O que explica a paixão dos médicos pela literatura | Imprimir |

Léa Masina*

É comum haver médicos, por eleição, que, ao mesmo tempo, são escritores vocacionados. Para lembrar alguns exemplos clássicos: Anton Tchecov, Arthur Schnitzler, Guimarães Rosa e Pedro Nava. Há também os que estudaram medicina e não exerceram o ofício, logo optando pelos rumos da literatura, caso mais notável o de Somerset Maugham.  Entre nós, no Rio Grande do Sul, os exemplos são muitos e se vem multiplicando. Cyro Martins é um dos mais lembrados. Mas, o que pretendo, com isso, assinalar, é a relação muito próxima entre a necessidade imperiosa de escrever ficção – prosa ou poesia – e a prática da Medicina.

Com base em depoimentos pessoais e na prática crítica que exerço junto a escritores em processo de qualificação de textos, observo que, tanto médicos  iniciantes, com sua formação incompleta, quanto os mais realizados e experientes buscam a literatura como forma catártica de elaborar as situações limites com que se defrontam na profissão. Apesar dos horários reduzidos, os médicos procuram, ainda assim, um espaço onde possam sublimar o horror e a maravilha contida no corpo e na natureza humana. Lidar, no dia a dia, com as doenças que ameaçam e desqualificam a vida, lidar com a morte em seus estágios mais lentos, dolorosos, sempre inexoráveis; lidar com a loucura, o sofrimento sem resposta; amparar o milagre do nascimento, onde a força da vida contrasta com o desvalimento e a fragilidade do homem suscitam sentimentos com os quais não é fácil conviver. E o médico encontra, diante de si, algumas possibilidades: uns optam pela busca de uma frieza defensiva, que salva e não pensa, que cura e não cogita. Outros, entregam o corpo e a alma às práticas médicas, vivendo a medicina como opção prioritária, não raro excludente da vida familiar e pessoal. Há, porém, os que conseguem encontrar na prática literária uma razão a mais para viver e produzir, o que lhes permite inserir em seus textos questões vitais. Porque a criação artística, há que repetir, nutre-se da vida e da morte, eis que são os limites do humano.  E a literatura existe para apontar ao homem a sua irrenunciável humanidade.

Porém, para justificar a atração que a literatura exerce sobre os médicos, não basta referir a necessária catarse do impacto de viver constantemente situações-limite. Há mais do que isso. É possível que a tendência a amparar o outro, o desejo de ajudar alguém a nascer, a morrer ou a viver melhor seja o que conduz também a pena do escritor. Quem escreve o faz por generosidade, movido pelo impulso de dividir e multiplicar, com os semelhantes, visões de mundo, modos de viver, sofrer, ser (ou não) feliz, e morrer. O processo de identificação do leitor-paciente com o texto que lê completa esse movimento que, no meu entender, explica a proximidade entre medicina e literatura.

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*Léa Masina: Crítica Literária, Doutora em Literatura, Professora Associada da UFRGS