e psicanálise, que leva ao compromisso firmado entre o artista e seu meio, o homem e sua história, entre o indivíduo e a sociedade.


Assim, Cyro Martins teceu sua obra valendo-se não só de suas experiências de vida, mas também estabelecendo um diálogo intertextual com a ficção dos primeiros regionalistas. Isto é, escreveu não só a partir de um universo de referências históricas e culturais que têm origem na sua experiência da campanha, como criança, ou depois como médico, mas também na leitura da tradição regionalista rio-grandense, com especial destaque para Alcides Maya.


*Ronaldo Machado
é Professor de Literatura e Doutorando em Literatura Comparada, na UFRGS, sobre a obra de Cyro Martins. rsmachado@zipmail.com




NOTAS
1) MARTINS, Cyro. Alcides Maya. In: MARTINS, Cyro. Rodeios: estampas e perfis. Porto Alegre: Movimento, 1976, p. 68-9

2) MEYER, Augusto. Alcides Maya. In: MEYER, Augusto. Prosa dos Pagos (1941-1959). Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960, p. 117

3) MARTINS, Cyro. Alcides Maya. Op. cit., p. 66

4) MARTINS, Cyro. Apenas um Tapera. In: MARTINS, Cyro. Rodeios: estampas e perfis. Porto Alegre: Movimento, 1976, p. 18

5) MAYA, Alcides. "Tapera". In: MAYA, Alcides. Tapera (cenários gaúchos). 2.ed. Rio de Janeiro: Briguiet & Cia., 1962, p. 35-37

6) MARTINS, Cyro. Alcides Maya. Op. cit., p. 61

7) MARTINS, Cyro. Apenas um Tapera. Op. cit., p. 22-23
Gaston Bachelard. A poética do espaço. In: A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 217

8) MARTINS, Cyro. Apenas um Tapera. Op. cit., p. 30