O último carnaval | Imprimir |

Roberto Bittencourt Martins

 

Faz muito tempo. Eu era médico residente na Clínica de Psiquiatria da Universidade e deveria ser o plantonista do hospital na terça-feira de carnaval. Lamentando o azar, segunda-feira lá estava eu, na Sala do Médico, recebendo o plantão das mãos de meu antecessor. O colega estava apressado para sair. Muito rapidamente me informou que havia internado à tarde um paciente na Enfermaria, um rapaz, jovem universitário, que chegara muito agitado, com alucinações e delírio. Mas não haveria problema, já medicara o doente com um bom coquetel tranqüilizante. Despediu-se, aliviado e feliz, e partiu para sua noitada. Eu vesti meu jaleco, espiei o Livro de Plantão e entrei na Enfermaria para fazer a revisão da noite.
O enfermeiro logo me levou até o leito do paciente novo. Ele já estava deitado, mas quando me apresentei, tentou reerguer-se e, reclinado, esforçou-se para falar. Seu olhar tinha o brilho agudo de quem necessita comunicar uma verdade fundamental.
- Vai acontecer numa terça-feira gorda... pode ser amanhã...Eu tive a revelação...
Perguntei-lhe o que iria acontecer, qual era essa revelação. Ele foi respondendo com dificuldade cada vez maior. Pensei que o remédio prescrito pelo colega tinha sido mesmo forte.
- Eu tive a revelação... Eles me explicaram tudo... Quem somos, onde estamos, para onde a gente vai ...
Uma voz debochada cortou sua fala pastosa. Era outro interno, mais antigo, que se juntara a nós.
- Essa revelação, eu já sei qual é. Tu estás maluco. Aqui é um hospício. E o que vai te acontecer é te encherem de injeções pra deixar de pensar besteira.
Pedi que não nos perturbasse e o enfermeiro o afastou. Na cama, batalhando para não adormecer, o rapaz ainda tentava transmitir sua mensagem:
- Não estou conseguindo mais falar... Vou apagar... Mas está tudo escrito aqui...
Retirou uns papéis de dentro dos lençóis, entregou-os a mim e fechou os olhos. Guardei as folhas em meu bolso e prossegui em minha visitação. Voltei para o alojamento, lamentei de novo o carnaval perdido, li um pedaço de um livro novo, Do mito à verdade científica, e me entretive com a história de Esculápio, deus grego da medicina, ressuscitando os mortos com o sangue da Medusa e sendo devidamente fulminado pelos raios de Júpiter. Não houve nenhum chamado, o plantão corria calmo, dormi a noite inteira. Mas, quando voltei à Enfermaria, de manhãzinha, notei um reboliço. Fui informado de que o paciente novo havia desaparecido. O enfermeiro, de olhos baixos, visivelmente envergonhado, não encontrava explicação para o que havia acontecido. Procuramos pelo paciente em todos os lugares. No pátio, no jardim lá fora, em outros pavilhões. Embaixo das camas, em cantos, telhados e tetos. Nem sombra.
Bem, - pensei – paciência; apesar da medicação poderosa, ele deve ter fugido. Mas tínhamos seu nome, seu endereço e as assistentes sociais localizariam os parentes ou amigos que o haviam trazido.
O sumiço do paciente, é claro, me custou reprimendas e advertências. Depois, pior, o endereço na ficha de internação era falso, uma rua chamada Ipacaraí, nome que só existia como um lago no Paraguai e sua guarânia. E, mesmo nos lugares de nome parecido, ninguém conhecia o rapaz nem quem o levara ao hospital. Nossa profissão é assim, cheia de coisas inexplicáveis. O caso foi sendo esquecido. A idéia de minha possível falha no plantão também foi desbotando. Somente depois das férias fui vestir o jaleco que voltara da lavanderia. Quando enfiei a mão no bolso, encontrei um maço de papéis. No princípio, nem fiz idéia de que papelada seria aquela. E só depois de avançar na leitura da escrita borrada das páginas amarrotadas é que me dei conta. Claro, era o tal paciente. Como eu não havia lembrado? Sua mensagem, a revelação... Quem sabe estariam ali, naquelas letras aguadas, seu verdadeiro endereço, seu nome real, alguma coisa capaz de explicar seu sumiço. Enquanto lia, também ia observando e recordando: o rapaz era universitário, talvez estudante de letras, o texto era caprichado, embora um pouco empolado. Ao chegar à última linha, me indaguei: o que significava aquilo? Ilusões baseadas num mundo irreal? Percepções transtornadas organizando o enredo de um delírio? Ou o rapaz havia tido a antevisão de um entendimento que ninguém quisera ter? Difícil sair da dúvida sem reler as páginas que ele teria escrito. Aqui vão:

 

"Já fui avisado. Vai acontecer numa terça-feira gorda. Luzes, cores, calor, bebida, corpos quase nus e o ritmo dos tamborins estarão eletrizando a cidade reunida para a festa do último carnaval. Pela avenida, debaixo do clarão dos refletores, os passistas avançarão na evolução de suas escolas. Das arquibancadas, na multidão, estaremos acompanhando o desfile, todos repetindo, animados, o estribilho dos sambas. Desde a entrada de seu abre-alas, uma agremiação arrancará os maiores aplausos. Seu enredo celebrará a Descoberta, o encontro dos nativos com os navegantes vindos da Europa. Atrás do puxador do samba, sobre um dos carros alegóricos, Cabral estará fazendo rezar novamente a Primeira Missa no Brasil. A seu lado, Caminha fingirá que escreve e frei Henrique simulará uma reza. Com suas barbas postiças, o Almirante desfilará entoando, como todos, o refrão pontuado pela bateria dos ritmistas. Agogôs, ganzás, cuícas, pandeiros estarão compondo o batuque que embriagará os ouvidos. Gingando, com os seios à mostra, mulheres de todas as cores representarão a inocência despreocupada das índias. E homens de todos os tons de pele, com a virilha coberta por adornos emplumados, tentarão reproduzir as danças indígenas masculinas. Logo a seguir, noutro carro, bem mais luxuoso, um Montezuma imponente estará recebendo em sua corte, como a deuses esperados, os espanhóis de Cortez. Extasiados pelo esplendor da alegoria, nenhum de nós na multidão conseguirá pensar na história do último imperador asteca e no triste destino de seu povo. E nem recordará que aqueles valentes guerreiros da América do Norte costumavam arrancar, a sangue frio, o coração de jovens das tribos que submetiam, selecionados por beleza, pureza e vigor. Talvez então minha mente, sempre fora do compasso, será tomada pelas visões do reflexo brilhante das espadas européias massacrando aqueles índios - e da pompa dos rituais em que os astecas ofereciam seus prisioneiros para serem devorados pelos deuses de Tenochtitlán. Nem terei atentado bem para esse meu pensamento quando a chegada inesperada de uma escola desconhecida irá surpreender a todos. Ninguém saberá dizer como ela terá surgido, até que um dos locutores do espetáculo forneça uma explicação: o bloco é composto por turistas estrangeiros, vindos de um lugar distante para prestigiar nossa grande festa.
Eles invadirão a avenida, iluminados e resplandecentes. Envoltos por uma túnica roxa, suas cabeças estarão cobertas por um capacete prateado que lhes cobrirá cabelos, nariz e olhos. Mas, de suas bocas, irromperão as vozes de um coral emocionante, tecendo uma ágil melodia que, apesar de ignorada, parecerá estranhamente familiar. Em seguida, como num passe de mágica, grande asas brancas se alçarão sobre suas costas. No alto-falante, em tom alterado, o apresentador enunciará um nome para os estranhos: "Bloco dos Anjos". E todos estaremos pasmos, encantados na contemplação da mais absoluta beleza, que nos inundará como um rio de cristal. Mas, quando estivermos explodindo numa aclamação unânime, um súbito silencio rasgará a noite. Depois, ao som forte de trombetas, os componentes do bloco irão erguer-se do solo com um pequeno esvoaçar de suas asas abertas. E o povo redobrará o aplauso, todos querendo descobrir a natureza do motor oculto que lhes permite o prodígio. E será nesse momento que uma voz tonitruante proclamará o Dia do Juízo Final e ouviremos o estrondo de tambores e clarins acompanhando o refrão que trará a revelação: são todos Anjos Celestiais e vieram para transportar-nos até nossa morada nos Céus.
Ao escutá-la, parte da multidão se expandirá numa gigantesca ovação à originalidade do enredo. Outros, porém, serão tomados por um temor absurdo, como se achassem realidade numa simples alegoria carnavalesca. Mas os figurantes alados continuarão a voejar sua dança sobre o povo. E, ante o espetáculo dos homens-pássaros planando placidamente pelos ares, a multidão será tomada por um sentimento oceânico de comunhão universal. Assombrado, o povo inteiro perceberá então a força invencível de uma gravidade às avessas que estará impelindo nossos corpos para o alto. Pairando no ar, alguns serão afligidos pelo pavor e, recordando as iras divinas, gritarão súplicas de perdão para os pecados que imaginam haver cometido. Uns poucos, esquecidos dos preceitos religiosos, ainda pensarão que estão presos a um pesadelo produzido por alguma droga ou bebida. Mas a maioria, embevecida, será arrebatada pela embriagante leveza da liberdade de voar. Sua euforia não irá durar muito. Logo, todos perceberão que estão lançados num vôo cego e incoercível e que a brincadeira carnavalesca já ultrapassou qualquer limite tolerável. E entenderemos que é impossível lutar contra a energia descomunal que nos empurra para o alto. Sua força parece emanar dos chamados "anjos" que nos conduzem. Em levitação vertiginosa pelos céus afora, veremos com horror a cidade lá embaixo cada vez mais distante e, depois, o próprio chão e as nuvens de nossa Terra sumindo.
De repente, porém, contemplando as estrelas no céu escuro, nosso pavor dará lugar a uma estranha calma. Resignados e até felizes, sob a direção de nossos mestres, estaremos ascendendo pelos céus em colunas bem ordenadas, na antecipação do encontro com o Todo-Poderoso. Nossa intuição indicará que estamos prestes a galgar as culminâncias do Universo. Nem todos, contudo, sentirão as delícias dessa convicção. Alguns de nós teremos quase certeza de que estamos sendo pastoreados e que nossa viagem irá levar-nos até o lugar obscuro, muito além da Via Láctea, onde habitam esses seres alados que agora vieram buscar-nos.
Serão poucos aqueles que suspeitarão a inimaginável verdade. De fato, estaremos sendo recolhidos como uma manada de gado bravo levada ao brete. Na realidade, os seres alados que nos conduzem pertencem à mesma espécie daqueles que, há milhares de anos, trouxeram nossos ancestrais para o terceiro planeta do Sistema Solar. Nossa Terra terá sido escolhida por suas imensas pastagens, propícias à reprodução e à multiplicação espontânea dos espécimes orgânicos necessários à nutrição deles. E, enquanto estivermos sendo elevados pelo etéreo mar transparente, não seremos capazes de prever que nosso rumo é o de um abatedouro sideral. Lá descobriremos enfim o propósito de nossas vidas. Apenas um de nós poderá evitar o inexorável destino imposto por nossos criadores, habitantes de espaços situados muito além da nuvem de Oort. Serei eu. Lutarei como puder. Mas não sei se conseguirei evitar os fados sinistros que estarão à nossa espera no último dia de carnaval."


Terminada minha leitura, guardei o texto em algum lugar, que logo foi esquecido. Só fui achá-lo anos depois, conservado entre as páginas de um livro de psiquiatria. Era o Jaspers, a "Psycho-patologie Générale", de certo muito apropriada para abrigar o escrito do paciente desaparecido. Nas páginas do velho tratado científico, as idéias do rapaz encontrariam uma classificação esclarecedora, indicariam seus sintomas e dariam nome a seus transtornos. Além disso, pela psicanálise, seu quadro talvez pudesse ser compreendido: poderia ser apenas um menino do meio rural, traumatizado pela visão dos matadouros de gado... Vivendo sob a visão sangrenta dos bois impiedosamente esticados nos estrados das "zorras" e sendo abatidos pelos carneadores... Um rapaz, talvez até filho de algum deles, tomado pelo terror das imagens vistas na infância e aprisionado pelo horror delas, concebendo delírios bizarros para superar seus conflitos... Ou, ainda, o filho de um açougueiro da cidade...
Mesmo assim, alguns pensamentos vieram ocupar minha mente. Primeiro, é óbvio, que fim teria levado o paciente ao longo daqueles anos todos? Depois, ainda, como teria escapado da enfermaria? Lembrei-me do olhar do enfermeiro e uma ideia igualmente sinistra veio ferir minha consciência: e se a medicação tivesse sido excessiva e o rapaz houvesse morrido? Seu corpo teria sido removido em segredo pela enfermagem e encaminhado, durante a noite, ao necrotério da Faculdade? Guardei comigo também essas fantasias, afinal nada havia a fazer. O rapaz possivelmente teria encontrado sua melhora e estaria agora vivendo em paz em algum lugar do Brasil, E, mais uma vez, deixei de lado o episódio infeliz.
Muitas décadas passadas, fui lembrá-lo de novo. De modo involuntário, em sonhos – que, como Apolo e outros deuses, fazem perpetuar os mortos. Na verdade, um pesadelo. Era terça-feira gorda e eu me distraia vendo na televisão o desfile das Escolas de Samba. Na metade, cansado, adormeci. Então, de repente, eu me achei caído no meio de uma multidão. Logo soube que era aquela descrita pelo antigo paciente. Pandeiros, agogôs, cuícas, o gingado da porta-bandeira a girar o estandarte reverenciado pelo mestre-sala. Subitamente, os anjos. O vôo. O pânico. A força invencível. A certeza do final. Foi então que o avistei. Ele estava ali, o rapaz. Vivo e com a mesma idade, a cara sem rugas, igual à do passado. Ao contrário de mim, não havia envelhecido. Apesar do barulho, escutei seu berro. Não sei se me mandava segurar firme uma corda que me prenderia ao chão, ou se me dizia simplesmente: "Acorda!"
Segui sua ordem, despertei. Ainda tonto e com dor, pulei da poltrona. Tomei meu remédio. Já me sentindo melhor, desliguei a televisão e andei até a janela. Lá fora, a lua em quarto minguante, o céu bordado de estrelas, o mistério do mundo, do passado e do futuro. Fiquei olhando aqueles espaços ditos infinitos, o brilho das estrelas, a Nuvem de Magalhães, e todos os astros visíveis a olho nu. Pensei em nossas astronaves exploratórias percorrendo o Espaço, em busca de alguma coisa que não sabemos qual seja. Mas que teremos de encontrar. Gente de nossa família? Nossos deuses com a chave dos enigmas?
Agradeci ao rapaz. Parecia estranho que me aparecesse em sonhos e que eu pudesse reconhecê-lo. Não tenho a menor noção a respeito de onde poderia estar. No Brasil, vivendo saudável ou doente? Lá longe, nalguma das incontáveis galáxias desconhecidas? Desfazendo-se em pó dentro das terras da Terra? Quem seria, afinal? Um criador de ilusões e delírios que, junto a tantas outras pessoas, teria sido conservado pela vibração das correntes e os neurônios de meu cérebro? Um reflexo jovem no espelho onde já não posso olhar-me sem enxergar as sombras que o tempo traz à carne? Ou alguém que, por algum motivo, num carnaval sinistro, descobriu a natureza de nossos criadores, a verdadeira essência de nossa existência e também nosso futuro?