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 IVO BENDER - Escritores Gaúchos

ADEUS, “QUERIDÍSSIMO CANALHA” ! *

Léa Masina**

 

Nesta última segunda-feira, dia 25 de junho, o Brasil perdeu um dos seus grandes dramaturgos, com certeza o maior ainda vivo, cuja obra assemelha-se em importância a de Ariano Suassuna. Ivo Bender nos deixa aos 82 anos, mais de sessenta dedicados ao ensino de arte dramática e à criação de peças para teatro. Tive o privilégio de conviver com ele durante o longo período em que ambos trabalhamos no Instituto Estadual do Livro e sua importância em minha formação intelectual foi tão expressiva como a dos grandes mestres com os quais privei enquanto aluna e professora da UFRGS. Com Ivo Bender, aprendi a ler o teatro clássico e a refletir sobre as profundas questões humanas que a boa literatura atualiza. Pensando a vida como um grande palco, Ivo considerava o texto escrito como repertório essencial para a performance dramática. Atesta-o a qualidade literária dos seus textos, que podem ser lidos com prazer por qualquer leitor e encenados com sofisticação ou simplicidade.

 

Nos anos 70, quando nos conhecemos, Ivo Bender já havia publicado seus primeiros textos: As Cartas Marcadas ou Os Assassinos (1961) ; Queridíssimo Canalha ( 1971) e Quem Roubou meu Anabela? (1972). Investindo no viés crítico da insubordinação e da irreverência, essas peças teatrais inauguraram uma vertente nova na dramaturgia brasileira, por romper com a previsibilidade lógica e imergir no fantástico que, por essa época, revigorava-se na América do Sul. Escrevendo e publicando durante os anos da ditadura militar, sob o peso da censura, Ivo ancorou sua inquietude no amplo conhecimento da literatura clássica e da dramaturgia grega e shakesperiana. Com isso, criou em suas obras metáforas hábeis e personagens performáticos que habitavam suas tragédias, comédias e peças para crianças dissimulando seu alto poder de subversão.

 

Nesses primeiros anos no IEL, em que repartimos sala e projetos, nossa amizade solidificou-se. Sua extensa cultura universal, irreverente e anti-acadêmica serviu-me como estímulo para desenvolver o gosto pelas artes: teatro, pintura, cinema. Além dos livros que sugeria, Ivo me orientava com relação a filmes, diretores, atores e atrizes. Com ele, conheci Rainer Werner Fassbinder, com “Querelle” e “Outubro”, e Eisenstein, com “O encouraçado Potenkim”, além de filmes da fase expressionista e realista alemã, como “O Anjo Azul”, com Marlene Dietrich. Textos que transitavam entre solidão, degradação, desespero, elementos que subjazem à estética de Bender. Mas sua paixão foi sempre Shakespeare e o teatro grego.

 

 

Final dos anos 70, estudávamos e trabalhávamos muito, trocávamos leituras e confidências.

Quando Ivo escrevia textos para crianças, testava-os com meus filhos. Contrário a qualquer maniqueísmo ou didatismo, seu teatro infantil é ricamente poético e libertador. O lançamento de “O Macaco e a Velha”, no Teatro Leopoldina, foi um acontecimento marcante na cidade. Mais tarde surgiu o CD com as músicas da peça. E logo foi publicado o livro pela Editora Mercado Aberto. As letras das canções, poesia pura, também eram escritas por ele. E até hoje são lembradas junto à imagem de uma Estrelinha sensual e provocante, um dono de circo cruel, um macaco irreverente, a aranha com teias de prata e uma velhinha caseira, como eram as avós de São Leopoldo no tempo em que Ivo era criança. Sob a luz de suas palavras, ressurgia o quintal com o poço de água fresca, o chão varrido e a sopa de um só osso. Revitalizando na escrita o imaginário de sua infância, Ivo dava voz a personagens irreverentes e as crianças vibravam com as fábulas reinventadas.

 

Pioneiro, versátil e extremamente sensível, Ivo Bender possuía algumas fixações literárias interessantes. Uma delas, a paixão por demônios, vampiros e suas alegorias. Durante algum tempo, creio que teve o romance “Drácula”, de Bram Stoker, como um dos seus livros de cabeceira. Para ele, demônios, vampiros e bruxas são seres preciosos porque habitam os desvãos da nossa consciência. Outras personagens icônicas eram as atrizes louras sensuais, como Jean Harlow, cujos atores morriam durante as filmagens. Ivo gostava, também, de reler e revisitar os mitos gregos, o que fez em sua “Trilogia Perversa”, de 1988, com os mitos de Atreu e Tiestes, Ifigênia em Áulis e Electra. Trabalhando pelo viés intertextual, ele deslocava os episódios míticos para a colônia alemã, de sua origem, A releitura, em novo contexto, incide num viés crítico que, mesmo atentando a questões sociais, transcende o imediatismo e alcança a natureza humana.

 

Quando, nos anos 80, o Instituto Estadual do Livro foi praticamente desarticulado, Ivo Bender já assumira a direção do Teatro Renascença, no Centro Municipal de Cultura. A convite do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil,fui também trabalhar na estruturação do Setor do Livro, hoje Coordenação do Livro e da Literatura. E Ivo e eu continuamos em contato. Por essa época, ele publicou : “Marcos IV, 23”, uma releitura borgiana, “O boi dos chifres de ouro”, comédia pampeira, e “Mulheres Mix”, cujo prefácio escrevi. Esse texto, por sua riqueza e brilho, faz eco ao “Cabaré de Maria Elefante”, publicado antes, sendo os dois textos referencias da comédia burlesca em sua teatrologia. Em ambos, concentram-se a ironia, a verve satírica, o humor, a picardia através de personagens estereotipadas: atrizes louras decadentes, travestis sul-americanos, freiras e torturadores no “mix” fantástico de um brechó. Em nossos encontros, tive a honra de acompanhar o nascedouro desses textos, muitos dos quais li nos originais.

 

Assim como Shakespeare, Ivo Bender iniciou sua jornada profissional como ator e diretor. Depois, como professor de artes dramáticas na UFRGS. Mais tarde, quando retornamos ao Instituto Estadual do Livro, ele completou sua formação acadêmica com Mestrado e Doutorado, do que resultou a publicação do ensaio “Comédia e Riso – Uma Poética do Teatro”, publicado em 1996. E nunca parou de escrever e produzir seus textos, publicando-os ou não. Ele costumava ler fragmentos do que escrevia e contar minuciosamente seus enredos. Anos mais tarde, sentindo que a recepção aos textos dramáticos já não correspondia ao esperado, Ivo passou a escrever narrativas breves. Publicou seu primeiro livro, “Contos”, em 2010, pela L&PM. E em 2015, “Quebrantos e sortilégios”, pela Editora Dublinense. Em ambos, a matéria narrativa provém da cultura alemã. Além disso, ele dedicou grande parte do seu tempo ao trabalho de tradução. Apaixonado por Racine, traduziu “Fedra”, texto que li e reli sob sua orientação. Traduziu também Harold Pinter. Mas o trabalho que mais o apaixonou foi a tradução dos poemas de Emily Dickinson. Sua imersão nos textos de Dickinson foi tão absoluta que sonhava com ela e sentia sua presença. Certa vez confidenciou-me que seus sonhos eram reais, que ambos conversavam na casa da praia, em Arroio do Sal, para onde ele costumava ir durante o verão. Por isso, sua última peça teatral foi “Diálogos Espectrais”, em 2004, que gira em torno de Dickinson. Fizemos o pré-lançamento do texto em minha casa com uma leitura dramática. Débora Finocchiaro foi uma das atrizes que participou do evento.


Em 2017, Ivo Bender concluiu seu último livro de contos. Uma coletânea de contos diversos a ser publicada pela Editora Movimento. Trabalhamos juntos na revisão dos originais e, mais uma vez, Ivo pediu-me que escrevesse o prefácio para o novo livro. Alguns dos contos são fantásticos e espectrais, fazendo jus ao título poético do livro que ele me informou por telefone: “Rosa noturna”. Como em muitos dos textos anteriores, questões banais e cotidianas transformam-se em improváveis, insólitas aos olhos do leitores, e tornam-se possíveis na alquimia do texto.


Não posso encerrar este depoimento sem referir uma frase de Ivo Bender , muitas vezes repetida e que sempre me acompanha: haja o que houver, “nunca se pode perder a capacidade de indignação”. Quando completou oitenta anos, ele declarou em entrevista, que “chegar aos 80 anos em um país selvagem, arcaico e injusto como o Brasil é um ato heroico. (...) Sobreviver dentro dessa coisa insuportável é um tour de force”. Ele sobreviveu, sempre consciente e generoso. E sua arte há de contribuir para a reflexão e o sentimento. Cumpriu suas metas de realização pessoal e de elaboração estética. E ensinou que teatro se faz com textos de qualidade, cabendo aos atores internalizá-los e expressá-los sem adereços, com suas verdades expostas no palco, “vestidos de preto e de pés descalços”

 

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             * Caderno de Sábado, Correio do Povo.30 junho de 2018

* *Léa Masina – Ensaísta, Doutora em Literatura Comparada, Crítica Literária.

 

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