Cyro Martins e o Gaúcho: Mito, Ideologia e Regionalismo | Imprimir |

Elizabeth Pires Rizzato - Professora de Literatura


Mito, ideologia e regionalismo são três aspectos que se salientam na obra de Cyro Martins, especialmente na trilogia do "gaúcho a pé". Entretanto, o Autor, ao utilizá-los, apresenta uma outra face, inovando-os e mesmo subvertendo-os.

Até mais ou menos 1930, o Regionalismo ainda apresenta resquícios do Romantismo. Mostra uma visão de certa forma desvinculada da engrenagem social que já apontava para uma realidade problematizada. A maioria dos escritores desse período no Rio Grande do Sul tinha uma postura reacionária e, mesmo que percebessem a desagregação da velha ordem oligárquica que impelia a existência de novos grupos sociais, poucos deixavam transparecer essa mudança em suas obras.

Até então, os elementos que embasam o Regionalismo na literatura, isto é, o meio, a personagem e, no caso de Sul, o tempo histórico são usados como reforço de valores discutíveis. O gaúcho é mostrado como um homem cheio de qualidade. Habitante da região da Campanha, sentia-se dono da imensidão geográfica, identificando-se com a terra e dividindo o seu tempo entre a faina pastoril e a guerra. Ele é esculpido por esse espaço que faz dele um guerreiro e um campeiro. O tempo privilegiado era principalmente o da guerra e a Revolução Farroupilha é o momento que assinala o auge da bravura do gaúcho. Em outra palavras, foram usados os elementos básicos da mitificação e mesmo mistificação do gaúcho, agora mera personagem da história.

Nesse sentido, o que diferencia o obra de Cyro Martins é a forma direta e clara como ele aponta a emergência de novos grupos sociais como os deserdados do campo e de uma classe média em fase de politização. O fazer literário, isto é, o ato da escritura, se torna participativo. Assim, o Autor, diante da realidade social, faz com que o meio onde decorre o drama seja não apenas um elemento condicionante externo para tornar-se interno ao desempenhar um papel na estrutura da obra. Por isso, Cyro Martins insere suas personagens em um duplo espaço: na campanha, local de glorificação do gaúcho, e na cidade, apontando a falência de uma estrutura sócio-econômico-cultural. Isso acontece pelo processo de despovoamento da campanha provocado pela migração forçada, resultando no inchamento da cidade. A história do deslocamento da personagem é a história da crise do Rio Grande do Sul que passava por uma fase de transição. A sociedade vivia um processo de modernização, formava-se um proletariado urbano que disputava o poder, expandia-se a classe média e o modelo industrial estava sendo introduzido.

O tempo também é diferente. Não mais o passado de desafios e glórias, mas o presente com todas as agruras. Se no século anterior ainda havia possibilidade de enfrentar guerras e o trabalho era incentivado por ser o Sul um pólo importante na economia devido à pecuária, no século XX vive-se um tempo de incerteza, agitação social e empobrecimento.

Mas é em relação à personagem que reside o maior distanciamento. Até então, a personagem era reduplicada ao servir de reforço do mítico através do ideológico. Há uma intersecção entre ambos porque a ideologia habilmente estende as idéias da classe dominante para as demais classes, fazendo com que sejam assimiladas por todos. O ideológico tem necessidade do mítico como sustentação em qualquer cultura e época. Um e outro propõem um modelo de ação, determinam o que pensar, valorizar, sentir, fazer. A ideologia inclusive disfarça diferenças sociais. E é exatamente nesse repertório de atitudes que se encontra a base do cruzamento do mito e da ideologia.

Cyro Martins elege a mesma personagem usada pelos seus pares nas décadas anteriores - o gaúcho, o peão - só que despido de todas as glórias - um gaúcho decadente, vivendo numa sociedade também decadente. Ocorre agora o contraponto entre a campanha idealizada da estância, do galpão, da fartura, do cavalo, da distância e a crise dessa mesma estância, da subdivisão dos campos, da mestiçagem dos rebanhos e do despovoamento.

Em Sem rumo e Porteira fechada, o Autor centra sua temática na decadência do trabalhador rural, completamente inadaptado, oprimido, sem perspectiva. Chiru e João Guedes passam por todas as etapas da decadência moral e física. É um caminho descendente. O primeiro, sem identidade, sem destino, some num horizonte sem glória. O outro, depois de roubar e fugir, some na morte. O caminho sem rumo e as porteiras fechadas das estâncias simbolizam as mudanças sócio-econômicas de que são vítimas os trabalhadores mais humildes das fazendas. Diante desse quadro, só resta o êxodo para a cidade.

Mas a consciência que o Autor tem da situação social faz com que mostre o curso inexorável dos fatos. Em Estrada nova, há uma reversão, ele aponta agora para um rumo. Se no painel geral ainda emergem as personagens de uma classe marginalizada, através de Ricardo se restabelece a possibilidade de mudanças, de evolução, mesmo que ainda sejam apenas vislumbres de esperança.

O que foi realmente o gaúcho? Uma figura autêntica ou uma farsa? Qualquer que seja a resposta, o substrato real que sustentava o mito, qual seja, o gaúcho como produto de uma determinada circunstância histórica aliada a uma promoção ideológica, desapareceu. Destituído de todo o aparato mítico, no qual ele próprio acreditou como mecanismo compensatório, só lhe resta a morte. Pelo menos até que ele possa reverter de certo modo essa situação. Cyro Martins lhe dá essa possibilidade, uma estrada nova se abre no horizonte. A confiança do Autor em mudanças envolve alguns personagens que passam a ser agentes na renovação da sociedade.

Elizabeth Pires Rizzato
lecionou Literatura no Departamento de Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul e é Assessora de Educação a Distância da UNISC. Está entre pesquisadores acadêmicos pioneiros a estudar a obra de Cyro Martins, com a dissertação O gaúcho a pé - um processo de desmitificação. Porto Alegre, Movimento/FISC, 1985.


Links Relacionados:
- Veja textos referidos acima em ESTANTE DO AUTOR