QUINTANA E SUAS LONGITUDES* | Imprimir |

Cyro Martins


Com o título do último livro publicado - Velório sem defunto - estará Mário Quintana esnobando os que têm medo da morte, de defunto ou de alma de outro mundo? Mas ele não é dessas brincadeiras. Não pertence à fauna dos que se deliciam em escandalizar o próximo. Esse título é apenas um lembrete, até desnecessário, porque todos os dias morre muita gente ao redor de nós. Mas o poeta deve ter lá os seus motivos... Motivos de poeta, dirá um que outro leitor. Só mesmo demorando na leitura do livro, indo e vindo, talvez se possa desvendar o enigma do título. Também, pra que descobrir tudo? Para tranqüilizar a nossa aflição? Sabemos que muitas descobertas são filhas da ansiedade. Navegantes insofridos demandaram os mares naqueles tempos das caravelas, que um dia um tal Mário Quintana iria saudar cheio de alvoroço, lançando sua voz aos quatro ventos, voz cheia das mil vibrações das canções alvissareiras. Aquele foi um momento especial na inspiração do poeta. Aliás, os livros de Mário Quintana estão povoados desses achados singulares, o que sói acontecer com os grandes poetas.

Como à medida que escrevo vou folheando o livro, deparei-me agora pela terceira ou quarta vez com “Despedidas”. Não vou afirmar que seja verdade ou mentira - mentira de poeta, bem entendido  - o que ele, o Quintana, o padrão daquela casa linda lá da Rua da Praia, diz de maneira tão simples e piedosa sobre o que há de mais doloroso nas despedidas e acaba concluindo que “tanto o que fica como o que vai embora” têm o mesmo pensamento: “Meu Deus, quando é que parte o raio deste trem?”. Pior que isso eu já presenciei.

Vi alguém embarcar na composição errada. E quando chefe da estação bateu o sinal da partida, e a máquina apitou, a mão do viajante e as mãos dos que se despediam abanaram. Houve no instante aquele misto de graça e tristeza que caracteriza esses flagrantes. Um trem se deslocou, mas não levou o vagão em que embarcara o nosso viajante. Sua mão foi abanando progressivamente com menos ímpeto até cair ao longo a perna, caiporamente.

E assim o poeta nos surpreende a cada página, ao virar a folha que esconde o conhecido desagradável. Digo, conhecido porque logo, dentro de nós, uma voz exclama: mas, é isso mesmo! Como é que não me lembrei disso antes?

Eis aí a grande função catártica dos poetas, dos poetas em geral, façam versos ou prosa. Entretanto, não concordo com o Quintana quando assegura que “a criança que brinca e o poeta que faz um poema estão ambos na mesma idade mágica!”. Não, um está recém descobrindo o mundo e o outro está transfigurando os caminhos percorridos.

Também não concordo com a afirmação de Liana Milanez, na sua magnífica orelha, de que “sua inquietude é o verdadeiro defunto ausente”. Não, o defunto ausente é a desmotivação que amargura o poeta. É o sentir-se “no outro lado da realidade”.

A sabedoria existencial de Mário Quintana está resumida nestes quatro versos:

A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!

É por isso que eu costumo dizer, baseado noutras fontes humanísticas de conhecimento, que os homens ainda não aprenderam a criar filhos nem a conversar. O dia em que essa graça iluminar a humanidade certamente a vida passará a ter outras cores e não estas lúgubres de hoje.

O poeta afirma ter descoberto o “famoso mistério” do sorriso da Gioconda, “é o mesmo sorriso que tem essa gente sempre de boca fechada”. O faro psicológico intuitito levou Quintana a captar o que há de agressividade contida naquela fisionomia enigmática.

A propósito desse pequeno poema, evoquei minha visita ao Louvre. Íamos devagar, como toda a gente, de sala em sala. Numa parecia haver apenas um quadro. Muita gente se apertando, espichando o pescoço, num quase êxtase. Nós também paramos, integrados naquele aglomerado de gente. Tive a sensação de que, se num dado instante, a Gioconda abrisse o sorriso ou franzisse a testa, aquele povo seria capaz de cometer qualquer desatino, até mesmo de fazer uma revolução, como multidões que se deixam fanatizar pelas figuras carismáticas.

Todo o livro está impregnado de contingências imponderáveis, sobrepostas às virtualidades do poeta de intérprete dos “fantasmas próprios” de “todas, todas as coisas que foram nossas na vida”, os caminhos, os sapatos, os quartos, as casas e “as nossas noites de insônia”.

Se eu fosse assinalar os poemas que mais me impressionaram, talvez chegasse ao exagero de enumerar o índice, de fio a pavio. Mas, para apontar um, singular, simples e envolvente, lembrarei. “O Vento e Eu”. Também eu às vezes, quando o vento sopra forte e faz uma zoada comprida, mesmo na cidade cheia de edifícios, recordo com nostalgia o ai do vento nos oitões do meu tempo de guri, na campanha.

Esse, o poder dos poetas, apesar do jeito triste que às vezes têm de animadores do sentido oculto da natureza e do que levamos de sestros infantis nas nossas almas caminheiras, ao longo das distâncias e suas miragens.

Na Nota Preliminar às Poesias do seu heterônimo Álvaro de Campos, Fernando Pessoa conceitua: “a emoção não é a base da poesia: é tão-somente meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras”.

Ilustremos o conceito de Pessoa com estes dois versos de Quintana:

Têm qualquer coisa de anjo esses suicidas voadores,
Qualquer coisa de anjo que perdeu as asas.

A idéia de perda definitiva de esperança, a agonia, está revestida nesses versos de emoção que lhe dá força de contágio.

Assim é a poesia de Mário Quintana, neste como nos seus demais livros, surpreende de imprevistos, que brincam de esconder nas aparências enganadoras da simplicidade. Sua transparência é de água de sanga de pedra em manhã de sol recém-aberta. Através da translucidez da forma límpida captamos as idéias que ziguezagueiam rente às pedras lisas e os limos verdes das águas das sanguinhas.

Em síntese, o que estou me esforçando por dizer é mais ou menos isto: a poesia de Mário Quintana compõe-se de senso de humor, de um espanto íntimo chamado emoção e de uma pessoalíssima visão de mundo que às vezes dói. Esse, o seu sentido de realidade.

Imaginar um velório sem defunto é tão espantoso quanto alucinar um anjo sem asas.


*Cyro Martins,
in Páginas Soltas (ensaios) Porto Alegre, Movimento, 1994. p.26-29.