Depressão * | Imprimir |

Cyro Martins

 

Na década de 1920, quando recém começavam a se tornar conhecidos no Brasil os estudos básicos da teoria psicanalítica, a histeria era o ai-Jesus dos encontros e conferências sobre temas psiquiátricos. Hoje em dia está em pauta a depressão, assim como há trinta anos esteve a mania. Esse parece ser o ritmo das teorias que enriquecem o conhecimento humano, um ritmo de vaivém.

Quando se aborda esse tema, a depressão, é difícil evitar a tese da enfermidade clínica maníaco-depressiva e deixar de ponderar a existência de uma personalidade básica ciclóide. Com esta expressão pretendemos significar a fenomenologia oscilante que esses pacientes apresentavam, entre dois pólos: o maníaco e o depressivo.

Os pacientes em pleno surto psicótico são fáceis de diagnosticar, porque a sintomatologia da doença se apresenta em alto relevo. Entretanto, na vida corrente, confunde-se facilmente uma personalidade hipomaníaca ou depressiva leve, ambas compatíveis com um trem de vida familiar e profissional produtivo, com a normalidade existencial.

Nem sempre as oscilações de humor bastam para se fazer um diagnóstico. Muitos deprimidos crônicos passam por hiponcondríacos adaptados às exigências do cotidiano. Outros deprimidos crônicos, que nunca fizeram um surto maníaco, no convívio comum caracterizam-se pelo curso pausado do pensamento, retardando suas respostas e decisões, bem ao contrário do hipomaníaco, que é ligeiro da palavra e da ação, nem sempre adaptada.

O que nos interessa rastrear aqui, hoje, é a fenomenologia depressiva. É comum que os deprimidos experimentem a sensação angustiante de que seu corpo não lhes pertence e foge ao seu domínio, queixando-se de haver perdido o sentimento de estar vivo.

Poderíamos enumerar muitas outras expressões de conteúdo semelhante, porém isso nos levaria a uma exposição desnecessariamente prolixa. No entanto, é preciso salientar que o ciclóide sofre de uma versatilidade emocional tão grande que às vezes se torna difícil, quase impossível, enquadrá-lo como maníaco ou como depressivo. Assim, somente descrever o deprimido como um ansioso e de humor pesado é insuficiente. Existem sutilezas emocionais na personalidade ciclóide que fogem às características descritas na literatura clássica. No íntimo da personalidade ciclotímica, segundo J. Campbell, existe um processo orgânico oculto que causa a enfermidade. Esse autor aponta como prova da sua afirmação o fato de que nesses doentes se encontram sempre perturbações do sistema neurovegetativo, ocasionando alterações corporais. Assim, são freqüentes os distúrbios gastrintestinais, tais como gastralgia, vômitos, constipação (freqüentíssima nos deprimidos), diarréias, anorexia, colites, indigestão gasosa, sensação de plenitude gastrintestinal logo após a ingestão de qualquer alimento, etc. Tudo isso leva essas pessoas a perambularem de consultório em consultório à procura de tratamento para úlceras, câncer e outras doenças imaginárias, cada qual mais grave. É freqüente que saiam dessas consultas com o diagnóstico de colite ou cólon irritável. Com tais diagnósticos, esses doentes sentem-se armados para se defender do tratamento psicanalítico. Também devem despertar suspeitas os diagnósticos de apendicite crônica e o de desinteria amebiana. Com freqüência, tais pacientes se submetem a repetidas radiografias do trato gastrintestinal revelando quando muito um piloro-espamo ou um cólon espástico. Não raramente se submetem a operações exploradoras ou extirpadoras.

Do ponto de vista das preferências profissionais dos ciclotímicos apontam-se as de pregador evangélico, funcionário público, executivos de grandes firmas, bancário, secretário de associações.

Algumas dessas pessoas, que não fazem oscilações muito acentuadas entre a hipomania e a depressão, costumam esconder-se, deliberadamente, até que passe seu estado melancólico. Essas oscilações de humor originam uma visão irreal das coisas e das pessoas que os cercam, causando uma perspectiva errônea da realidade. Por isso, desde cedo se vêem cheios de culpa e remorsos por atos que não praticaram. Sofrem de incerteza de tê-los ou não praticado. Essa é a origem de certas idéias de auto-referência.

Quanto à sexualidade, o deprimido crônico tende ao desinteresse libidinoso. Na mulher é causa de frigidez. Já nos maníacos, o quadro é bem diferente. Há um transbordamento da atividade sexual, acarretando às vezes conseqüências desastradas.

Socialmente, como é óbvio, a personalidade ciclotímica oscila na atuação, conforme predomine o pólo maníaco ou pólo depressivo. Convém assinalar aqui que os ciclotímicos são muito susceptíveis aos estímulos ambientais.

No consultório, durante a sessão de psicoterapia, tanto o hipomaníaco quanto o deprimido oferecem sérias resistências a colaborar com o terapeuta. O hipomaníaco tende a extrapolar para temas relacionados com a religião, a liberdade, as leis sociais, a Bíblia ou autores célebres. Os maníacos, quando internados, não se conformam e ameaçam a direção do hospital com processos judiciais.

A conduta doméstica varia diametralmente do maníaco para o deprimido. Enquanto um se mostra hiperativo, importunando meio mundo, o outro permanece no seu canto, sofrendo calado as suas agonias.

A desadaptação social do ciclotímico, como é lógico, se mostra mais evidente à medida que o indivíduo se aproxima da psicose, isto é, quanto mais se afasta do senso de realidade. Tanto nos estados maníacos como nos depressivos, os pacientes provocam questões de negócios, discórdias familiares, delírios de ciúme, desordens de comportamento no seu meio social e no ambiente de trabalho, chegando a extremos como o homicídio e o suicídio. Naturalmente, mais vezes chega ao primeiro o maníaco e ao segundo o melancólico. Aliás, nessa contradança de estados anímicos, a unidade fundamental é constituída pelo traço paranóide.

Desde que os conceitos psicanalíticos se difundiram e passaram a fazer parte dominante da atual psiquiatria dinâmica, passou-se a compreender o homicídio como um suicídio parcial, de sorte que um paciente depressivo, ao matar uma pessoa amada, geralmente levado por um delírio de ciúmes, mata-se, simbolicamente. Segundo o autor inglês J. R. Jamieson, “ninguém se mata sem que, primeiro, tenha desejado matar a outros ou pelo menos desejado a morte de alguém”.

O brilhante articulista Otto Lara Rezende escreveu na Folha de São Paulo, no último 24 de agosto, que Getúlio Vargas, ao matar-se, deu um tiro no peito dos militares. Ignoro se esse jornalista tem conhecimentos psicanalíticos, mas se os tem, não devem ser profundos. No entanto, a sua intuição de escritor o levou a formular uma verdade psicológica sibilina. Certamente nunca leu o ensaio de Freud sobre “Luto e Melancolia”. Nesse estudo, de 1915, Freud tem uma frase que ficou célebre e já há de estar gasta pelo excesso de citações. Entretanto, antes de, por minha vez, citá-la também para nos ajudar a compreender a essência do nosso tema, convém nos determos na palavra “objeto”, termo básico na literatura psicanalítica. Chamamos objeto tudo aquilo que excita o nosso interesse de aproximação e de posse; aquilo que exigimos para alcançar uma satisfação instintiva.

Na terminologia psicanalítica, a palavra objeto quase invariavelmente se refere a pessoas, a partes da pessoa, a coletividade ou a símbolos que as representam. Para o ouvinte leigo ou para o leitor comum a dificuldade surge do fato de que todos estão familiarizados com o sentido universal de “coisa” que se dá aos objetos em geral.

Quando em psicanálise nos referimos a amor objetal ou de objeto, estamos aludindo a uma pessoa oponente à auto-referência. Objeto amoroso é a pessoa amada ou, às vezes, uma abstração, uma situação. Usamos as expressões “catexia objetal” ou de “objeto” para designar o investimento de energia que fazemos num objeto externo, seja pessoa ou coisa ou situação, contrastando com o investimento narcisista, ou seja, em nós mesmos.

Voltamos à menção de Freud, resumidamente. No caso de abandono por alguém muito amado ou uma situação que satisfaz plenamente o nosso narcisismo, o ego absorve a libido que estava antes ligada ao objeto perdido. Nessas circunstâncias, se estabelece uma identificação do ego com o objeto perdido. Daí a frase célebre que, além do conteúdo científico, está revestida de bom gosto literário: “A sombra do objeto caiu sobre o ego”. Isto significa que todo desgosto, toda raiva antes dirigidos ao objeto incidem agora sobre o ego. Em decorrência, as auto-recriminações, que poderão atingir a culminância da auto-agressão fatal. Por isso Otto Lara Rezende, ao afirmar que, ao matar-se, Getúlio Vargas deu um tiro no peito dos militares, exprimiu uma verdade psicológica profunda, talvez sem captar toda sua extensão.

O famoso psiquiatra e psicanalista norte-americano Menninger sentencia: “O suicídio é uma tentativa de escapar de uma situação intolerável na vida; na força suicida existem três componentes: o desejo de matar, o desejo que o matem e o desejo de morrer”.

Quanto ao comportamento do deprimido na vida comum, convém salientar que acometidos desse estado mórbido, certos indivíduos procuram ambientes ou situações que propendem a agravar o seu desânimo. Assim, entre os evangélicos, é comum que comecem a ler exclusivamente a Bíblia; outros se dedicam a ouvir músicas sacras, outros a matutar sobre a morte ou a fazer visitas ao cemitério. Alguns se identificam em pensamento e também na conduta com pessoas já falecidas. E há ainda melancólicos que se identificam com figuras humanas horrorosas, sob qualquer forma. Quando o indivíduo nesse estado se encontra fortemente influenciado por idéias auto-destrutivas, procura ambientes nos quais predomine uma atmosfera fúnebre e passa a falar com freqüência sobre parentes e conhecidos que se mataram, ou então, mais disfarçadamente, aborda assuntos que dizem respeito, de maneira direta ou indireta, à vida extraterrena. Alguns, mais intoxicados pela idéia de morte, fazem planos para o próprio funeral.

Vem da antigüidade e perdura até hoje em certos setores da sociedade a concepção errônea de que uma pessoa se mata quando está cansada de viver. Isto é uma maneira de tentar obscurecer o sentido dos fatos comuns da vida corrente.

Segundo o conceito de Sandor Rado, “a melancolia é uma súplica desesperada de amor, enquanto que a mania representa um reencontro com esse amor”. Tanto num como noutro caso, a nota dominante é o distanciamento da realidade.

Quero agora referir-me a um autor argentino, cuja obra escrita e publicada é relativamente escassa, porém valiosa, embora tenha ficado aquém do que ele foi como professor de psiquiatria e como supervisor psicanalítico. Além da psiquiatria e da psicanálise, ele dominava amplamente a literatura, a sociologia e as ideologias políticas imperantes na primeira metade do século. Refiro-me à personalidade singular de Enrique Pichón-Rivière, um dos meus mestres mais admirados. Convivi com ele, na condição de candidato a psicanalista, e portanto de aluno do Instituto da Associação Psicanalítica Argentina, durante quatro anos. Além de seu supervisionado, fui também seu aluno de seminários, dentro e fora do Instituto. Algumas de suas aulas eu assisti no antigo Hospício de Las Mercedes.

Tenho em mãos a sexta edição do livro de Vicente Zito Lema, intitulado Conversaciones con Enrique Pichón-Rivière sobre el arte y la locura. Na verdade, o livro é muito mais abrangente do que o título sugere. Atenho-me unicamente às passagens que dizem respeito ao nosso tema de hoje.

Pichón estava já muito doente por ocasião de Las conversaciones com o seu entrevistador. Portanto, como é de supor-se, seu estado de ânimo só podia ser de abatimento. Diz ele que a tristeza o marcou na infância para sempre e que a tragédia nunca deixou de rondá-lo. Põe ênfase ao afirmar que ninguém elege os fatos de sua vida, muito menos os de sua infância. Porém ele jamais se resignou nem aceitou com prazer a tristeza. Por isso, embora doente, seguia trabalhando, não obstante a melancolia tenha estado sempre presente na sua vida. E logo rebate essa nota depressiva, afirmando que nunca foi à procura da tristeza nem jamais renunciou à plenitude da vida.

Pichón põe muita ênfase no combate à tristeza como meio profilático. E por que se deverá combater tão tenazmente a tristeza? Porque, no seu entender, é a partir da depressão que nascem todas as enfermidades mentais. A isso ele chama “enfermidade única ou núcleo gerador de toda enfermidade”. No seu conceito, pois, a depressão é a situação básica patogênica que posteriormente se desenvolve como esquizofrenia, neurose, etc.

Considero essa concepção de Pichón-Rivière de suma relevância para todos nós, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas. É fundamental que a tenhamos sempre presente no nosso exercício clínico.

Pichón cita Griesinger, psiquiatra de meados do século passado: “O período inicial de todas as enfermidades mentais é um estado de melancolia”.Naturalmente, como em quase tudo, também aqui há ressalvas, levantadas pelo próprio Griesinger, tais como os distúrbios mentais que estão na dependência insofismável de lesões cerebrais.

Num trabalho de 1946, intitulado Psicanálise da Melancolia, Pichón-Rivière expõe os fundamentos de sua teoria sobre o que ele chama “a enfermidade única”. As idéias essenciais do mestre argentino a esse respeito se referem a que toda riqueza se origina de alguma perda, quase também derivada de um prejuízo econômico ou da limitação da liberdade. É em torno dessa perda que se origina o conflito, cuja solução possível só acontece “através da recriação progressiva do objeto”.

Por aí se pode julgar o quanto é difícil e longa a tarefa do psicoterapeuta, a de repor em trem de vida, no íntimo do paciente, o que foi destruído e que tanto perturba a sua visão da realidade.

Ainda recentemente pude vivenciar esse duelo com a depressão, tratando de dois pacientes de sexo diferentes, porém quase da mesma idade. Ambos andam ao redor dos quarenta: uma mulher solteira e um homem casado, com filhos. No primeiro caso se tratava de uma mulher que estava na iminência de perder o seu até então único amor sério de toda sua vida. No segundo, o fator desencadeante do quadro melancólico foi a dispensa do cargo que o paciente exercia há mais de vinte anos e absolutamente necessário para a sua manutenção, dele e da família.

Os quadros são típicos. A recuperação cheia de tropeços, de recaídas e soerguimentos. Mas o importante que desejo salientar é a patogenia. Em ambos os casos ficou clara a perda de objeto. Num, a perda clássica do objeto amoroso; noutro, a perda duma situação de subsistência. Nesses casos, como noutros semelhantes, onde incide o acento patológico? Creio que na falha da capacidade de elaboração dos estímulos vivenciais negativos. E em que consiste a elaboração? A elaboração, penso, é o metabolismo das energias mentais que se harmonizam para a consecução dos pensamentos ativos, que constituem as bases do atuar construtivo.

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Ao longo da vida, principalmente nos primeiros vinte e cinco anos de existência, todo ser humano sofre uma série de pequenas depressões, inerentes ao crescimento.

Pichón-Rivière chama proto-depressão a que se origina do momento do ser humano deixar o aconchego do útero materno. Depois vêm as que se sucedem ao desmame, ao ir para o colégio, e a escala das perdas e ganhos próprios da puberdade e da adolescência. Finalmente, a soma de toda a romaria existencial até atingir o platô da mocidade. Mas essa sucessão de lucros e perdas, que fazem parte do jogo existencial, não pára ao longo da vida. Por isso cabe muito bem citar aquela frase inesquecível que Raul Pompéia escreveu no seu justamente famoso romance O Ateneu: “Vem de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam”. Aí, mais uma vez a intuição psicológica do ficcionista acertou. Certamente Pompéia se referia à sucessão de perdas a que estamos sujeitos desde o nascimento.

As vidas bem sucedidas são aquelas que conseguem compensar com lucros os danos das etapas anteriores. As depressões sobrevindas a cada perda estimulam a elaboração das vantagens da nova etapa. Aceita-se que um certo grau de depressão periódica é necessário para que possamos progredir. Na sucessão das etapas existenciais a puberdade-adolescência é a fase mais longa e mais tumultuada. A solução de seus problemas está na dependência das vivências da infância e da expectativa dos dias de mocidade.

Depois, a mulher terá de enfrentar a guerra do climatério e o homem a entrada na terceira idade. Se a vida amorosa prévia foi gratificante, tanto a mulher como o homem enfrentarão com galhardia as últimas etapas da existência. Do contrário, o que os espera é a amargura do declínio. E não há hormônio que substitua a vida que não foi vivida.

Tanto na adolescência como no climatério, aos fatores internos excitantes juntam-se as alterações corporais e os estímulos externos, de ordem social e cultural, a desafiarem o senso de equilíbrio da pessoa.

A criatividade é a grande defesa contra os estímulos internos e externos que provocam tensões psicológicas. E não me refiro somente à criação artística ou científica, ambas exigindo alto gabarito intelectual, mas ao engenho que devemos pôr nas minúcias com que construímos e mantemos a rotina das nossas vidas.

À pergunta de se a psicanálise oferece meios de curar a depressão, direi que o nosso empenho terapêutico consiste essencialmente em tentar fazer com que o paciente se livre dos objetos internos perseguidores que o torturam, levá-lo a um estágio mental de auto-estima, que se caracteriza pelo reconhecimento das potencialidades próprias que o ligam à vida.

Isso é o que pretendemos através da nossa investigação dialogada. Diálogo muito singular, esse, entre o analista e o paciente, difícil de entender e aceitar por quem não passou por essa experiência. O empenho do psicanalista consiste em fazer o paciente aceitar a sua verdade, dele, paciente, tenazmente rejeitada, por intolerável. Simplesmente apelar à razão é um recurso precário. Por isso precisamos atingir o ninho dos demônios, os demônios que nos seduzem e nos confundem, envolvendo nosso pensamento nas malhas dos símbolos e das analogias. E nesse ganha-perde nos embrenhamos no inconsciente, procurando evitar as jogadas às cegas.

Mas há ainda as depressões que não são doença, as depressões que inspiram as nostalgias poéticas, os anseios pela aurora da infância, alimentadores de muitos entusiasmos criadores e também de lembranças e de lugares distantes e entes queridos extintos. Sinto, então, que é chegado o momento de me calar porque, parafraseando Camões, aqui termina a ciência e começa a poesia.

 


* Texto escrito a partir de Conferência para psicólogos clínicos e estudantes de psicologia, proferida a 11.11.92, publicada em Caminhos (ensaios psicanalíticos).Porto Alegre, Movimento/Instituo Cyro Martins, 1993, p.73-83).