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A significação (maior) da literatura de Cyro Martins

                                                                                   Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt/PUCRS

                        Vou partir de um estudo meu anterior (HOHLFELDT, 1968), mostrando que toda a obra ficcional de Cyro Martins concentra-se no período entre 1893 e 1930, ou seja, a Revolução Federalista e a Revolução de 1930. O que isso significa? Basicamente, este é o tempo em que a sociedade urbana brasileira – a partir da perspectiva do Rio Grande do Sul – levou para se formar e, depois, se afirmar.

É bom lembrar que Julio de Castilhos, com seu Partido Republicano Rio-Grandense conseguiu, pela primeira vez, incorporar os segmentos urbanos dos comerciários enquanto eleitores. Isso criou uma nova base eleitoral que permitiu que ao longo de quatro décadas o mesmo partido se perpetuasse regionalmente no poder, estendendo, posteriormente, sua força, para o centro do país, quando Getúlio Vargas, afiliado ao PRR, torna-se ditador, até 1945.  

A trilogia do gaúcho, como é conhecida, já um prenúncio do que está se desenvolvendo: Sem Rumo, de 1937; Porteira fechada, de 1944 e Estrada nova, de 1953, mostram a decadência não apenas do antigo e altaneiro gaúcho, o centauro dos pampas, o homem que se tornava um monarca quando montava em seu cavalo, mas que se transforma em peão sem eira nem beira, sendo expulso de seu antigo território, agora apropriado e privatizado; depois proibido até mesmo de se deslocar por entre os espaços que ligavam as propriedades, as estradas à semelhança do que escreveu Ivan Pedro de Martins, tanto em Fronteira agreste, de 1944, quanto em Caminhos do Sul, de 1945. Não é mera coincidência que Vidas Secas, de Graciliano Ramos, seja de 1938. O mesmo processo ocorria também no nordeste brasileiro, gerando o que depois se denominaria de romance de 30.

Ambos os casos documentam, ficcionalmente, o processo de deslocamento do homem rural para as beiras de cidade, ou seja, a mobilidade involuntária, que permite, pela urbanização,  a industrialização com mão de obra extremamente barata. Acabou a relação direta do homem com a terra, mesmo que ao nível de proprietário. Agora, quem se apodera desta propriedade rural não sente nada por ela: a estância se transforma em fazenda, do mesmo modo que o canavial se torna o engenho. No caso dos nordestinos, porém, a denúncia vem acompanhada de certo saudosismo, veja-se José Lins do Rêgo em Menino de engenho, por exemplo.

Não é o caso, certamente, de Cyro Martins. Embora reconheça em seus personagens certos laivos épicos, na sua resistência desesperada para não morrer de fome nem ser definitivamente humilhado, o escritor de Quaraí reconhece que não há mais espaço (lugar) nem futuro (tempo) para seus personagens, que desaparecerão ou serão desaparecidos. É por isso que, enquanto o romancista nordestino da década de 30 é ainda rural, o romance sul-rio-grandense do mesmo período já se movimenta em direção ao urbano., processo que culminará com a obra de Erico Verissimo, Dyonélio Machado e Reynaldo Moura. Não obstante, Erico Verissimo, depois de construído um conjunto ficcional apreciável, quando busca entender o sentido destas vidas aparentemente sem nexo e sentido, vazias e contraditórias, acaba por retornar ao campo e construir a saga de O tempo e o vento, a partir de 1948.

Cyro Martins talvez seja menos radical. Ele se dá conta desta mobilidade e desta transformação à medida mesma em que ela ocorre: talvez pelo espaço de o aprendizado que lhe significou viver à sombra do bolicho do pai, como conta em Rodeio. Ou porque, ao reconstituir narrativas – sobretudo em seu segundo ciclo criativo, aberto na década de 1970 – ele surpreende personagens que já se encontram num novo estágio de sociabilidade, embora mantenham relações com o antigo universo em vias de desaparecimento,  e para cujo final, aliás, colaboram., mesmo que inconscientemente. Graças à sua formação marxista, Cyro Martins se dá conta de que tais personagens não são apenas vítimas, mas agentes alienados do próprio processo de destruição.

Neste sentido deve-se firmar o entendimento de que, embora na aparência a literatura de Cyro Martins pague algum tributo ao regionalismo, como ele mesmo se preocupou em discutir e discernir, quanto a sua obra, ele vai muito mais além. O microcosmos do pampa sul-rio-grandense nada mais é do que uma exemplaridade do que vem acontecendo em diferentes pontos do país, levando-o, enfim, à transformação de país agrário em nação urbana. Esta é a grande – imensa, a ser ainda estudada mais profundamente – contribuição da literatura localista ou regionalista de Cyro Martins, como queiram, à literatura nacional brasileira. Ele deixa evidente, através de seus romances, que a modernização brasileira se deu ás custas da eliminação do universo agrário.

A próxima estação romanesca será escrita, por exemplo, por Charles Kiefer, com  Quem faz gemer a terra (1991). Há uma linha reta ligando os romances de Cyro Martins e alguns textos de Charles Kiefer, passando, evidentemente, pelas reflexões contidas na obra de Erico Verissimo, Dyonélio Machado, Reynaldo Moura e, especialmente, o Aureliano de Figueiredo Pinto de Memórias do Coronel Falcão (1973 [1937]), ou o Josué Guimarães de Camilo Mortágua (1980). Nestes romances está escrita toda a (des)história do Rio Grande do Sul, até a catástrofe da contemporaneidade.