Visão Crítica do Regionalismo (1944) | Imprimir |

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Desde 1874, ano em que apareceu Bromélias, de Apolinário Porto Alegre, poesias de colorido nativista, até há bem pouco, o nosso regionalismo nutriu-se da legenda campeira, decantando a trajetória histórica e os costumes gaúchos, celebrado como monarca das coxilhas, visto como figura de exceção. Ao fazer esta afirmativa, já agora sediça, apenas tenho em mira buscar apoio para o desenvolvimento deste trabalho dentro das minhas possibilidades de síntese. Não pretendo nem de leve negar o mérito dos escritores que me antecederam na exploração do veio gauchesco e que são, sob muitos aspectos, pioneiros e mestres.

E não o posso fazer porque essa fase narcisista do regionalismo apresenta culminâncias incontestáveis. Nem o enfeite excessivo da frase, nem a superstição do elemento decorativo no detalhe lhe tiram, nas suas mais incisivas expressões, os atributos de autenticidade substancial e a intensa potencialidade criadora. Algumas dessas obras permanecerão como mananciais de sugestão sociológica e poética. Teve ainda o regionalismo o merecimento de resgatar, em parte pelo menos, o que devíamos em culto consagrador aos homens rudes e bravos que fixaram, pela atuação centáurica, as características que nos individualizariam no seio da nação brasileira.

Essa literatura, entretanto, é pobre em quantidade. A maioria dos nossos intelectuais, como de resto no país todo, esteve sempre presa às influências européias, particularmente da França, recalcando para plano secundário os assuntos da terra, produzindo uma "arte de reflexos estrangeiros".


Alcides Maya e Simões Lopes Neto


Tratando-se de regionalismo rio-grandense, não se poderá esquecer jamais os dois autores máximos, Alcides Maya e Simões Lopes Neto, esteios rijos de nosso patrimônio cultural, capazes de resistir, pelo tempo afora, às mais ingratas ventanias da crítica. Do segundo, Augusto Meyer escreveu: "Talvez ninguém no Brasil tenha conseguido uma identificação tão profunda com o espírito de seus pagos, a tal ponto que o próprio João Simões Lopes Neto, o pelotense culto e da família patrícia, inteiramente se apaga na sombra de Blau, o vaqueano". E além dessa significação, traço preponderante, ressalta na sua obra a observação fiel dos elementos da vida gaúcha. Os seus contos e lendas não transpiram procedência livresca. Apóiam-se no que seus olhos - "pobres olhos condenados à morte!"- retiveram de autêntico e no que a sua sensibilidade de poeta fixou da substância viva.

Alcides Maya, que muito cedo se emancipou da província pela cultura, ao voltar-se para os rincões da meninice, procurando armar a sua ficção sobre o documentário do pago, amparou-se não somente na experiência pessoal, mas ainda na história e na legenda, conferindo às suas páginas um sentido de epopéia. Salienta-se, no seu estilo, o vigor plástico. Ama os relevos, os blocos, os grupos, a condensação das paisagens.

Em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, numa interpretação magistral, apontou a predominância do gosto de parar as figuras e modelar estátuas. Em Alcides encontramos algo parecido. Daí a resistência que encontraram certos leitores, amigos do ameno e do correntio, ao tentar a leitura de suas páginas.

Imobilizar as personagens e retalhá-las em vincos sólidos de escultura pode constituir um processo para condensar o belo e atingir a eloqüência. Mas não resta dúvida de que, se o ficcionista deixar essas mesmas figuras moverem-se por si mesmas, no sentido que se empresta em literatura ao movimento espontâneo das personagens, impondo-se pela sua glória ou pela sua miséria, estabelecerá uma aproximação muito mais íntima com o leitor, contagiará mais facilmente a sua emoção estética, encontrará mais fraca oposição à sua mensagem.

Não nego que a literatura de Alcides Maya oferece dificuldades ao leitor comum. No entanto, por mais que os requintes de linguagem queiram às vezes afastá-lo do assunto, excedendo-o, as suas narrativas guardam uma profunda e comovente harmonia com a realidade campeira. O autor de Alma bárbara é e será, ainda por muito tempo, um tema de divergência para os críticos o que significa uma garantia de perpetuação do seu nome e dos seus livros.

Tem-se procurado insinuar certa rivalidade entre Simões Lopes e Alcides Maya. E não será de surpreender se, no futuro, nos grêmios ginasianos, travarem-se polêmicas para demonstrar qual dos dois é maior, como no meu tempo assisti e participei duma que versava sobre Castro Alves e Gonçalves Dias.

Cotejo absurdo será esse, como quase todos os cotejos do gênero. É verdade que em Simões Lopes encontramos o gaúcho mais ao natural, para assim dizer, mais desatado, mais livre na ação, de tal maneira que se colhe a impressão justa de que não foi o autor que procurou o assunto, mas, sim, foi este que o encontrou, o saturou e se impôs, de molde a desabrochar um belo dia com a espontaneidade e o fulgor agreste de uma corticeira em flor de beira de banhado.

Alcides Maya, pelo contrário - e sabe-se lá por que secretos imperativos de temperamento? - lançou-se deliberadamente ao encalço do material disperso e em ruínas, porém com tamanha força que foi capaz de fazer reviverem os restos - "de velhas crenças, de velhas construções, de velhas raças...".

O certo, entretanto, é que cada um de nós preferirá sempre o rapsodo dos Contos gauchescos e Lendas do Sul ou o épico de Tapera e Ruínas vivas em harmonia com as próprias tendências. E essa preferência mesma, se preferência houver, ainda, estará sujeita a oscilações, de acordo com a idade, com a cultura, com a hora, com as disposições momentâneas, enfim.

Alcides Maya acaba de morrer. Não seria justo, portanto, que eu deixasse escapar esta oportunidade sem dizer algo mais acerca de sua figura excepcional. Quando o conheci, já ele adquirira aquele ar dos últimos tempos, de grande ave cansada e fascinante. Alcides Maya foi sempre um nostálgico, vivendo em perpétuo estado de evasão das circunstâncias ambientais, amando confiar-se ao sonho e às reminiscências. Nas suas manifestações mais fundamentalmente expressivas, embora vagasse por mundos longínquos, notava-se a presença constante de um elemento telúrico exercendo irresistível fascinação sobre seu espírito, à maneira de pauta para a estabilidade. Com efeito, o pampa estava sempre presente em todas as suas horas, mesmo falando de Byron. Circundava-lhe a fronte imponente um halo tecido da vibração das distâncias e do adejo das evocações. Movia-se invariavelmente na plenitude dum mundo de sonho e pensamento, alçando-se, olímpico, sobre a implacável contingência da vida. Nos seus arrebatamentos, dava a impressão, não raro, de errar pelos tempos sem destino certo. Mas a bruma ardida da montanha clareava-se às vezes no simples relato de um episódio, de uma lembrança, de uma anedota do grupo dos seus mais gloriosos dias, proporcionando-nos matéria para a decifração dos segredos daquele frêmito interior. Com um gesto, uma palavra, sabia mergulhar nos acontecimentos, nas almas, perfilando, na transfiguração da saudade, os nomes ou os fatos ameaçados de olvido. Possuía o dom de fazê-lo viver outra vez com a mesma intensidade, para evidenciar neles a verdade histórica ou a beleza de uma atitude, de uma idéia, de um sentimento.

Este, o perfil mal esboçado do grande homem que foi Alcides Maya.


Outros Regionalistas

Contamos ainda com outro grande regionalista que as gerações atuais desconhecem: Ramiro Barcellos. O seu poema satírico Antônio Chimango embebedou a gauchada. Mas não foi uma bebedeira entorpecente. Foi, sim, um trago largo e salutar, que encorajou o gaúcho, alegrou-lhe a alma de bom riso e lhe aguçou o senso do ridículo. Enorme influência teve esse poema - declamado nos galpões, nas canchas de carreira, nos pousos de carreta - na preparação da atmosfera rebelde de 23, movimento de incontestáveis conseqüências políticas, sociais e econômicas para o Rio Grande do Sul, ainda não suficientemente valorizadas, talvez por estar aquela revolução ainda muito próxima no tempo e por estarem vivos muitos dos principais figurantes daquele agitado cenário.

Por ora, o que nos interessa é o setor literário apenas. A revolução repercutiu sem demora nas letras da província, propiciando uma rumorosa atividade, que se prolongou por quase um decênio. Mas essa atividade, devido ao espírito imediatista dominante, em geral careceu de valia, excetuando-se os contos de Darcy Azambuja, os poemas de J.O. Nogueira Leiria, alguns versos bem achados de Vargas Neto, certas páginas muito sentidas de Roque Callage, e uma ou outra produção esparsa. Os demais regionalistas desse período, epígonos sem significação de Alcides Maya e Simões Lopes, requintaram nas exterioridades convencionais, perpetrando falsidades literárias de extrema indigência quanto à pintura da campanha e ao estudo dos caracteres. As suas produções consistiam invariavelmente na apoteose extemporânea da china, do rincão, do quero-quero, do bolicho, do fandango. Mas não se julgue que foi inócua essa atividade. De certo modo, essa gente, alguns golpistas das letras, outros simplesmente ingênuos, que vejo hoje apenas como melancólica poeira da estrada, contribuiu para que se prolongasse entre nós o culto das aparências, mascarando a visão fiel da verdade humana e das circunstâncias e dramas da coletividade crioula. Esse pacto com o convencional nos desviou, por mais de dez anos, da reflexão ponderada acerca dos nossos desígnios como povo. Essa insistência retórica da mentira, não raro coroada de fugazes vitórias, redundou numa quase fatalidade para a literatura gauchesca, porque a lançou no descrédito, dentro e fora do Rio Grande. Houve mesmo, entre os intelectuais rio-grandenses desligados do regionalismo, um momento de franco repúdio a qualquer prosa ou verso que tratasse de mate-amargo, de pingo, de chilenas, de bombachas.

Ao lado dessa literatura nativista inconsistente, que se comprazia no repisamento detestável do que já havia sido feito com inigualável mérito pelos maiores, os oradores políticos seduziam os eleitores embasbacados chamando o gaúcho de centauro, ardilosamente - como salientou Mário Álvarez Martins, numa prosa comigo. Enquanto florescia nas cidades, especialmente na capital, esse fervor pelo enfático e o declamatório, o homem da nossa campanha, cuja índole conservadora as novas circunstâncias de vida começavam a pôr em xeque, fazendo-o defrontar-se com contingências que o afastariam definitivamente do tradicionalismo campeiro - o nosso gaúcho, alvo de tantos hinários grandiloqüentes, de tantas declamações desperdiçadas, perdia o entono de guapo e entrava paulatinamente numa fase de insegurança existencial que culminaria na penúria desastrada de hoje. Porque o tipo então decantado era o gaúcho pobre, apontado como um indivíduo que sorria da desventura. E ninguém desses "poetas" enxergava que a estabilidade do campeiro, como homem de bem de "honor", dependera até então da vida das estâncias, cuja largueza estava acabando. Com efeito, o índio vago, personagem preferencial da lírica crioula, iria descambar em breve para a desolação do marginalismo dos nossos dias. Aplica-se aqui, a esse regionalismo de "mi flor", que por vezes ainda dá um broto tardio e intempestivo, o que Ramalho Ortigão Escreveu sobre a literatura portuguesa de 1871: "Tudo em torno dela se transformou, só ela ficou imóvel. De modo que, pasmada e alheada, nem ela compreeende o seu tempo, nem ninguém a compreeende a ela. É como um trovador gótico, que acordasse de um sono secular numa fábrica de cerveja".


Advento do Modernismo

E agora passemos em revista, sucintamente, o que acontecia no panorama da literatura nacional nessa época. Irrompera o modernismo em São Paulo, monopolizando desde logo as nossas inteligências mais atentas. O modernismo surgiu com todas as características de um movimento, porque visava objetivos definidos: rechaçar o passado, valorizar o presente e usufruir, por antecedência, algumas vantagens que só o futuro poderia proporcionar. A explosão frenética daquela agitação literária produziu um impacto alarmante entre todos os poetas bem metrificados e todos os prosadores fiéis aos cuidados de estilo à antiga, com base na submissão quase supersticiosa à gramática e no fervor pelo adjetivo rutilante. Nem a indiferença do público em face ao escândalo, nem as resistências acadêmicas opostas àquela avalanche de blagues e abusos sensacionalistas conseguiram impedir, retardar ou desmoralizar a conquista do país pelo modernismo, que teve uma organização quase de partido político, tal a pertinácia com que os núcleos estaduais aderentes o defendiam e propalavam. Tudo isto demandava muita coragem. Coragem de afrontar o ridículo e para desassossegar o oleoso remanso da mediocridade. Mas nem esse predicado faltou àqueles demagogos.

Uma ruptura tão brusca com o passado, imprimindo rumo inteiramente novo e surpreendente às letras nacionais, parece haver amedrontado os nossos regionalistas, que se nutriam da tradição. E aos poucos foram silenciando, até que por fim calaram.

Entretanto, numa determinada zona nacional - o nordeste -, a geração que se iniciava viu as coisas de outro jeito, começando adiantadamente, pelo pós-modernismo. É Gilberto Freyre quem diz: "Pela extensão do critério de história ao folclore, à história do povo, do escravo, do negro, do índio, do mestiço, da mulher, do menino, do parente pobre, os renovadores do nordeste contribuiram desde 1923, dentro de seus limites de provincianos para a renovação dos métodps de estudo, de analise e de interpretação da vida e do passado do Brasil, para o esforço - hoje tão livre, mas há quize anos ainda perro, diante de muitas dificuldades de criação literária e artística com material regional, tradicional, cotidiano, familiar que encerrasse ao mesmo tempo valores universais."

Por que no Sul não fizemos o mesmo ? Porque estávamos ainda demasiado presos ao preconceito dos temas de prporções épicas. E estes, além de não corresponderem mais à realidade desalentadora, de que talvez inconscientemente não quiséssemos nos capacitar, já se haviam desacreditado pela exploração excessiva e estereotipada.

No entanto o Rio Grande possuia material típico, inexplorado, que se ia gastando à toa, com graves prejuízos para a futura interpretação sociológica deste período da nossa evolução.Tanto mais que esta fase, a que estamos

vivendo de vinte anos a esta parte, é de evidente transição da nossa estrutura política, economica e social.

Se os assuntos existiam e estavam à espera dos escritores, por que não aproveitá-los, então? E tanto mais que o modernismo, esfriada a exaltação pelo asfalto e os arranha-céus, enveredara pelos sertões em busca do Brasil. Portanto, podia-se já escrever sobre motivos regionais, sem incorrer no risco de ser acusado de passadista.

Podia-se mesmo realizar o melhor modernismo dentro do regionalismo. Chegara-se, pois, não a um ponto morto, mas a um ponto de conciliação, lógico e producente. Nesse passo de convergência, aconteceram alguns fenômenos literários curiosos no âmbito intelectual do Estado. Certos futuristas, como se dizia genericamente naquela época, no momento em que os capitães do modernismo enveredaram para o hinterland nacional, voltaram-se com fervor para o desprezado veio lírico dos pagos. O exemplo mais frisante e o único produtivo foi o de Augusto Meyer. Impondo à sua fina sensibilidade de artista o rumo do crioulismo, logrou, com rara intuição poética, a estilização poemática de humildes arroios, de vaga-lumes, do Negrinho do Pastoreio e até mesmo a de uma fragorosa cavalgata.

Para que façamos uma idéia mais exata do bem que o modernismo trouxe a todos os que escrevem neste país, basta lembrar a "fusão de três princípios" fundamentais, impostos pelo movimento e assim formulados por Mário de Andrade: "O direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional".

Contudo, no que se refere ao regionalismo, só a posse dos princípios literários não era suficiente para atacar, sob uma forma atualizada que se impusesse à atenção pública e à consideração da crítica, os temas nativistas. Precisava-se de um método, de uma nova norma de investigação. Antes, o método consistia na informação erudita ou popular, na reprodução quase fotográfica das cenas, na confecção mais ou menos literária dos "causos", na pintura dos painéis - vastidões, arrebóis, batalhas. Fora da façanha, inclusive a paisagística, não havia salvação. Mas essa norma, bem o sabemos, já havia dado tudo que lhe era possível dar, daí a impressão generalizada de que o regionalismo se esgotara como fonte de inspiração. Na verdade, os temas clássicos estavam gastos e o manancial, apesar de permanente, desviara o curso do veio a que dá origem. Persistir na orientação antiga, seria não somente extenuar-se em vão, seria descambar no mais autêntico arcaísmo, isto é, para usar um conceito de Ortega y Gasset, seria "querer reter o passado, galvanizando-o, dotando-o de uma falsa atualidade e vigência".

Método é uma palavra erudita que sugere, aos espíritos desprevenidos, a idéia de uma série de regras. É que o confundimos em geral com a técnica. Esta, sim, é o processo de realização de uma arte. Método é a atitude assumida pela personalidade em face de um problema. Pois bem, qual o método a empregar na revitalização da literatura gaúcha? Apoiemo-nos mais uma vez no autor de Casa Grande & Senzala: "Simplicidade de expressão, simpatia humana pelos assuntos cotidianos e pelo mais próximo de todos nós - o nosso passado íntimo". Isto significa que devíamos substituir a romântica perspectiva do conjunto da história, do lendário, dos costumes e da paisagem, pelo enfoque realista, no sentido do aproveitamento crítico, com finalidade criadora, das próprias vivências e da dramática social. E para que não houvesse uma discordância entre o método e a técnica, precisávamos começar pela ampliação do material a explorar. Até bem pouco o nosso regionalismo estava limitado à campanha. E nesta, à estância. E nesta, no galpão. O fazendeiro, a sua mulher, as filhas moças, os rapazes que iam estudar, apareciam, quando apareciam, como figurantes secundários. No entanto, se esses elementos fossem aproveitados, teriam enriquecido a variedade e o vigor dessa literatura.

Hoje, porém, já este âmbito não basta. O regionalismo que se nutria apenas da estância entrou em crise. Com efeito, a estância deixou de ser aquele espetáculo permanente, brioso e bárbaro, de risco, de coragem, de emulação. Tudo que a cerca, agora, é monótono. Os rebanhos são dóceis, os peões passaram a chamar-se operários rurais, o patrão acompanha pelo rádio, com o mapa diante dos olhos, as manobras do "front" europeu, e a sua família raramente agüenta mais de um mês ou dois o tédio da fazenda.

Como se vê, não persistem mais as condições humanas que faziam da campanha rio-grandense uma existência à parte, original, pitoresca. Além disso e em conseqüência disso, é fato conhecido por todos que a nossa campanha dia a dia se despovoa, não em benefício da cidade, mas para sobrecarga da cidade. O marginalismo é a expressão mais dramática dessa migração caótica, que por vezes assume as características abomináveis do enxotamento.


Regionalismo e Localismo

O conceito de regionalismo que nos é familiar não se ajusta bem com as definições dos dicionários. O regionalismo traduz sobretudo uma atitude sentimental. Atitude de entusiasmo em face da região e da sua legenda. Legenda é uma palavra que se relaciona intimamente com a mística e com a epopéia. Por isso só é possível formar-se nas regiões palmilhadas pelos santos e pelos heróis. O Rio Grande do Sul, pagão, não deu santos, mas deu heróis. A presença de heróis na nossa formação, conseqüência das imposições de fronteira, foi um motivo duradouro da superestimação de nós mesmos. E a literatura, que se originou dessa exaltação coletiva, foi uma literatura de afirmação, assinalando de preferência o lado belo da vida, o heróico e o romanesco. Foi o regionalismo. O nosso regionalismo nada pedia, bastava-lhe o facho da tradição, empapado de pitoresco e luzindo façanhas. Contentava-se com exibi-lo como uma floração arrogante de vitalidade. Caracteriza-o um desejo machista de expansão e domínio. Daí a exata situação de Alcides Maya no regionalismo, ele, homem do mar alto da cultura. Segundo tantas vezes reafirmou aos seus amigos, em prosas inolvidáveis, escreveu Ruínas vivas, tal como é admirado sem restrições por uns e discutido por outros, impelido pelo anelo de impor o gaúcho, como tipo racial e estampa histórica, à consideração do Rio intelectual de princípios do século.

Bem diferente é o espírito que anima a literatura localista, mais prosaica, mais inclinada aos temas do cotidiano e ao estudo das depressões coletivas. Enquanto o regionalismo sublima as suas virtudes na glorificação do indivíduo, do tipo, do arquétipo e, no nosso caso, do "monarca das coxilhas" - o localismo evidencia os defeitos e as crises do grupo social em foco, sugerindo a reparação dos danos.

É do conhecimento de todos que a literatura rio-grandense atual, a que se refere à campanha e ao gaúcho, está sofrendo uma transição. Já não somos os regionalistas ufanos de antigamente. Pesa-nos a dura consciência da realidade. Somos localistas, se quiserem. Fazemos a defesa da gente crioula, não no sentido comum da palavra, mas no sentido de mostrar os erros em que incidimos e no reivindicar o amparo educacional a que ela tem direito.

O localismo será um grau de evolução acima do regionalismo ou será simplesmente outra face do mesmo tema? Acredito que não seja nem uma nem outra coisa. Por mais que isso possa espantar, entendo que localismo e regionalismo se excluem. No plano da criação literária e artística em eral, um não poderá nunca incidir na mesma faixa de trabalho do outro. O regionalismo retrata uma "realidade" eufórica. O localismo, quem sabe se até mais pretensioso literariamente, procura construir a sua ficção na base da realidade, sem adjetivos.

No Rio Grande do Sul passou a era da literatura regionalista. E não é sem amargura que ponho em evidência esta constatação, a qual implica reconhecer e aceitar, na esfera social, uma ordem de fenômenos por enquanto nada confortadora. Quando descrevemos a degradação do nosso camponês marginalizado, já não estamos fazendo mais literatura regionalista, no estilo dos velhos tempos, porque a essência deste gênero, conforme acentuei, consiste no toque de sobranceria romanesca. Estamos fazendo literatura localista. O regionalismo pretendia ser aceito sem nenhum prejuízo do exotismo que lhe dava cor e forma. O localismo apara os excessos particularistas e aspira à integração na literatura nacional, através da corrente de comunicabilidade de que participam os homens comuns. O localismo não experimenta nenhuma repugnância pelo feio e o vulgar, anseia por aproximar as diferentes províncias do país, sendo, portanto, fator de unidade nacional.


Localismo do Nordeste e Sul

Para o amadurecimento do localismo nordestino, conforme já sabíamos, e como acaba de frisar Sérgio Buarque de Holanda, contribuiu predominantemente a "ruína das velhas propriedades rurais do nordeste açucareiro, invadido pela usina metódica e progressista...". Para o localismo do Sul, como já se torna quase ocioso afirmar, colaboraram, agindo como elementos primários do drama a que assistimos, a subdivisão dos campos e a mestiçagem progressiva dos rebanhos.

A transformação do estilo de vida do gaúcho, com base na estância, apreciada a esta altura dos tempos, reconhecemo-la como inevitável. Teria sido desejável e vantajosa, se houvesse modificado a sua estrutura num sentido menos particularista. O que sobretudo lastimamos é que essas transformações, tecnicamente progressistas, não evoluíssem acomodando-se às nossas maneiras tradicionais de ser, isto é, à cultura gaúcha. E emprego aqui a palavra "cultura" na acepção em que a utilizam os sociólogos contemporâneos. Como escreveu o autor de Cobra de vidro: "Cultura compreendida como conjunto global de crenças, idéias, hábitos, normas de vida, valores, processos técnicos, produtos e artefatos, que o indivíduo adquire da sociedade como um legado tradicional e não em conseqüência de sua própria atividade criadora".

Privado das condições de vida que lhe modelaram o caráter, o gaúcho, não dispondo mais da fartura, do cavalo e da distância, decaiu como tipo representativo de um padrão de existência. Mas a culpa desse declínio não cabe somente à sua índole afeita ao espírito de aventura e de certo modo hostil à monotonia do trabalho duro e paciente, reclamado pelas novas circunstâncias do meio. Na verdade, as massas campeiras foram sendo pouco a pouco dispensadas - por que não dizer excluídas? - por desnecessárias, numa decorrência lógica do rumo que tomavam as lidas campeiras. Com efeito, o gaúcho pobre não foi chamado a participar do ciclo que se iniciava, de intensa comercialização da pecuária. Portanto, não devemos buscar as razões da penúria de hoje com exclusividade de vistas para a índole desprecavida do homem dos pampas.

Se há vinte anos, quando a campanha começou a adquirir condições adversas à subsistência do gaúcho sem bens de raiz, se os responsáveis pelos destinos coletivos se houvessem lembrado de realizar o que tanto se preconiza agora, colônias agrícolas e escolas de arte e ofícios em todos os municípios, teríamos quiçá atenuado o assoberbante marginalismo que atualmente asfixia muitas das nossas cidades.

Este problema é o mais grave de quantos possa ter o Rio Grande, a menos que façamos tábua rasa da questão gente, povo, tradição, cultura. Ainda há pouco Moysés Vellinho lançou ao debate desta matéria uma interrogação aflitiva: "Em concorrência com a prolífera massa formada por elementos de outras origens, constituirão no futuro os sobreviventes deste doloroso estado de coisas um suporte demográfico suficiente para resguardar a continuidade e prevalência das nossas fundações culturais?"

O problema passará certamente à alçada dos técnicos, já então como material concreto a ser modelado, uma vez terminado este exame de consciência pela aceitação geral de que é urgente restaurar, reabilitar o gaúcho a pé.

Quando Alberto Pasqualini, com a dupla autoridade de homem de cultura e homem público, anunciou oficialmente que o Estado chamaria a si a responsabilidade do destino dessas populações, dizia-se, agitar, num momento inoportuno, um problema tão grave, cuja solução o erário público não se achava em condições de afrontar e que bem poderia continuar na congelação a que fora condenado, sem influir coisíssima nenhuma no equilíbrio orçamentário do Estado! Então, quando nos acharemos em condições de pôr mãos firmes e decididas nessa obra? Daqui a cinco, dez ou vinte anos a calamidade terá se avolumado não sabemos quantas vezes mais e então, sim, teremos chegado a um impasse irremediável.

Em questões sociais, cuja natureza dinâmica é incontestável, a inércia nunca resolveu nada. Portanto, com a consciência alerta para o instante que vivemos, não podemos tolerar a insinuação de que se deve deixar que os fenômenos coletivos sigam o seu curso caprichoso, sem nem ao menos tentar influir racionalmente na arbitrariedade do destino. Protelar a solução do marginalismo rio-grandense é uma atitude suicida!


A Matéria do Localismo

Ao abo desta série de considerações a que fui arrebatado pela relevância do tema, volto a um clima menos polêmico.

Acho duvidoso que a literatura que se inicia no Rio Grande do Sul, nos termos em que a defini, atinja um autonomia semelhante à nordestina, ao ponto de se impor à atenção da crítica nacional. A vida interior da gente esfalfada a que acabei de me referir é geralmente como a sua roupa, de extrema indigência. E almas vazias não alimentam romances. As personagens que por ventura possamos extrair das entranhas do processo histórico a que estão subordinadas, possuem uma estrutura mental primária, tanto que nem se capacitam da própria desgraça. A ficção de intensa trama psicológica é evidentemente irrealizável com os elementos broncos de que dispomos. E como essas coroas de miséria que circundam as cidades constituem uma população doente, desnutrida e, conseqüentemente, desanimada, não possuem nem sequer o elã do protesto.

Mas resta a imagem tocante do conjunto das figuras esquálidas que se acocoram nos ranchos esbeiçados, por cujas frestas entrevemos, compadecidos, a patética presença do fadário ingrato. As dificuldades de elaboração literária do ema exigem mais do que um simples encadeamento de episódios mais ou menos dramáticos, anotados no decurso de um estágio. Material fácil para reportagens. Para a criação literária, porém, é necessário que tenhamos vivências da trama íntima daquela desolada paisagem humana.

Ninguém definiu melhor que Moysés Vellinho "a heróica luta que os nossos romancistas são chamados a empreender em silêncio para suprir com substância própria o que vulgarmente não encontraram à volta de si". A sua referência incisiva ao "meio de pouca densidade psicológica, incompleta na sua estratificação social", condensa tudo o que se poderia escrever a respeito. Apelemos, pois, para aquela "substância própria" dos nossos escritores, contemporâneos e futuros. E quem sabe se não está entre a geração dos estudantes de hoje o romancista que há de fixar definitivamente o "imenso drama em curso", que o crítico clarividente de Letras da Província assim resumiu: "Drama coletivo, empapado de matéria cósmica, é o obscuro sofrimento das nossas populações camponesas e marginais na luta desarmada pela sobrevivência!".

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Cyro Martins.
Sem rumo. Introdução. Porto Alegre, Movimento, 1997. 6ªed., p 14 e segs. (1a.ed.,1937). Ensaio originalmente publicado em 1944.


Links Relacionados:
- Nos Açores, o regionalismo versus a consciência insular
- Antecedentes do Gaúcho em Pé