A saga do guri a pé | Imprimir |

Barbosa Lessa


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O pai de Lelo, o Seu João Guedes, arrendava um campo até o dia em que o Seu Júlio Bica chegou pra ele e disse: "Acabo de comprar do Bentinho este campo, pra engordar boi em final de safra. O quanto antes, mude-se!" E terminou se mudando para aldeia.


Vez por outra minha mãe precisava me mandar de noite a comprar alguma coisa no bolicho do Capitão Fagundes e lá eu sempre encontrava o João Guedes, esse. Encostado mui triste no balcão, a beber cachaça junto como João Biga, o Quevedo e o bolicheiro - cada um deles a relembrar o tempo de dantes. "E balançavam em silêncio as cabeças tontas, penalizados de si mesmos e do mundo que era outro. Mas em breve um menos entorpecido destorcia a língua, reavivando as lembranças. E aqueles homens estropiados assanhavam-se por instantes, sofregos por reviver cada qual as suas façanhas, as caras como que incendiadas por uma labareda".


Quem contou a história toda, em palavras como essas recém-escritas, foi o romancista Cyro Martins, em 1944, quando Porteira fechada impactantemente desvendou para os rio-grandenses a nova realidade social da campanha. Eu li o livro no ano seguinte, aos quinze anos de idade, já morando em Porto Alegre, cursando o noturno do COlégio Estadual Júlio de Castilhos e meio que procurando emprego (finalmente conseguido como revisor da Revista do Globo). Comovi-me quando João Guedes teve de vender seu último cavalo, um mouro macanudo. "Depois saiu a passos trôpegos, levando os seus arreios de campeiro para vender ao primeiro que lhe desse vinte ou trinta mil-réis. Cortava assim o último tento que o prendia à vida passada. Curvava-se à fatalidade, cedendo a um desígnio doloroso de Gaúcho a Pé."


Só que, em Porteira fechada, Cyro Martins precisou se ater exclusivamente à tragédia dos adultos e não pode desenvolver também a saga do Guri a Pé. Esta tocou para nós mesmos escrever. Ao vivo e a cores.


O futuro se nos apresentava, parece, com duas únicas alternativas ou modelos. De um lado, o modelo do almofadinha motorizado, do filhinho-de-pai sem ocupação alguma - tão bem caracterizado na personalidade de Hélio Bica. "Esportivamente trajado, com o pescoço livre,m casaco de couro, umas calças de flanela e uns sapatões grossos." Ele zunia com sua barata pelas ruas de Boa Ventura, de escapamento aberto, pouco se incomodando com os ouvidos dos outros. "Nunca tinha pensado seriamente na necessidade alheia. A vida era tão boa, o mundo tão divertido!" Mas a outra perspectiva nos agradava ainda menos, por sombria. João Guedes roubando ovelha para matar a fome da família, João Guedes na cadeia, João Guedes se suicidando, nõs no velório e no enterro, depois o triste retorno para o biongo. "Lelo, de cócoras, assoprava, tentando prender fogo com uns gravetos molhados. As filhas tiritavam empoeiradas num catre. Tinham no olhar - um olhar fundo, parado, interrogativo - a expressão aflita de todas as crianças maltratadas."


Na pensão de estudantes da Rua Marechal Floriano, à descida da Duque de Caxias, reuníamo-os sempre que possível o Ariosto, o Aurélio, o Krieger e eu. Uma cena muitíssimo semelhante à do João Guedes, do Quevedo, do João Biga e do Capitão Fagundes se encharcando de canha no bolicho; mas também mui diferente, porque éramos quatro adolescentes e, em vez de canha, era o mate. A erva, especial, vinha diretamente de Venâncio Aires, o pago do Ariosto. O Aurélio era catarinense de Caçador (e terminou indo parar em Cascavel e Paranavaí, no Paraná). De São Luiz Gonzaga era o Krieger; um missioneiro, portanto. Eu sentia orgulho de ser natural de Piratini, a histórica capital farroupilha. Mas, embora provenientes de regiões tão distantes entre si, vínhamos de uma mesma sociedade campeira. Éramos moços "do interior". E, além disso, pertencíamos à, então, chamada Geração Coca-Cola...


Não era nada fácil agüentar a barra como moço "do interior".


Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, já explicou direitinho os efeitos sociológicos de termos tido nossa formação burocrático-administrativa a partir de São Vicente, Salvador, São Luís do Maranhão, Florianópolis, Laguna, Porto Alegre e outros portos assim. Disse ele: "A influência da colonização litorânea ainda persiste até nossos dias. Quando hoje se fala em interior, pensa-se, como no século 16, em região escassamente povoada e escassamente atingida pela cultura urbana." Tal preconceito era sentido na própria pele por nós quatro e por tantos outros que, tangidos por circunstâncias várias, pedíamos pouso nessa outra "aldeia". Em Porto Alegre sentíamo-nos semi-marginalizados, ao lado do negro, do homossexual e da prostituta. Só que a prostituta, o homossexual e o negro podiam transitar livremente pela Rua da Praia; mas um "grosso", trajado de botas e bombachas, à campeira, seria inapelavelmente alvo de agressivas chacotas. E mesmo pagando entrada, como os demais, um "bombachudo" seria barrado, por inconveniente, á porta de um cinema. Verdade!


Pior ainda era o fato de integrarmos a Geração Coca-Cola. Sob o prestígio da vitória alcançada na Segunda Guerra Mundial, a cultura norte-americana começara a entrar avassaladoramente em nosso País e nos cercava por todos, todos os lados. Na música, no disco, no cinema, nas histórias-em-quadrinhos, na moda, na gíria, em tudo. Nessa hora o Tio Sam (e à sombra dele outros tios) nos dizia que esquecêssemos tudo e saíssemos logo de nosso campinho arrendado, pois ele carecia muito de engordar boi no final de safra...


Era duplo, pois, o nosso sufoco. E foi aí que um outro aluno noturno do Júlio de Castilhos, e funcionário da Secretaria da Agricultura, "prendeu o grito" em setembro de 1947 e mostrou novamente a Porto Alegre a bandeira rio-grandense, desaparecida já havia dez anos. Paixão Cortês não foi preso porque isto não se constituía mais em ato subversivo; no mês anterior, com a promulgação da Constituição Estadual, restabelecera-se oficialmente o velho pavilhão tricolor. Nessa mesma semana Paixão Cortês instituiu, com meia dúzia de gatos pingados, a Chama Crioula, ponto de partida para as comemorações populares da Semana Farroupilha.


O grupo de mateada passou a ser outro, já com duas dezenas de estudantes. Iniciava-se desse maneira, com caráter bem associativo, o movimento tradicionalista. Meses depois, em abril de 48, em torno de um fogo-de-chão, era fundada uma entidade que pretendia restabelecer, no meio urbano, o espírito solidário do pago. Ela podia se denominar Crioula ou Campeira, mas foi preferida a sonoridade, a eufonia da palavra Gaúcha. Centro de Tradições Gaúchas. Para os íntimos, CTG. CTG "35".


Disseminando-se pelos vários municípios rio-grandenses - mui lentamente a princípio e, depois, em vertiginosa progressão geométrica -, os CTGs vieram a valorizar e prestigiar a figura humana do gaúcho. Núcleo básico: o ritual do mate, como escola de cordialidade. Invernada Campeira: recuperação do cavalo, em práticas desportivas. Invernada Artística: preenchimento da lacuna deixada pelas escolas públicas e privadas, que já não mais ensaiavam a gurizada para festivais de encerramento de ano letivo. Invernada Mirim: uma atenção especial às crianças, considerando-as como gente amiga e transmitindo-lhes através da dança as noções básicas de sociabilidade. Fandango: incrível antídoto ao conflito de gerações, com pais e filhos comungando alegria em pé de igualdade. Em resumo: o retorno moral ao tempo de dantes. Não se trata de reviver, esterilmente, o Passado. Mas sim, de resgatar, a Esperança perdida.


Com a gradativa adesão da Igreja Católica (missa Crioula), do Estado (oficialização da Semana Farroupilha, dezessete anos após o acendimento da primeira Chama Crioula) e de jovens músicos urbanos (o chamado Nativismo é expressão estritamente musical e sem nenhum caráter associativo), o gauchismo chegou a tal expansão que, numa fase que poderíamos dizer de modernidade a palavra gaúcho se tornou um gentílico. Se antes havia a Chronologia riograndense e as Ephemerides riograndenses (que, aliás, nunca mais reapareceram nas escolas), a Associação Riograndense de Imprensa, a Companhia Riograndense de Telecomunicações, e por aí afora, na fase de modernidade passou a haver a Associação Gaúcha das Empresas de Rádio e Televisão, a Associação Gaúcha de Preservação do Ambiente Natural, a Fundação Gaúcha do Trabalho, o governo gaúcho, a representação gaúcha em Brasília, e por aí afora. Gentílico discutível, aliás, pois existe muito rio-grandense que não é gaúcho e muito campeiro que não é rio-grandense...


Na atual fase, da pós-modernidade, a coisa se complicou. Além do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) do Rio Grande do Sul, há o MTG de Santa Catarina, o MTG do Paraná, o MTG de Mato Grosso do Sul e a Federação Paulista de Tradições Gaúchas. A cidade de Curitiba, por ser do "interior", não tem tido nenhum constrangimento (muito pelo contrário) em ir se transformando paulatinamente em capital do gauchismo. E a porteira continua aberta para quem quiser passar.


- excerto do texto "Porteira Aberta" reproduzido na Página do Gaúcho.


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Revista CELPCYRO 6