O Hospital | Imprimir |

Marcelo D'Ávila *

A Bilu, diziam as amigas, havia tido a sorte de a irmã mais velha ter-lhe colocado este apelido. Também, o nome de batismo, em homenagem à avó paterna, não condizia com sua imagem de moça. Chamava-se Belarmina.Também a sorte sorriu-lhe quando decidiu ser voluntária da Cruz Vermelha na implantação do Hospital de Sangue de Quaraí, durante a revolução de vinte e três. Filha de um austero bolicheiro de beira de estrada, a família não tinha grandes posses, mas era, no dizer do pai, remediada. A mãe costurava pra fora como forma de complementar o orçamento doméstico. Até mesmo para não desagradar aos clientes, o bolicheiro mantinha-se à parte das refregas políticas daquele tempo, exigindo dos filhos o mesmo comportamento. As gurias, inclusive, tinham pouca ou nenhuma atividade social, ainda mais em época de guerra. Mas quando a revolução estourou de fato, a mãe juntou-se às filhas nas fileiras de enfermeiras da Cruz Vermelha. Era também uma forma de mudar a rotina de ajudar o pai no bolicho, a mãe nas costuras e aquele marasmo todo do dia-a-dia.

A força borgista na cidade era pequena e mal armada, apesar da posição estratégica da localidade, de modo que não houve maior resistência quando aos revolucionários da Divisão do Oeste , comandados pelo próprio Honório Lemes, marcharam em grande número com rumo a Quaraí. Alguns tiroteios isolados foram suficientes para forçar os republicanos a atravessar a fronteira buscando segurança no lado Oriental. Tarefa que foi dificultada pelas cheias de setembro, que fizeram transbordar o Rio Quaraí. Na tentativa de fuga, vários chimangos perderam a vida para a fúria das águas, entre eles o Capitão Galdino da Luz e o Tenente Juca Tavares. Pelo lado maragato, poucas baixas. Na troca de tiros, apenas três mortos e oito feridos, número baixo para as estatísticas daquelas refregas. Um dos feridos era Manoel Vergara, filho de um pequeno fazendeiro de Bagé, seguidor incondicional do Dr. Assis Brasil. Atingido no ombro por um disparo dos republicanos que já batiam em retirada, foi levado ao Hospital de Quaraí para que as bondosas almas da Cruz Vermelhas tratassem-lhe a ferida. Lá mesmo foi promovido ao posto de Capitão por sua bravura em combate, sendo o ponteiro da vanguarda de Honório, fato que lhe provocou o ferimento. Era um rapaz forte, fruto do trabalho braçal que fazia na propriedade paterna. O tipo físico logo chamou a atenção das enfermeiras voluntárias, que brigavam para ver quem seria a próxima a trocar o curativo. Mas Bilu era a preferida do paciente.

Então já és Capitão, assim tão jovem. Quanta honra! – dizia a moça, procurando chamar para si a atenção do enfermo, ignorando que já o fizera na primeira vez em que seus olhos se encontraram.

Pois é – respondeu o guerreiro, meio sem jeito – mas a moça sabe como é, na revolução qualquer índio chega até mesmo a Coronel. É só pelar a coruja de dois ou três chimangos e já te botam os galões nas pilchas. Além do mais, do lado rebelde funciona mais como incentivo, nem soldo a gente recebe...

Só que as divisas vão ter que esperar este ombro sarar para que possam brilhar sobre eles – disse a moça, corando sem perceber ao acariciar os ombros fortes do baleado.

As conversas estendiam-se por tardes inteiras e, não raras vezes, entravam noite adentro, sempre naquele ritmo de cordialidades e elogios, fazendo com que o relacionamento entre os dois passasse da esfera de enfermeira e paciente.

A coluna de Honório há muito já partira para o Jarau, perseguida pela força de Flores da Cunha, quando afinal o Capitão pôde ter alta, bastante melhorado de seu ferimento. Como forma de agradecimento à enfermeira que tão bem lhe cuidara, colocou-a na garupa do flete, levando-a consigo para a fazenda do pai para que, em Bagé, pudesse fazê-la sua esposa. Algum tempo depois, apesar dos protestos do avô materno, a gurizada corria lindo pelo terreiro, todos com o lencinho encarnado no pescoço, a brincar de revolução.

A mãe da personagem deste conto "costura pra fora como forma de complementar o orçamento doméstico". Marcelo D´Ávila também. A diferença, acredito, é que com isso ele não pretende  complementar seu orçamento doméstico. Este médico jovem de Santana do Livramento (a minha Macondo particular), com todos seus conhecimentos científicos, não conseguiu nenhum anti-vírus que combatesse esta comichão ou vírus de origem desconhecida que se chama literatura. O conto "O hospital", bem adequado para um médico - mas também como um bom cenário ficcional - pode estar nos revelando, atrás do seu jaleco profissional, o nascimento de um escritor. Em nome de minha Macondo particular, desta Livramento onde eu vi o mundo pela primeira vez, eu estou torcendo. Agora, julgue o leitor.

(Flávio Moreira da Costa)

*Letrista premiado de música gauchesca, cronista, membro da Academia Santanense de Letras , agraciado pela atuação na área médica, na qual é pós-graduando, Marcelo D´Ávila, em 2004, aos 35 anos, tem vários contos incluídos em antologias de nível nacional.