UM MENINO VAI PARA O COLÉGIO | Imprimir |

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No dia seguinte, de noite, ia entrando em Porto Alegre. O trem trazia duas horas de atraso. Dez horas, dissera um senhor idoso e poeirento, guardando o relógio no bolso do colete. Os passageiros, sacudindo a modorra da viagem longa, remexiam-se dentro do vagão, juntando as bagagens, equilibrando-se mal às vezes, fazendo gestos hesitantes. Todos tinham um destino certo. Nos seus espíritos não pairava a menor dúvida quanto à direção a tomar. E ele? Iria para o Ginásio? Tão tarde... Não seria melhor dormir no hotel? A ordem de casa era expressa: você vai imediatamente para o colégio. Mas os pais não previram a possibilidade de atraso do trem. Perturbar o repouso do Ginásio àquela hora, sabia-o, de experiência, era quase cometer um escândalo. Se pernoitasse fora, porém, os próprios padres o repreenderiam, atribuindo-lhe talvez propósitos que não alimentava. Com a valise na calçada, meio desorientado na confusão do vaivém, sofria o dramazinho obscuro da sua indecisão. Quando o chofer se apresentou diante dele, não soube dizer o que pretendia, amedrontado pela maneira resoluta com que o indivíduo foi carregando a sua pequena bagagem para dentro do automóvel.

Ele seguiu atrás.

- Para onde?

Ainda tibubeava: Ginásio - Lagache?

Ao cabo de um instante, porém, arremessou para fora de si a dúvida incômoda. Que diabo! Pra que usava aquelas calças compridas?

- Lagache!

E nem uma só vez lhe ocorreu um outro nome qualquer. Em casa, quando se falava em hotéis, citava-se logo o Lagache. Seu Afonso sentia prazer em rememorar as suas duas estadias nesse hotel.

Recordava-se mesmo de detalhes minúsculos.

O carro parou. O porteiro lhe arrebatou a mala.

- Quanto é?

- Quinze!

- Quinze?

- Sim, quinze.

- Sempre paguei dez.

- Dez? A esta hora? Tá se logrando!

Encabulado, puxou o dinheiro e pagou.

Desembarcou desgostoso consigo mesmo, sentindo-se diminuído. Mas ele ainda havia de ser homem corajoso como o pai. Entrou contrafeito no hall, arrependido de não ter ido para o Ginásio. Foi para o quarto de humor sombrio. Sacudiu a poeira, tomou banho, estreou o terno de linho, que não era só novo, como era também o primeiro da sua vida. Olhou-se no espelho comprido da porta do guarda-roupa. Como tinha crescido naqueles três meses. Talvez até lhe dessem mais idade do que a que tinha realmente. A cara do espelho esboçou um sorriso de satisfação, que ele logo corrigiu.

Ao descer para o salão, o incidente com o chofer já quase nem o preocupava.

Acomodou-se numa mesa decanto.

A claridade fraca ia morrendo em penumbra para o outro extremo. Duas pessoas mais entraram, tomando lugares separados. Estranhava aquilo.

Então, o Lagache não era o primeiro hotel da capital? Supunha que todas as pessoas com aparência de posses que vinham no trem se hospedariam ali.

Passaram-se uns minutos. Ninguém o atendia. Um dos dois senhores lia A Federação atentamente. O outro, sim, olhava com certa intranqüilidade para uma porta envidraçada, através da qual se viam sombras cruzarem devez em quando. Fixando bem as vistas, percebia-se que aquelas sombras enxugavam pratos.

Não teriam sido notados? O que fazer? Bater palmas? Mas só no interior se batiam palmas para chamar os garçons... E ele não estava disposto a submeter-se a outro vexame.

Aguardou. Um dos dois sujeitos havia de providenciar. O espetáculo das mesas repostas para o almoço do dia seguinte era triste. Sobre algumas, murchavam flores na boca de vasos ordinários. A sua, encontrava-se despida de qualquer ornamento.

O galheteiro era feio e sujo. E na toalha havia nódoas de gorduras. Não obstante, agradava-lhe a frescura e a amplitude do salão.

Alguém surgiu na meia luz do fundo. Um indivíduo comprido, meio encurvado, ruivo, olhos grandes, sonolento, aproximava-se. Foi primeiro aos outros.

Ao vê-lo acercar-se, agora, Carlos experimentou um receio súbito e pressentiu outro episódio semelhante ao do automóvel.

Mas o garçom chegou macio.

- O cavalheiro queira desculpar a demora.

Não é tarde demais?

(Por que disse isto? Desculpar-se, por quê?)

- Consegue-se. Os atrasos de trem são freqüentes.

- Ah!

Foi um "Ah!" tolo, sem sentido, afetado.

Começava a aborrecer-se consigo mesmo.

- Tenha a bondade.

Com o cardápio na mão, fingindo escolher, nem reparou no garçom que se retirava, voltando em seguida com um prato de frios.

- A esta hora é só o que temos. O cavalheiro queira desculpar.

Iniciou a refeição com vontade. Aquele garçom era camarada. E que gostosos os frios!

O garçom chega bem perto, inclina-se.

- O cavalheiro o que toma? Vinho, cerveja ou chope?

Pela primeira vez lhe faziam uma pergunta dessas, e de maneira tão delicada! Embaraçou-se.

- Uma meia de Clarete, não?

O indivíduo alto aguarda a resposta numa atitude profissional, a testa franzida, os olhos vagamente fixos rumo à fronte do hóspede, que saboreia os frios com delícia e que principia a sentir o estímulo do bom prato.

Por fim decide-se, ou antes, procura livrar-se da dificuldade.

- Sim, Clarete, meia.

Confortou-lhe ouvir a -própria voz. Aquele som nem parecia da sua garganta. Tinha um timbre de homem.

Fica a considerar o garçom que se afasta. Magro, espinha curvada. Some-se aos poucos na penumbra do fundo do salão. Parecia cinema, aquilo. Ele tinha ido tão poucas vezes ao cinema! Mas parecia.

A garrafa já está na sua frente, úmida.

- Se não estiver como gosta, vou trazer gelo.

Sim, vou trazer gelo.

Os fragmentos de gelo brilham no prato. Sente-se como se estivesse vivendo uma situação fina e rara.

- Com licença.

O vulto aprumado se inclina, serve-lhe o vinho e põe um pedacinho de gelo no copo.

O gelo flutua.

A imaginação de Carlos inflamava-se de perspectivas imprevistas. Aquilo tudo não seria um conto de fada? Ele é o príncipe.

Leva a mão. A gema dos dedos palpa, tímida, o vidro frio. Ergue-o, olhando contra a luz.

A transparência rósea o seduz. Os seus lábios nunca provaram coisa igual. Delicioso! Mas o gelo insiste em ser tragado... Vamos, calma. Não há pressa. O mundo parou.

- Que cigarros o cavalheiro prefere?

Vacila. O garçom providencial o salva.

- Sônia?

Sim, justamente aquele. Reflete. Estará vivendo um sonho? Sônia... Deve ser o mais elegante.

Diziam que continha ópio... Recebe o maço. Põe um cigarro na boca pela primeira vez.

O garçom se apressa em acendê-lo. Chupa a fumaça, medroso.

Depois do vinho, não era tão mau o gosto estranho.

Que lástima não poder prolongar aquilo indefinidamente! O silêncio, a penumbra, a delicadeza do garçom, tudo lhe comunicava uma sensação esquisita de alívio, de conforto, de vida elegante.


De Um Menino Vai para o Colégio, capítulo final.