Eu sou quem você diz que eu sou | Imprimir |

Cleonice Bourscheid

Meu nome é Cleonice Bourscheid, sou eterna aprendiz de poeta, professora, tradutora e produtora cultural. Diferentemente do poema de Drummond que diz: 

       “Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”



Quando nascemos, a vida já está estruturada em culturas que atribuem diferentes papéis à mulher. Desde pequenas, somos estimuladas a aceitar esses papéis. 


Eu tive a oportunidade de conhecer a escritora iraniana Azar Nafise, autora do best-seller Lendo Lolita em Teerã. Azar, que foi professora na Universidade e expulsa do país por se recusar a usar o véu, lançou em Parati seu livro de memórias, chamado “O que não contei”.

Eu gostaria de ler um pequeno trecho deste livro, justamente para destacar o papel desta mulher, sua coragem e sua obstinação em fazer literatura.

“Não pretendo que este livro seja um comentário político e social, ou uma história útil de vida. Quero contar a história de uma família que se desdobra sobre o pano de fundo de uma época violenta na história política e cultural do Irã. Existem muitas histórias sobre esse tempo, entre o nascimento da minha filha ao se final, marcado por duas revoluções que deram forma ao Irã, provocando tantas divisões e contradições que a turbulência transitória se tornou a única coisa permanente.


Neste livro, meu interesse não é fazer um relato geral das épocas históricas, mas sim essas frágeis intersecções - os lugares em que os momentos da vida privada e da personalidade de um indivíduo ressoam e refletem uma história mais universal, mais ampla.


Essas intersecções entre o público e o privado eram o que eu estava procurando quando comecei a escrever meu primeiro livro, no Irã, sobre Vladimir Nabokov. Eu queria discutir os romances de Nabokov à luz das épocas diferentes nas quais os li. Isso era impossível, não apenas porque eu não podia escrever abertamente sobre as realidades políticas e sociais da vida na República Islâmica, mas também porque as experiências pessoais e privadas eram tratadas pelo estado como um tabu.


Foi por volta dessa época que comecei uma lista em meu diário intitulada O que eu não contei.Sob ela, escrevi: Apaixonar-se em Teerã. Ir às festas em Teerã. Assistir os filmes dos irmãos Marx em Teerã. Ler Lolita em Teerã...”


Azar prossegue, afirmando que existem muitas formas diferentes de silêncio: aquele dos Estados tirânicos que roubam as lembranças dos cidadãos e lhes impõem uma identidade autorizada pelo Estado, o silêncio das vítimas que se tornam cúmplices dos crimes cometidos contra elas e o silêncio que impomos a nós mesmos, como forma de indulgência.


Por isso, a importância de estarmos aqui hoje, para falar sobre a mulher na sociedade atual, a partir de diferentes experiências e pontos de vista.


Não sou acadêmica, portanto minha fala será organizada através de recortes poéticos.

Eu gostaria de iniciar com um poema meu que fala sobre a infância e o sonho de um pai de ver sua filha professora:

ECOS DA INFÂNCIA


Olha a maçã, olha a maçã.

Eta a maçã, maçã!


O velho magro,

cabelos brancos

carregava uma cesta

recheada de maçãs


Olha a maçã, olha a maçã.

Eta a maçã, maçã!


Meu pai me levava

pela mão à escola.                                                                   

No caminho percorríamos

o Parque da Redenção


Olha a maçã, olha a maçã.

Eta a maçã, maçã!


Meu paizinho pedia:

- Quero uma.

Entregava-me a maçã.


Olha a maçã, olha a maçã.

Eta a maçã, maçã!


Eu seguia para a escola,

saia de pregas, blusa branca,

mãos dadas com meu pai.


Olha a maçã, olha a maçã.

Eta a maçã, maçã!


Dizia, solene:

- Vai, filha, estuda

pra ser professora.


Ainda escuto os ecos:

Olha a maçã, olha a maçã

Eta a maçã, maçã!


Estão todos mortos:

meu pai, o velho,

As maçãs.


EU SOU O QUE QUERO SER


 Não sou teórica, não sou acadêmica.

Sou uma professora que decidiu ser poeta.

Sou uma mãe que decidiu ser poeta.

Sou uma esposa que decidiu ser poeta.

Sou uma mulher que decidiu ser poeta.


Na verdade, a semente da poesia sempre esteve dentro de mim, mas eu só deixei que ela germinasse num momento da minha vida em que todas aquelas condições femininas estavam aparentemente resolvidas (ou quase). 


A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO DÁ CONTA


Então, para entenderem um pouco do que quero dizer, vou falar da minha trajetória e do trabalho que desenvolvo atualmente.


Hoje, além da tradução, que faço regularmente, tenho me dedicado a projetos que envolvam a poesia, a música e as artes plásticas.


De modo geral, procuro integrar estas diferentes áreas e levar a literatura, a música, a arte, aos mais diferentes públicos e, muito especialmente aos jovens.

Recitais, palestras, exposições, conversas com alunos, ocorrem durante a vigência dos projetos em cidades do Rio Grande do Sul, em locais como o Jardim Botânico, Associações de Bairros, Centros Culturais e Comunitários. Os livros são distribuídos a escolas e bibliotecas públicas estaduais e municipais.

Os poemas se transformam em músicas e representações gráficas.

Meus trabalhos falam de flores, de plantas, de aves, de bichos.

Busco este entrelaçamento entre a ecologia, a arte e a vida, sensibilizando através da arte para a preservação do meio ambiente. Estabeleço parcerias com outros artistas.

                           

        PROJETOS REALIZADOS:


AVE, FLOR sobre a flora do Rio Grande do Sul

 Veja e ouça::  http://www.youtube.com/watch?v=q4sZ0lWGSQE&feature=related


AVE, PÁSSARO sobre as aves do Rio Grande do Sul


AVE, PAMPA sobre a flora e fauna do pampa gaúcho. (ainda não executado)

                                         

          RECORTES POÉTICOS         


         Escolhi alguns poemas que traduzem de forma magnífica as indagações e espantos destas mulheres e, conseqüentemente de todas as mulheres.

Desta forma, além de prestar uma homenagem a estas grandes poetas da língua portuguesa, faço minhas as suas palavras. Elas, melhor do que ninguém, expressam a condição feminina.

                       GRANDE DESEJO

                                                  Adélia Prado


Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,

sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.

Faço comida e como.

Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro

e atiro os restos.

Quando dói, grito ai,

quando é bom, fico bruta,

as sensibilidades sem governo,

Mas tenho meus prantos,

claridades atrás do meu estômago humilde

e fortíssima voz para cânticos de festa.

Quando escrever o livro com o meu nome

e o nome que eu vou por nele, vou com ele a uma igreja,

a  uma lápide, a um descampado,

Para chorar, chorar, e chorar,

requintada e esquisita como uma dama.


                        A SERENATA

                                        Adélia Prado


Uma noite de lua pálida e gerânios

ele viria com boca e mãos incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:

ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobro

o que não for natural como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,

de que  modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa?


                     QUERO-ME INTEIRA

                                         Lara de Lemos


Ah! Que terrível mutilação

Esse ter que nos dar assim

Todos os dias!


Dar-nos aos pedaços

- um pouco a um,

um pouco a outro,

sem que fique nada

de verdadeiramente nosso

em nós.


Pertencemos

aos que nos afagam por hábito,

aos que nos possuem com os olho,

aos que nos esperam sensatos,

aos que nos amam doidos

e, afinal, aos que nos querem

como nós não somos.


Quero-me eu,

completa, autêntica, cheia de abandono

pertencendo-me sem nenhuma clemência

para com a alheia expectativa.


Eu, para dar-me ou negar-me

sem explicações, falsos pudores

ou inúteis justificativas.


Não é o melhor nem o mais fácil

o que peço.

Quero-me rir ou chorar

para viver ou morrer. Inteira.



                 MULHER AO ESPELHO

                                         Cecília Meirelles


Hoje, que seja esta ou aquela,

pouco me importa.

Quero apenas parecer bela,

pois seja qual for, estou morta.


Já fui loura, já fui morena,

Já fui Margarida e Beatriz

Já fui Maria e Madalena.

Só não pude ser como quis.


Que mal faz, esta cor fingida

do meu cabelo, e do meu rosto,

se tudo é tinta: o mundo, a vida,

o contentamento, o desgosto?


Por fora, serei como queira

a moda, que me vai matando.

Que me levem pele e caveira

ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,

olhos, braços e sonhos seus,

e morreu pelos seus pecados,

falará com Deus.


Falará, coberta de luzes,

do alto penteado ao rubro artelho.

Porque uns expiram sobre cruzes,

outros, buscando-se no espelho.


                                   RETRATO

                                             Cecília Meirelles

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"


              Citando Joseph Beuys:

“O homem só está realmente vivo quando compreende que é um ser criativo, artístico. Até a ação de descascar uma batata pode ser um gesto de arte, se for um ato consciente. Todo homem é um artista.”


            Para concluir, vou ler um poema meu. Acho que lição de poesia aprendemos todos os dias: basta estarmos atentos e sensíveis. Escutar o silêncio das respostas é vital para sobrevivermos. As respostas podem estar no ato de descascar batatas com poesia. Adélia Prado que o diga!

Muito obrigada por poder aprender com vocês.


                            LIÇÃO DE POESIA


Com o poeta aprendi a delirar os verbos, inverter o sentido das palavras e subverter os pronomes.

Às noites desamanheço e ouço o brilho das estrelas.

Pela manhã, conto os sóis, assunto os vaga-lumes, guardo minhas asas e alço voo sem sair do chão.

Quando desanoiteço, já é meio-dia e tenho fome de árvore. (Tem gente que não sabe o que é fome de árvore!)

Há hora que desassunto e canto canção de ensinar fome. Aí desinvento os astros e choro poemas.

Tu escutas cheiros. Nós enxergamos o murmúrio do mar. Eles cheiram o andar do jabuti. (Como é ligeiro!)

Eu é soma de quem? Tu te vês em mim? Eles, quem somos? Ali é longe?

Eu quero-quero? Tu andorinhas?

Eu não respondo perguntas.

(Meu saber ainda não nasceu.)

Eu escuto o silêncio das respostas.


                                ------------