Daniela Langer | Imprimir |

Primo Lucas

                                                                                  Daniela Langer

Aconteceu em uma praia do litoral norte, em um estado da região sul, quando os edifícios ainda eram poucos e as crianças não voltavam para casa antes da meia-noite. Aconteceu em um fevereiro atípico. Sem chuvas, manhãs azuis e sorrisos dos veranistas ao comentarem na beira da praia, entre caipirinhas e picolés, que há anos não tinham férias assim, de mar tão verde – um mar de não fazer feio às praias do estado vizinho.


Nesse tempo, a diversão da gurizada estava em ir e vir pelo calçadão não muito extenso, percorrer as ruas – conheciam cada paralelepípedo – com as bicicletas de pneus coloridos e disputar as máquinas novas no fliperama. Um tempo quando os meninos e as meninas brincavam juntos, porque depois de atravessar um engarrafamento gigante não havia eles e elas. Pelo menos, não na idade quando os meninos tinham tantos pelos nas pernas quanto as meninas, e as meninas tinham tanto peito quanto os meninos. Marianna veraneava em uma casa térrea, dois quartos e um jardim onde a grama disputava espaço com a cadeira de praia da mãe e a piscina de plástico do irmão.


A casa ficava em uma rua com nome de pássaro, esquina com uma rua com nome de flor. E todo ano, pelo menos os anos que a memória de Marianna alcançava, seguiam uma rotina de prazeres inesgotáveis. E nem era feita de grandes coisas, a rotina. O prazer estava na liberdade fácil, no descompromissado almoço às duas da tarde, no total desinteresse dos pais com o que ela fazia dos seus dias. E não que fizesse muitas coisas. Andava de bicicleta, jogava bola com os vizinhos no terreno baldio, murchava no mar até os olhos cegarem de sal e sol.
Era uma sexta-feira, e devia ser a terceira sexta-feira do mês, uma sexta-feira de quase carnaval, de quase fim de férias. Maculando o fevereiro, uma garoa fina havia começado junto com a manhã. O vento nordeste soprava baixo, cortando tornozelos, e as crianças teriam que se contentar em espalhar as brincadeiras pelo pátio e rolar a bola de plástico no terreno ao lado da casa. Não haveria praia.

 
Uma vez, escreveram que os costumes são formas concretas de ritmo. Poderia-se supor que alterar o costume naquela manhã fosse o mesmo que desandar um compasso de parecença regular. Talvez por prever um nó na cadência, ou simplesmente porque gostava de reclamar, o pai de Marianna bufava no mesmo instante que abria uma lata de cerveja, um segundo após ela invadir a sala, rosto afogueado, roupa úmida da pouca chuva – estivera jogando bola com os meninos por toda a manhã.

 
Entrou em casa, atirou-se no sofá suspirando o cansaço e ouviu a mãe remendar que o pai deixasse de ser implicante, o rapaz era um anjo, nunca os visitava, que mal podia haver em um único fim de semana? E, além do mais, para ele não faria a menor diferença, porque não era ela que limpava, cozinhava, passava e ainda tinha que ir ao supermercado comprar cerveja? Faça-me o favor, homem.

 
Marianna ouvia a novidade com a sensação de pés pousando sobre formigueiro. O primo Lucas ficaria o fim de semana. Pegaria um ônibus na capital, onde estava passando uns dias com a mãe, e chegaria à noite. Morava desde pequeno com o pai no Rio de Janeiro. Desde a época em que a tia de Marianna resolvera voltar sozinha para a cidade natal. Lembrava do primo com os olhos da memória dos seus onze anos. Ele era um tanto mais velho e um tanto mais velho significava quase duas vezes a sua existência. Era, também, maior que todos os outros primos, que eram todos menores que ela. Não havia crescido com Lucas, tinha visto o primo raríssimas vezes, e a última havia sido em um Natal. Um dezembro antes do último dezembro, tinham feito uma festa grande na casa da avó, e o primo estivera lá. Indescritível a sensação de ouvi-lo falar, testemunhando que da sua boca saía um jeito de dizer as coisas diferente do jeito que todos os outros diziam. Ria muito e, no sorriso, mostrava dentes que brilhavam no contraste da pele bronzeada, do mesmo tom das fitas que decoravam o pinheiro. Mexia a franja, teimosa a lhe cair sobre os olhos, como se fosse o tão falado milagre de Natal. Era uma criança e encantou-se com o primo – apenas na primeira hora. Na segunda, quando chamaram a piazada para abrir os presentes, deixou-se seduzir pelos aros lustrosos e os pneus vermelhos da bicicleta nova.


Arrependia-se. Por não ter dado mais atenção ao primo? Ou não ter exigido dele mais atenção? Enquanto a mãe comentava sobre os horários e que o Lucas dormiria na sala, no sofá de armar, Marianna tentava adivinhar, olhar parado nas conchinhas que decoravam um cinzeiro sobre a mesa, o porquê daquelas formigas imaginárias, mas tão insistentes, em seus pés.

 
Almoçou pouco, escolhendo os grãos de arroz. A mãe perguntou se estava tudo bem, Marianna respondeu que sim, tinha um pouco de dor de cabeça. Um dos meninos havia lhe acertado uma bolada bem na testa, ainda estava ardendo. O irmão riu. Não enche o saco, guri, resmungou olhando firme para a jarra de ki-suco. O pai pigarreou, cruzou os talheres. Tu não tem nada que ficar jogando bola com esses moleques, já é uma mocinha. Olhar cravado no líquido amarelo, ouviu o barulho da cadeira da mãe, os pratos sendo recolhidos. O pai limpou os lábios com as costas da mão; mesmo com os olhos baixos, podia ver o movimento do braço. Ajuda tua mãe com a cozinha; o arrastar da outra cadeira foi tão rápido quanto a quentura que lhe assomou às orelhas. Como se estivesse pegando fogo, misturou a vontade de dizer ao pai um desaforo com o resto de comida que havia deixado no prato.


Não falou palavra enquanto sentia a água envolvendo-lhe as mãos, espuma do detergente, esponja macia. As orelhas ainda ardiam em uma febre estranha. Gostava de brincar com os guris, havia brincado a vida toda. Mas o comentário do pai parecia ter se misturado com as formigas meio esquecidas, porém atentas o suficiente para despertarem ao som da palavra “mocinha”. E, no meio disso tudo, daquele formigamento nos pés, dos lóbulos escaldando, da água que levava embora os restos dos restos do almoço, estava o primo Lucas. O sorriso do primo, ele vai chegar mais ou menos umas onze horas, disse a mãe, os dentes brancos, os olhos tão claros, tão diferentes de toda a sua família de olhos escuros.

 
Não prestava atenção às palavras, só ouvia o sotaque carregado como dos atores que via pela televisão. E, como se aquela fosse a primeira vez, viu refletidos, no copo que enxaguava, os braços moldados pela camisa de física, os músculos roliços, o antebraço de pelos dourados. Era todo dourado, isso sim ela lembrava.

 
Secou as mãos no pano de prato e disse que iria dar uma volta de bici. Não vai longe, filha. Olha a chuva que está armando. Sorriu, deu um beijo na bochecha da mãe, que, segurando seu rosto, retribuiu-lhe o carinho, neném amado da mãe. Baixou os olhos, saiu prendendo os cabelos em um rabo de cavalo. Subiu na bicicleta e contornou a casa em direção à praia. Pedalava com força, colocando em cada troca de pés a confusão: era mocinha ou era bebê? Essa agora? Essa ânsia toda porque um primo que mal conhecia chegaria logo mais? Freou no calçadão. Um ou dois pescadores, alguns surfistas se aventuravam no mar que, mesmo com a pouca chuva, parecia ter se rebelado. Parou perto das dunas – e não eram propriamente dunas, só um amontoado de areia que a prefeitura recolhia toda noite do passeio. Sentou próximo a um lugar onde nascia uma vegetação rasteira; sentiu a areia fina abraçar as canelas.

 
Perdeu-se, olhos feito bolitas, no mar, como se olhar para aquela quantidade de água aumentasse ainda mais a sensação de coisa brotando dentro dela. Porque era assim que sentia, como se lá dentro, um pouco abaixo do estômago, uma semente revolvia em uma ânsia pastosa. Mexia, não tumultuada como a sensação de quando andava de montanha-russa ou marcava um gol. Como se não houvesse a menor pressa, mas, ao mesmo tempo, a vontade de ser caule, de ser folha, de ser fruto fizesse a semente rolar de um lado para o outro.

 
Úmida, a tal sensação, e morna como os raios de sol que tentavam escapar entre as nuvens. Olhando para essas imensidões que passeavam sobre a outra imensidão, o mar – que, a essa altura, já ganhava a matiz turva –, Marianna sentiu um estalo. Seria bom, mas um bom diferente dos outros bons – e, por isso, esquisito – ter por perto o primo Lucas.


O sol cansou de burlar a barreira das nuvens e o dia esqueceu de ser dia, deixando a lua brincar tímida no céu. O vento soprou mais forte, empurrando uma a uma as tormentas. Depois da janta, havia um céu de brigadeiro, disse a mãe ao esfregar as mãos. Marianna olhou para cima, pescoço estirado, cabeça quase paralela ao chão. Encontrou as Três Marias, quase se perdeu, mas achou o caminho para o Cruzeiro do Sul. O pai apontou para a cruz e repetiu a eterna explanação sobre a constelação e sua valorosa contribuição para os navegadores de um passado remoto. Enquanto o caçula interrompia a aula para perguntar se naquela época os aventureiros usavam pistolas, Marianna pensou que se o primo Lucas já estivesse na estrada, poderia, como ela, estar olhando para o céu. Em um repente, sentiu que as formigas voltavam aos seus pés. Imaginou os imensos olhos verdes pousando na menor de todas as estrelas, aquela que não estava em nenhuma ponta da cruz. Nesse momento, acalentou um estremecimento e sorriu ao supor que poderia, agora, o olhar do primo estar cruzando com o seu.

 
Um pouco mais tarde, as amigas vieram lhe convidar para ir até o centrinho comer crepe. Não quis, disse que tinha jantado demais, ficaria para amanhã. As gurias estranharam, Marianna era sempre quem encabeçava a turma. Deitou na rede, embarcou na modorra pelo balanço fugidio.
Entre as mãos, um exemplar da Coleção Vaga-Lume. Fingia ler para que a mãe não viesse lhe perguntar que tamanho acabrunhamento era aquele. O livro contava uma história policial: três amigos – uma moça e dois rapazes – se propunham a investigar um assassinato. Entre aventuras, imaginava no lugar do personagem mais bonito o primo Lucas, a franja teimosa sobre os olhos, o sorriso fácil oferecido a ela que, no lugar da moça, ajudava-o a resolver o mistério.

 
Demorou a acostumar com o escuro que lhe pesava os olhos. Na terceira piscadela, viu, na cama ao lado, o irmão dormir, braços estirados. Sentou e notou a camisola de algodão. A casa dormitava em um silêncio satisfeito, embalada pelo ronco do mar. Tentou buscar o tempo para saber quando tinha sido pega pelo sono. Sentada com as pernas para fora da cama, arrepiou ao piso frio. O despertar algente trouxe à lembrança a rede, a noite morna e o primo Lucas, que a essa altura já devia estar cansado de estar ali. Será que ele tinha chegado antes de a terem levado para cama? Sentiu nas orelhas a mesma quentura de quando o pai lhe chamava a atenção. As canelas finas amorteciam de vergonha ao imaginar o primo chegando e ela deitada na rede, feito criancinha. Acostumada com a pouca luz, venceu o curto espaço até a porta, respiração em suspenso.

 
O quarto dos filhos ficava no meio do corredor, em frente ao banheiro. À esquerda, o quarto dos pais. Seguiu para direita, a lua iluminava a sala de janelas amplas. Marianna, concentrada, respirou o mais devagar que sua excitação lhe permitia para, quem sabe, levitar sobre a cerâmica – e assim nem mesmo as paredes poderiam dizer que ali estivera.

 
Na sala, só a cabeça curiosa atravessou o batente da porta. Estava no sofá de armar, bem como a mãe dissera que deveria ser. E, nesse segundo, pensou que realmente as mães têm razão sobre todas as coisas do mundo. O primo Lucas dormia descoberto, de bruços, o corpo atravessado no leito. Vestia apenas um calção, e a luz que entrava pela janela cobria-lhe com uma camada fina. O primo Lucas totalmente prateado.

 
Percorreu com os olhos, lábios entreabertos, as pernas fortes de pelos abundantes, que, nas canelas, encrespavam. As costas eram lisas, largas como as dos competidores de natação que encontrava sempre no clube, às terças e quintas-feiras. Mas eram de outra cor, a cor de nenhum outro. O prata era apenas película para o dourado que ali Marianna sabia existir.

 
Derramava-se como mel no sofá incômodo, dormindo em silêncio, como um milagre de verão. Marianna não via o rosto, virado para o outro lado. À mostra, a cabeleira densa, quase aos ombros. E o ombro não era mais ombro, ou carne, ou articulação. Era tela para a figura que o contornava. Gravado nos músculos em repouso, um dragão serpenteava, terminando em chamas no cotovelo.

 
Embevecida, pôs-se a voltar ao quarto de costas, como para guardar cada quadro, seus olhos piscando como um diafragma de câmera fotográfica. Temerosa, sabia que, se alguém acordasse, o vexame de estar parada como uma songamonga na frente do primo poderia lhe custar gerações de piadas.

 
Por sorte, não precisaria falar antes do amanhecer. Adivinhara-se muda, como se a mudez fosse um outro sentido, instalado às pressas. E na urgência, no sentir esquisito da língua e a boca e o sons não lhe pertencerem, agarrava-se à parvoíce. Mas não dessas que balançam os braços, loucura de chamar atenção. Somente estupefata, pois sabia – e um saber tão antigo que lhe tinha sido sempre natural – que já tinha visto muitos rapazes de calção. Porém, em nenhum momento, tinha sentido aquele desgaste, a semente que inflava e girava, círculos mornos abaixo do estômago. E se, durante a tarde, o movimento era quase sonolento, agora era como se o passeio breve até a sala lhe tivesse servido de adubo.

 
E revirava Marianna por dentro. Como se estalasse, o caule querendo ser caule, a folha querendo ser folha, o fruto querendo ser fruto. Tudo muito misturado ao formigamento. Agora, às formigas não bastavam somente os pés. Subiam pelas canelas, a cintura sutil, os braços magros. E tudo misturava, como se nela houvesse o plantio e, no plantio, o formigueiro.

 
E agora esse arado, essa mão, essa mão que era dourada e que lhe remexia, misturava, a semente e as formigas, as formigas e os ombros dourados do primo Lucas, os ombros dourados e as mãos fortes a ensinando a pegar jacaré na beira da praia, a levando para tomar sorvete, as mãos fortes segurando na sua mão de unhas roídas – e, súbito, sentiu vontade de parar de roê-las e quem sabe até passar a misturinha que a mãe carregava na bolsa –, o sorriso do primo Lucas ao ver que suas unhas estavam pintadas e por isso não eram mais unhas de menininha, e por isso ele nem teria vergonha de acompanhá-la nos passeios de bicicletas, e-nas-tardes-de-ficar-sentada-para-ver-o-mar.

 
Foram os raios de sol que lhe acordaram. Feixes de luz entravam pelas frestas da persiana, e os grãos de poeira formavam uma pequena constelação. Marianna ficou olhando para as partículas pequeninas feito estrelas rebeldes, indecisas sobre o lugar que deveriam ocupar no espaço. As vozes vinham da sala. Identificou o irmão, a rotina de passar o protetor seguia entre protestos. Mais ao fundo, a voz grossa do pai dizendo que prepararia o chimarrão. E de estranho, ninguém.
Trocou de roupa, colocou o biquíni novo, sutiã um pouco incômodo. Pequeno, não tinha muita liberdade para levantar e abaixar os braços com descuido e, por isso, Marianna o havia sempre dispensado. Arrumou os laços da tanga com o esmero de quem fecha um presente. Vestiu o shortinho cor de rosa, combinando com os tamancos de borracha. No banheiro, escovou os dentes devagar, para não fazer barulho. Precisava ouvir o que se passava na sala, a porta da geladeira abrindo, a mãe dizendo para o irmão não esquecer a camiseta. Seria o primo Lucas? Sentiu um aperto, secou os lábios na toalha, fez o rabo de cavalo usando as marias-chicas de sair.

 
No caminho para a sala, imaginou o primo sentado, sorrindo para a tevê. Deveria dar bom dia para todos ou primeiro para ele? Deveria cumprimentá-lo com dois beijinhos ou abraço? Será que ele iria levantar para cumprimentá-la? Os braços fortes do primo Lucas lhe apertando a cintura, erguendo-a um pouquinho do chão, que gatinha linda!

 
Na sala, a rotina. O irmão trocava de canais, reclamando que só tinha “chuvico”. O pai cevava o mate, a água descia devagar, escurecendo a erva pura-folha. A mãe, arrumando a bolsa grande de palha, sorriu-lhe bom dia. Preguiçosa, teu nescau está pronto. Até o Lucas já foi
surfar. E riu. E ela riu também. Mas riu sem rir, porque era um riso por fora, o riso de todo-santo-dia. Por dentro, aquele vazio. Era mesmo uma songamonga, dormir até aquela hora, imagina!

 
Na praia, bezuntou-se de rayto-del-sol. Queria também dourar e, por isso, estirou-se na esteira de palha. A gurizada veio perguntar se ela não iria para a água, que tinha um pouco de repuxo, mas estava tri boa pra pegar jacaré. Não quis. Ficou de bruços, o queixo apoiado nas mãos, os olhos apoiados nas ondas, o mar que agora já estava, como costumavam dizer, um chocolatão de tão marrom. Só conseguia ver, na arrebentação, as cabeças dos surfistas no movimento de gangorra. A massa de água espessa, fortaleza, caprichosa. As ondas estouravam desajeitadas, esparramando um espumeiro amarelo. O pai e o vizinho terminaram de montar os guarda-sóis, as mulheres já estavam escarrapachadas que nem lagarto no deserto, comentou um deles. A gurizada entrava e saía da água, as planondas de isopor formando espelhos contra o sol.

 
Viu o primo deixar o mar. O peito largo, a água escorrendo como os pingos de chuva que ela gostava de ver escorrer pelo vidro da janela. Segurava a prancha colorida, balançava os cabelos molhados. As coxas peludas eram açoitadas pelas ondas baixas, o dragão luzia. Dourado.
Está dormindo, filha? Marianna sentou em um pulo. Estava? Olhou para o mar, ninguém. Sonho ou já tinha começado a delirar com o calor? A mãe perguntou se ela queria picolé ou milho-verde. Picolé, eu acho. A mãe riu, tu está esquisita, guria.
Então, aconteceu. Porque as coisas acontecem nesses de-repentes que ninguém consegue dar conta, ou parar o tempo para decidir se primeiro se ouviu o grito ou se primeiro foram os salva-vidas que correram mar adentro. De certeza, foi que da calma quase prosaica da manhã de sábado a praia se transformou em um rebuliço. As pessoas esticavam o pescoço, gritavam. O pai e o vizinho correram até o mar, alguém lembrou das crianças e as mães iniciaram aquela sucessão interminável de gabrielas, marcelos, guilhermes. Um afogamento, ouviu-se o grito atrasado. As mulheres, apavoradas, colocavam as crianças debaixo dos guarda-sóis, contando e recontando a manada inquieta.

 
Marianna meteu-se no meio dos adultos, as pernas molhadas a molhando. A areia fervia, machucando-lhe as solas dos pés. Alguns abriam espaço para o cortejo que vinha do mar. E assim como, um a um, todos se afastavam, alguma coisa dentro dela partia. E sentia, logo abaixo do estômago, um peso e um revirar de ideias – inevitável pensar se era assim mesmo, se era natural as ideias virem do estômago –, como se houvessem colocado terra demais, adubo demais, molhado demais. Tudo acontecendo à sua frente, um segundo depois do outro, um passo depois do outro, como acontecem todas as coisas banais. Como a vida costuma se desenrolar, o verão deixava de ser verão, e a semente que descobrira acalentar tivesse brotado de uma só vez, mas a árvore estava seca e, em um único galho, balançava uma fruta podre.
Da água tiraram o corpo moreno, os cabelos gruda dos à testa, dourando a fronte. As pernas peludas jaziam pesadas, canoas encalhadas na areia fina. Os pés estirados, dedos retorcidos qual tivessem sido desligados durante uma cãibra. Galhos ao ar, veias como cânulas, hidrográficas veias que nada irrigavam. Pés imóveis, despercebidos na condição de ao corpo pertencer. O corpo largado.
Depois do resgate, simplesmente, como um pedaço sem serventia, largado.
E de nada sabiam aqueles todos que, em círculo, circulavam. Amontoados, zumbindo como moscas, murmurando, fingindo lágrimas, açoitando o destino com frases soltas. Olhavam absortos, magnetizados pelo corpo. Porque era exatamente isso: apenas um corpo; na configuração da espécie humana, o conjunto formado por cabeça, tronco e membros. No entanto, não sabiam que, junto a ele, junto à vida que não mais existia, havia um tempo. E o tempo fazia do corpo, ainda quente pelo sol que lhe queimava, também derivação, que, entre todos os que ignoravam, assumia o sentido figurado de algo que incorpora, abrange ou propicia concreção a certa coisa. E Marianna, em um saber que nem tinha idade para exercitar, estava absorta. E todas as coisas, naquele segundo, tomaram a forma das coisas que são deixadas para trás e que nunca mais poderão ser.
Não existia mais pai, nem mãe, nem irmão protegido da morte pelo guarda-sol – porque dizem os adultos que morte não é coisa para quem ainda não conseguiu entender nem o que é vida. E também não respirava mais a folia próxima do carnaval, os primeiros dias de escola, o ano que por bem ou por mal haveria de vingar. Agora, em sua cabeça, só o sol que dava um passo largo, cruzando a linha invisível que separa a manhã da tarde. E ao virar o tempo do relógio, virava em Marianna o tempo de todo o sempre.
O primo Lucas. Os pés de Marianna tão próximos do peito largo, liso, lambido de sal; onde o sol parecia pontilhar estrelas, vaga-lumes luzindo até a tatuagem do ombro. O dragão envolvia o músculo teso, volteando pela axila, a tinta-chama-vermelha saindo de onde os tufos de pelos escuros gotilhavam água feito lágrima de despedida. O dragão descendo pelo braço, escorrendo. O dragão com a cauda em mil voltas, milhares de voltas a cauda que, em linhas indivisíveis, virava corpo, que, sem nenhuma fronteira, transmutava-se em chamas. As chamas duras, rococós, um enfeite nulo. As chamas escorrendo pelo braço, fugindo pelo cotovelo – vomitando o verão.

 

(Conto que integra o livro No inferno é sempre assim e outras histórias longe do céu, editora Dublinense, 2011.)

 

Sobre a Autora

A literatura surge de uma pulsão, este inconformismo que o escritor carrega contra a realidade circundante. No entanto, a pulsão não basta para produzir boa literatura. É necessário um cuidadoso trabalho de escolha de palavras, que, como diamantes, serão lapidadas a ponto de darem origem a uma obra cuja beleza e cujo valor poderão ser identificados até mesmo pelo mais descuidado dos leitores.
Essa tarefa resulta no risco de criar uma obra artificial: palavras escolhidas de forma quase simplória, descuidada, compondo um texto sem conteúdo. Não é o que ocorre com a gaúcha Daniela Langer em seu livro de contos de estreia – No inferno é sempre assim e outras histórias longe do céu.
Daniela alia o talento na narração com a meticulosa escolha das palavras, compondo uma obra, ao mesmo tempo bela, e densa. O livro é dividido em duas partes: histórias longe do céu e no inferno é sempre assim. Ainda que possa parecer, numa primeira leitura, que não há unidade temática entre tais divisões, essa impressão se dilui à medida que o leitor é tragado pelos infernos pessoais e assustadoramente cotidianos das personagens.
Na primeira parte, os contos tendem a uma visão etérea, quase fluida. As personagens não são nominadas, e as ações se passam em planos mais internos do que externos. Eventos rápidos, corriqueiros, são eternizados – como em às moscas; enquanto que situações prolongadas de vida são quase que sumarizadas – como em morrente.
Na segunda parte do livro, a autora mantém-se preocupada com situações corriqueiras, em que o imponderável acaba se inserindo e distorcendo a rotina. No entanto, as personagens são mais palpáveis, mais concretas. No ótimo primo lucas, por exemplo, podemos acompanhar a angústia quase juvenil da menina Marianna com a presença do primo, um primo que funciona mais como um objeto de desejo e adoração do que como uma personagem da trama.
Ao longo de toda a obra – curta em número de páginas, porém extensa em significados –, Daniela se debruça sobre pequenos infernos, quase como que a mostrar a nós, leitores, que a tragédia está sempre à espreita, e que o caminho para o inferno está cheio de intenções humanas, sejam elas boas ou ruins. 

                                                         
                                            Flávio Torres

     - autor de Monstros fora do armário. Não Editora. Porto Alegre. 2012. flavioartorres@terra.com.br