Essa aventura... a velhice* | Imprimir |

Cyro Martins


O que mais impressiona nessa meia dúzia de fotografias de velhos num asilo, desde o primeiro vistaço, é o tédio da repetição das horas, iguais, espichadas, destilando morrinha, prostração, fastio. E daí, pra os velhinhos esses, pode ser que as horas não sejam preguiçosas, mas, muito pelo contrário, voem, num prenúncio assustador de morte próxima. No entanto, para quem contempla essas fotografias, elas aludem a um começo de eternidade, a eternidade do cotidiano gris, da aposentadoria, da imobilidade, do recolhimento cheio de bocejos. A agitação da vida ficou pra trás, se é que houve tal agitação. Mas decerto houve ilusões, o mínimo indispensável para não morrer logo ali, na primeira volta de estrada, ao deixar, forçado ou não, a casa paterna. E sem dúvidas, depois no caminho, houve náuseas e esperanças estranguladas. Bem, nem tudo seriam soçobros, poderia ter havido andanças temerárias e belos triunfos. O mundo é imenso. Pelos menos era. Nada, porém, pega tanto o coração do homem como a terra natal. Os exilados que o digam. E os há em tão grande número agora! Quando eu era guri de primeiras letras e soletrava histórias tristes de desterros, acreditava que eram contos de antigamente para entreter crianças irrequietas, até que dormissem. Algo do reino das fadas. No entanto, deixaram em mim, aqueles contos, uma poderosa mensagem de nostalgia, que amarraria para sempre, ó sugestões míticas!, ó Ulisses!, o meu impetuoso cavalinho subjetivo de guri ao gosto dos horizontes rasgados, ao inatingível das miragens. Por isso, vendo estas fotografias agora, sentindo tão de perto a realidade deste desfecho de vidas tristes, a realidade destes homens impossibilitados de pisar jamais novos continentes, de experimentar, em alto mar, a estranheza das constelações desconhecidas, por isso os vejo como sombras de gente, sumindo-se no acaso. E poderia não ser tão duro este final. Não precisaria pesar sobre as suas cabeças a fatalidade, como um castigo dos deuses.

O drama maior da velhice consiste na solidão. Já não falo da doença, que é uma intercorrência no processo geral da decadência bio-psico-social. Pois bem, a humanidade tem acumulado recursos fabulosos contra o mal do abandono nos últimos decênios: os livros, a imprensa, o cinema, o rádio, a televisão. Daí ser fundamental preservar a vista e os ouvidos, grandes defesas do velho contra o isolamento.


Aos adultos válidos, as crianças e os velhos estorvam uma barbaridade. Como as creches se parecem com os asilos! Não importa que umas estejam no começo da marcha que arranca para a vida e os outros na extremidade melancólica do declínio dos desamparados. Quanta promessa de ajuda! E não adianta a gente se comprometer acusando o mundo capitalista. A essência humana que domina é o rancor pelo fraco. Mas as creches e os asilos desempenham uma grande missão social: salvam a honra da civilização. Vejam: há soluções!


Porto Alegre, setembro de 1976

* Crônica originalmente publicada no jornal Versus. São Paulo, edição de outubro de 1976 (n°6), pelo jornalista Omar L. de Barros Filho

Conheça a história dessa crônica e veja as fotos que a inspiraram