Tempo de Seca / Tiempo de Sequía | Imprimir |

TEMPO DE SECA

José Maria madrugara grande, muito mais que de costume.

E quem visse o alarme da véspera - movimentos com cavalhada, da invernada para o potreiro, daí para a mangueira, e logo cinco ou seis pingos agarrados, e deixados no gancho até meia-noite para alevianar - pensava em seguida: D. José 'stá de tropeada...

E não ficava nisso o barulho. Antes do primeiro canto do galo, o Chiru trazia a recolhida, como se o velho já fosse sair para uma viajada mui longa, dessas que pedem muitas madrugadas iguais. Mas qual nada! ficava só o rebuliço nomais. Todos achavam graça daquela mania de velho. Mas toda gente respeitava D. José, que fazia aquilo tudo mui a sério.

Depois de pegado o pingo, mateou descansado como das outras vezes até o apontar das primeiras barras do dia. Afinal encilhou, e cortou a trotezito rumo à Estância da Figueira.

Quando ponteou a Serrinha, nascia o sol, dilatado e vermelho, fogo vivo montando a aba do Cerro Grande. Sinal certo de que a seca havia de prolongar-se ainda por mais dois ou três meses, mastigava, concentrado e amargo, o velho campeiro experiente que era - sessenta anos! do campo e do tempo. E, daí quem sabe se não estaria errado? Puxa! Tomara que estivesse. E ladeado nos arreios, varreu o céu num olhar indagador. Viu só uma nuvenzinha branca, coisinha nada, longe, para o lado do Estado Oriental. E talvez ela trouxesse chuva, só pelo desaforo de desfazer no que dizem os velhos. Talvez...

Acendeu o crioulo e distraiu-se, atento para uma ponta de animais. Tão descaídos! Também, água por ali, só a mais de légua.

A animalada vivia transitando inquieta, com sede e com fome.

Tanto, que esse ano ainda não vira graxa.

O chão, aberto em largas brechas, manoteava traiçoeiro. Volta e meia o cavalo tropicava enfiando as mãos naquelas goelas. Mas ele não o guasqueou nenhuma vez. Culpado daquilo não era o pobre animal, era o tempo que não chovia.

Na beira rasa duma lagoa seca, uma garça branca. Olhando o quê? Olhando a figura n'água? E o velho riu daquele bicho bobo, que decerto procurava iludir-se.

Manhãzita alta já, apeou na sombra da ramada de mata-olho da Estância.

- Vovô taí, e traz fruta pra nós - gritou o Pedrinho, filho mais moço do seu Joca.

Foi o que chegou para que logo o velho estivesse rodeado de toda a gurizada da fazenda, alarmada com a nova das gulodices.

- Me dá pesco, vovô, me dá?

- Quedele aquelas frutinha manchada de encarnado?

- E daquelas redondas bem pretinha que o vovô trazia, não tem mais?

As indagações se sucediam numa fieira interminável. E o índio velho, vendo aquela alegria mudar-se em tristeza, acariciou, consolando, com a mão calejada de lida braba, as cabecitas ingênuas, alvoroçadas aos primeiros invites da vida.

Ah! que diferença das outras vezes! A seca transformara tudo. Pêssego, melancia, melão, tudo, tudo morrera com a seca, cozido pelo calorão ao sol. Até as frutinhas silvestres, como a guabiju e a pitanga, murcharam e caíram.

- E, patrão, é preciso tirá o gado pra costa do Ibicuí, que aquele campo não dá mais. Tá torrando. É uma miséria. Inté dá pena a gente vê aqueles pobre animal, trançando as pernas de magros.

- Daí, pode ser que chova hoje ou amanhã. Ontem foi nova. E eu tenho tanta fé nesta lua!

- Tomara, patrão. Ah! ia me esquecendo de le dizê que morreu aquele boi velho zebruno, marca da Corte. Abichou na papeira. Benzi três vezes e três vezes virei o casco... Mas ele sempre foi flaquerão mesmo.

E nesse tom frouxo charlaram até às onze, hora em que foram surpreendidos pelo ronco dum trovão.

Agachando-se, olharam por baixo duns couros pendurados da ramada, a beira do céu, que se carregava ligeiro de nuvens. A mesma banda onde estava de manhã a nuvenzinha solita, forrava-se dum paredão azul escuro.

Entreolharam-se e quedaram fitando o chão. Mas quanta coisa se disseram naquele olhar! Entre os dois, dum para o outro, passou a galopito uma bruta esperança.

Subia do chão um bafo de brasa, fazendo espichar e estalar como pipoca os zincos da coberta e as cordas dos aramados. As manchas escuras de sombra e as claras das olheiras de sol, maleavam os campos de oveiro.

Fronteando os dois, o galo amarelo soberano do terreiro bateu as asas de ouro debruadas de negro, e cantou três vezes. Um galo quando canta assim, fora de horas, virado pra um, está advinhando felicidade pra esse. E nesse dia, para eles, a felicidade só poderia vir com a chuva.

As duas da tarde vinha perto a tormenta, que era uma tormenta aquilo. A zoada do vento no arvoredo e nas frinchas, e o estrondo da chuva de pedra guasqueando os campos, ensurdeciam. E erguiam-se paredões pardos da terra solta dos corredores, enormes marcando os caminhos.

A água rolou de todos os declives, e correu pelos valados velhos de encher nas crescentes, pelos novos que o seu ímpeto abria e espraiava nos plainos duros, ásperos, que a sua forca não podia abrir. E ia desaparecer na cabeça das sangas, num vá, como se as sangas fossem sanguessugas sedentas.

A enxurrada não durou muito.

Lavado o céu. José Maria montou e rumou devagarito para o rancho.

Ia alegre o velho. A fresca da aragem rejuvenescera-lhe a carcaça alquebrada.

Depois duma légua de trote, começou a provar o galope do zaino. Era um galope esparramado, solto, como galope de potro, mas uma rede de macio. Queria chegar cedo para ainda aquela tarde ver o cercado, se molhara bem, se daria para lavrar e plantar alguma coisa. Se não desse e não viesse outra boa em seguida, que ia ser do pobrerio no inverno? Morrer de fome? Roubar? Mas o comissário para que é que existe? Roube um pobre um cordeiro dum rico, e conhecerá maneador, estaca, barra e folha de espada.

Ia nessa dança o pensamento do velho, quando olhou na meia sombra do sol posto, para o lado do rancho, e não avistando, murmurou com raiva: Puxa! que a gente despois de ficá véio inté as vistas arruína!

Logo adiante encontrou as vacas mansas. Estranhou que ainda estivessem ali. E foi repontando.

Vendo para um lado um bando grande de caranchos e outros tantos rondando no ar em espirais de ameaça, pendeu para lá.

- A pobre Joaquina teve tanto trabalho pra criá esta guaxa, e agora taí!

Diante do animal morto, considerou assim, com pena da Joaquina.

Voltando, já não viu mais as vacas, que, pensou, tinham ido solitas para a mangueira. E ao tranquito, já sem intenção de ver o cercado aquela tarde, foi dobrando tranqüilo as lombas miúdas da chegada.

As sombras subiam dos baixos, devagarinho, arrastando-se, agarradas ao flanco dos cerros. Mas nas pontas ainda amarelava um clarão de dia.

Perto do rancho, o cavalo levantou as orelhas como estranhando uma surpresa. E o velho ergueu os olhos até aí cravados no chão, cheios de cismas e planos. Planos de velho, é certo, mas ainda planos de vida. Barrear e guinchar o rancho na entrada do inverno. Feito isso, pegar algumas tropeadas. E comprar tanta coisa que faltava em casa!

José Maria chegava.

O silêncio que havia em redor pesava mais que a desgraça.

O seu rancho, um montão de cinzas.

O zaino espichou o pescoço, hirto, e olfateou a cinza morna.

O velho não apeou. Apear pra quê?

As sombras vindas de todos os baixos subiram no ar, aglomeradas, feitas uma só, e refugiaram, na sua quietude, o vulto curvo de José Maria.

--------

Cyro Martins

In Campo Fora. Porto Alegre, Movimento, 1991, p. 53 - 57 ( 5ªed.). 1ªEdição

 

 

--------

 

 

TIEMPO DE SEQUÍA

José Maria había madrugado muy temprano, mucho más que de costumbre.

Y quien viera el alarma de víspera - movimientos con caballadas, de la invernada hacia el potrero, de ahí a la manguera, y pronto cinco o seis pingos agarrados, y dejados en el gancho hasta media noche para alivianar - pensaba luego: don José tá de tropeada.

Y no se quedaba en ésto el barullo. Antes que cantara el gallo, el Chiru traía la recogida, como si ya fuera a salir el viejo a una viajada muy larga, de ésas que piden desde luego muchas madrugadas iguales. Mas ¡qué nada¡ quedaba sólo el rebullicio nomás. Se reían todos de aquella manía del viejo. Pero la gente lo respetaba a don José, que hacía todo muy en serio.

Después de agarrado el pingo, mateó descansado como de las otras veces hasta el apuntar de las primeras barras del día. Por fin, ensilló y cortó a trotecito rumbo a la estancia de La Figueira.

Cuando punteó la Serrinha, nacía el sol, dilatado y rojo, fuego vivo montando la falda del Cerro Grande. Señal cierto de que la sequía había aún de prolongarse por más dos o tres meses, ruminaba, concentrado y amargo, el viejo campero experiente que era - ¡sesenta años de campo y de tiempo! ¿Y de ahí? Puede ser que estuviera errado... ¡Pucha! ¡Puede ser que estuviera! Y, ladeado en los aperos, barrió el cielo con una mirada indagadora. Pudo ver sólo una nubecita blanca, cosita de nada, lejos en el rumbo del Estado Oriental. Y ojalá trajera lluvia ella, sólo por el atrevimiento de menospreciar a lo que decían los viejos. Ojalá...

Prendió el cigarrillo de chala y se distrayó, atento a una punta de animales. ¡Tan descaídos! !También! Agua por allí, sólo a más de legua.

La animalada andaba a transitar inquieta, con sed y con hambre.

Con tanta que en ese año aún no iba a convertirse en grasa.

El suelo, abierto en anchas grietas, manoteaba traicionero. Vuelta y media el caballo tropicaba, hundiendo las manos en aquellos gargueros. Pero por ninguna vez lo ha guasqueado él. Culpado de aquello no era el pobre animal, era el tiempo, que no llovía.

En la orilla rasa de una laguna seca, una garza blanca. ¿Mirando qué? ¿Mirando su imagen en el agua? Y el viejo se puso a reír de aquel bicho bobo que de cierto intentaba iludirse.

Mañancita alta ya, apeóse en la sombra de la ramada de mataojo de la estancia.

- Tá ahí el abuelo, y trae fruta pa nosotros - gritó Pedrinho, hijo más chico de seo Joca.

Fue lo que bastó para que el viejo pronto estuviera rodeado de todos los gurices de la estancia, arrebatados por el anuncio de golosinas.

- ¡Durazno, abuelo! ¡Dámelo!

- ¿Qué'de aquellas frutitas manchadas de encarnado?

- Y de aquéllas redondas, bien negritas, que usted traía ¿no tiene más?

Se sucedían las indagaciones en una hilera interminable y el indio viejo, empezando a ver que aquella alegría se convertía en tristeza, acarició, consolando con la mano callosa de la lid braba, las cabecitas ingenuas, alborotadas a los primeros invites de la vida.

¡ Ah! ¡Qué diferencia de otras veces! La sequía había transformado todo. Durazno, sandía, melón, todo, todo se muriera con la sequía, cocido por el calorazo del sol. Hasta las frutitas silvestres, como el guabiyú y la pitanga, se marchitaron y se cayeron.

- Bueno, patrón, hay que llevar el ganado hasta la cuesta del Ibicuí, que el campo aquél no da más. Tá torrando. Es una miseria. Incluso a mí me da mucha lástima eso de ver a los pobres animales trenzando las piernas de flacos.

- De ahí, puede ser que venga a llover hoy o mañana. Ayer fue nueva. ¡Y tengo mucha fe en esta luna!

- ¡Ojalá, patrón! ¡Ah¡ Y ya me iba olvidando de decirle que aquel buey viejo zebruno, marca de Corte, se murió. Abichó en la papera, le hice bencedura tres veces y tres veces le dé vuelta a la pisada... Pero el bicho era mismo flacote.

Y en esa tonada floja charlaron hasta las once. Hora en que fueron sorprendidos por el ronco de un trueno.

Agachándose, miraron, por bajo de unos cueros colgados, la borda del cielo que pronto se cargaba de nubes. El mismo rincón donde por la mañana estaba na nube-cita sola, ahora se encapotaba de un paredón azul oscuro.

Los dos se ojearon y quedaron mirando al suelo. ¡Pero cuanta cosa se dijeron en aquella ojeada! Entre los dos, del uno al otro, pasó a galopito una bruta esperanza.

Subía del cielo un bafío de brasa, haciendo estirar y estallar como pororó los zincs de cubierta y los hilos de los alambrados. Las manchas oscuras de sombra y las claras, de las ojeras de sol, teñían el campo de overo.

Enfrente de los dos, el gallo amarillo soberano del terrero batió las alas de oro orladas de negro y cantó tres veces. Cuando a deshoras canta así un gallo, volteado hacia alguien, le está adivinando felicidad. Y en aquel día, para ellos, la felicidad sólo podría venir con la lluvia.

A las dos de la tarde venía cercana la tormenta, que era una tormenta, aquéllo. El silbido del viento en la arboleda y en las grietas, y el estruendo de la lluvia de piedras guasqueando los campos, ensordecían. Y se erguían paredones pardos de tierra suelta en los corredores, enormes, apuntando los caminos.

El agua remolineó por todas las bajadas y corrió por los vallados viejos de llenar en las crecientes y por los nuevos que su ímpetu abría, explayada en los planos duros, ásperos, que su fuerza no podía abrir. Y iba desapareciendo en la cabeza de las zanjas, en un vu, como si las zanjas fueran sedientas sanguijuelas.

No ha durado mucho el chaparrón.

Lavado el cielo, José Maria montó y rumbó despacito hacia el rancho.

Iba alegre, el viejo. La fresca de la brisa le había rejuvenecido la carcasa encorvada.

Después de una legua de trote, comenzó a probar el galope del zaino. Era un galope desparramado, suelto, como galope de potro, pero suave como una hamaca. Quería llegar temprano para poder ver, aún aquella tarde, el cercado, si estaba bien mojado, si daba para labrar y plantar alguna cosa. Si no diera, y no viniera una otra buena enseguida ¿qué habría de ser del pobrerío en el invierno? ¿Morirse de hambre? ¿Robar? ¿Y para qué existe el Comisario? Robe un pobre un cordero de un rico y conocerá maneador, estaca, barra y hoja de espada.

Iba en esa danza el pensamienton del viejo cuando miró hacia el rancho en la media sombra del sol poniente y, no lo avistando, murmuró con rabia: ¡Pucha, que uno después de viejo tiene arruinadas hasta las vistas!

Luego adelante encontró las vacas mansas. Se sorprendió que aún estuvieran allí. Pero las fue repuntando.

Habiendo visto una bandada de caranchos hacia un rincón y otros tantos rondando en el aire en espirales de amenaza, quebró hacia allá.

- Tanto trabajo tuve la pobre Joaquina para criar a esa guacha ¡y ahora tá ahí!

Ante el animal muerto, así consideró él, con lástima de la Joaquina.

Volviendo, ya no vio más las vacas que, imaginó, habían ido solitas hasta la manguera. Y al tranquito, ya sin intención de ver en aquella tarde el cercado, fue doblando tranquilo las lomas menudas de la llegada.

Despacito, subian de los bajos las sombras, arrastrándose agarradas a los flancos de los cerros. Pero en las puntas aún amarillaba un clarón de día.

Cerca del rancho el caballo paró las orejas como extrañando una sorpresa. Y el viejo alzó las vistas hasta entonces clavadas en el suelo, llenas de planes y cavilaciones. Planes de viejo, es cierto, pero todavía planes de vida. Barrear y quinchar el rancho en la entrada del invierno. Hecho eso, pegar algunas tropeadas. ¡Y comprar tanta cosa que faltaba en casa!

José Maria estaba llegando.

El silencio que había en derredor pesaba más que la desgracia.

Su rancho, un montón de cenizas.

El zaino estiró el pescuezo, tieso, y olfateó la ceniza tibia.

El viejo no se apeó. ¿Apearse para qué?

Las sombras que venían de todos los bajos subieron en el aire, aglomeradas, hechas una sola, y refugiaron en su quietud el bulto corvo de José Maria.

--------

ESTADO ORIENTAL - Dícese en Rio Grande do Sul de la República Oriental del Uruguay.

MAÑANCITA (del portugués manhãzinha) - Diminutivo de mañana.

Cyro Martins

In: Campo fuera [tradução de Aldyr Garcia Schlee]