Homenagem da Academia Sul-rio-grandense de Medicina | Imprimir |

A 28 de março de 2009, no Auditório do CREMERS, Dr. Telmo Bonamigo, na condição de atual Presidente da Academia, presidiu sessão especial comemorativa do centenário de nascimento de Cyro Martins, um dos fundadores da instituição. Coordenou os trabalhos Dr. Blau Fabrício de Souza, proferindo palavras de reconhecimento às contribuições do homenageado, sendo também ouvidos Maria Helena Martins e Cláudio Martins, filhos de Cyro Martins. A seguir, tomou a palavra o Acadêmico Honorário, Dr. João Gomes Mariante, para o discurso transcrito abaixo. Leia mais ...


Cyro Martins, o Escritor Transparente*

Dr. João Gomes Mariante**


Não creio que possam estar ausentes da percepção de muitos os obstáculos, as dúvidas e objeções que incidem sobre quem se propõe comentar a vida, a obra e a produção intelectual de alguém com quem esteve unido por longos anos por uma profunda e fraternal amizade.

Por mais significativa distância a que o autor queira colocar-se, os ditames da fraternidade, os laços sentimentais gravitam sobre ele, conduzindo a uma ponderável resistência e até obstaculizando a capacidade intelectiva de quem se propõe executar tão complexo mister.

Mas, se predominar na intenção do autor, se primar no seu espírito o propósito de ser autêntico, sincero e justo, uma exaltação da personalidade de quem se está homenageando não significará de maneira alguma um encômio destituído de propósito e autenticidade.

Em tais circunstâncias, o aplauso realizado transformar-se-ia numa despreziva claque.

A antítese de tais postulados não estaria significando uma posição honesta em relação a Cyro Martins, quando ele foi sempre honesto em tudo, e com todos.

Em princípio, o autor desta homenagem não pretende apreciar o homenageado pelo ângulo restrito de uma crítica literária, mesmo porque lhe faltam condições para uma tarefa especializada como esta, mas apenas evidenciar especialmente alguns atributos seus e os que o distinguiram: o humano e o profissional, o homem e sua personalidade.

Os conceitos sobre a essência de sua vasta produção literária e científica acontecerão apenas como um epifenômeno, surgirão mais para tangenciar o alvo do que para atingi-lo em cheio.

Num estudo tão sucinto, não seria possível analisar em profundidade a sua vasta obra e pôr em relevo uma personalidade tão atraente e galvanizadora, hoje cultuada, e com justiça, por uma multidão de adeptos.

O dileto filho de Quarai foi líder entre os diferenciados cultores do regionalismo gaúcho, a tal ponto que o seu talento contribuiu para nacionalizá-lo.

A saga do “gaúcho a pé” atravessou fronteiras nacionais e internacionais, traduzindo a tragédia daqueles migrantes da escravidão pampiana para a senzala citadina e o confinamento nas favelas. Do amplo proscênio dos pampas, dos seus dilatados horizontes, o desgraçado migrante contempla, agora, a perspectiva limitada de um espaço claustrofóbico.

O nosso varão quaraiense jamais se perturbava. Sua fisionomia lembrava a estampa de um ente celestial benigno, clemente e justo. Jamais se alterava. Mesmo diante de qualquer turbulência, o seu equilíbrio psíquico se impunha. Em situações mais tensas, usava o verbo adequado para serenizar e até para anestesiar os ânimos em ebulição.

Tanto na produção literária, como no exercício da psicanálise, foi dono de uma maioridade social e psicológica. Detinha uma capacidade especial para orientar as novas gerações.

Cyro, como poucos, teve a capacidade de captar os segredos da condição humana no que ela encerra de mais profundo e complexo e de proclamá-las sem influenciar-se por preconceitos e formalismos. Ele jamais distanciou-se das suas origens, do sentimento telúrico, do amor à gleba natal, com um eterno penhor de gratidão, com uma permanente preocupação de exaltar a figura paternal, que foi alma, exemplo, ânimo e confluência. Assimilou do humano genitor a retidão, a lealdade, a honradez, a constância, o cultivo da amizade e o respeito pela condição de amigo.

A sua progenitora deu-lhe o patrimônio da mais alta experiência de vida: o do amor, do afeto, da simplicidade e da ternura.

Sobre a condição de amizade, ele assim se expressa: “Os meus amigos foram e continuam sendo a minha escola de humanidade, eles me ajudaram a representar o meu papel no palco da vida. Nas horas amargas, foi sempre uma mão amiga que me trouxe à tona, que me fez voltar ‘ao claro sol amigo dos heróis’, cuja luminosidade anula o feitiço das bruxas e revigora o coração dos homens no regaço do amor”.

Cyro dispunha de uma expressiva erudição e de uma especial cultura de massa, agreste, erudita e popular, oriunda do meio, do habitat, de cuja influência invasiva ninguém se livra. Mas essa condição talvez tenha operado os meios para as realizações intelectuais diferenciadas e para distingui-las do humanismo das metrópoles.

O destacado escritor e renomado psicanalista, na magnífica obra literária “Porteira Fechada”, analisa com maestria a problemática migratória, as míseras condições de vida dos nossos campeiros. É profundamente tocante e enternecedor, quando descreve a decadência do homem humilde do campo, vítima das mutações sociais. Na esplêndida obra sócio-político-psicológica, retrata magistralmente o tipo inesquecível de João Guedes. O retratado é descrito como alguém que foi dono de algumas posses e delas posteriormente foi despojado pela cobiça desmedida de um avaro proprietário rural. Em consequência da opressão, viu-se rapidamente empreendendo um irreversível dissenso no declive da miséria que o impeliu ao abigeato e à consequente punição carcerária.


Cyro assim descreve a transfiguração toponímica do latifúndio: “Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro, não tremulava um pala endomingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra. Mas que engorda dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno, não havia campo que se igualasse. Que paz naqueles campos!”

O lirismo subjetivo e o romantismo redivivo revelam o poeta que se oculta no bojo de um expressivo beletrismo. O romantismo do seu tempo adaptou-o aos tempos atuais, neles sentou-lhes a marca dos idos de 22. Mário de Andrade, se vivo fosse, estaria aplaudindo o destemido romancista. Ele, de algum modo, viu-se prisioneiro involuntário de um tempo pretérito, etapa cronológica cujo significado foi amparo, amor e, sobretudo, felicidade, essa ilusão que vive em nossos sonhos, mas que está sempre marcando um desencontro com o presente, essa nostalgia que, entranhada nas profundezas do inconsciente coletivo, evoca uma palavra que não tem tradução em nenhuma língua viva ou morta – a saudade.

Cyro, como poucos, ou como ninguém, soube tratá-la com a mesma ternura que a palavra simboliza. E a familiaridade com aquele sentimento avoengo, passageiro, das naus descobridoras, o grande mestre transladou-a do Porto Seguro para imantar o lirismo das produções literárias. Refiro-me àquela saudade abençoada pela cruz das caravelas cabralinas. Cyro deu-lhe uma afetuosa intimidade com o sentimento nostálgico do seu povo, consentiu-lhe a primazia de efetuar uma distinta discriminação entre a saudade e o saudosismo, palavra esta que está a significar a saudade patológica.

A saudade, em sua concepção, eternizou-se como um emblema sentimental das “três raças tristes”. Saudade, palavra que evoca sempre uma nostalgia e que, às vezes, atinge o ápice de uma lembrança causal quando o passado nos chama.

E que saudade deveria sentir da época anterior à da ida para o colégio, quando o “Seu Bilo”, com o peito comprimido, palmou-lhe o ombro e disse: “Então, amanhã cedo, seu Carlos, já sabe, embarcarás para Porto Alegre.” Aquela foi a hora do adeus à liberdade.

Em suas mensagens, percebe-se o eco sonoro de outros tempos, o curso de uma existência pretérita repleta de sonhos, aspirações, vitórias e derrotas, amarguras e mágoas. E estas, as mágoas, ele enfrentava entregando-as ao julgamento do supremo tribunal universal de justiça: a história.

Um dos ângulos mais relevantes de sua vida é o que assinala o transporte da sua história para o presente, como a reviver a vida que o menino viveu antes de ir para o colégio, para citar o título do seu grande tratado de literatura.

Cyro era dono de uma inata simplicidade, de um notório comedimento e não menor recato, sem nunca apresentar os sintomas de alguém ensimesmado.

Na descrição de sua personalidade, não seria justo omitir mais um dos seus atributos: uma inaudita coragem. Mas essa coragem não era necessariamente a que traduz a valentia crioula, da bravura, do desafio, da ferocidade tão sintonizada e dramatizada em rajadas epiléticas, e tão a gosto do machismo meridional. Falo, aqui, de uma coragem taciturna, naturalmente manifesta sem alardes nem exibicionismos. Refiro-me a um sentimento superior de tolerância, de grandeza de espírito e de renúncia.

Cyro dispensava um profundo desprezo pelo utilitarismo, esse inimigo implacável de toda atividade espiritual, de toda iniciativa, por superior que seja, porque, no fundo, todo utilitarista nutre a fantasia de impedir o progresso da humanidade. Em tal sentido é que deverá ser entendida a posição antagônica de Cyro Martins. E só poderá ser compreendida através da sua trajetória na vida, como escritor, psicanalista e ser humano.

Cyro dispensava um profundo desprezo pelo utilitarismo, esse inimigo implacável de toda atividade espiritual, de toda iniciativa, por superior que seja, porque, no fundo, todo utilitarista nutre a fantasia de impedir o progresso da humanidade. Em tal sentido é que deverá ser entendida a posição antagônica de Cyro Martins. E só poderá ser compreendida através da sua trajetória na vida, como escritor, psicanalista e ser humano.

Em que pese sua profunda identificação com a gleba de origem, Cyro desvencilhou-se de muitos hábitos, dos que agrilhoam o homem a um primitivismo atávico, dos que inalam e exalam o ranço de velhas épocas.

Os seres humanos nascidos sob a luz de um ambiente cultural e de saber posicionam-se em significativa primazia sobre os seus contemporâneos destituídos dessa fortuna espiritual.

Cyro, oriundo de um berço carente em tal sentido, mas pletórico de amor, afeto, compreensão e estímulo, soube, com o passar do tempo, desprender-se das forças que o prendiam à natureza agreste e primitiva; soube ascender e evoluir, sem nunca renunciar ao que ele mais prezou: o amor filial, a gratidão, o reconhecimento sobre a dupla parental que o gerou.

Esse foi o mais inestimável quinhão por ele herdado, que o seu talento transformou em arte e gratidão e que a sua inclinação afetiva transmitiu aos seus descendentes.

O poder da sua imaginação criadora converteu em trechos sublimes a arte assemelhada e às vezes idêntica à natureza da sua infância e adolescência, valendo-se da intenção ficcionista para eternizá-las.

Ao longo de sua vasta obra literária, ao descrever seus personagens retrata-se a si mesmo, numa identificação beirando a um mimetismo psicológico.


O Idealismo em Cyro Martins

Cyro foi um idealista ingênito. Sua personalidade, talhada para traduzir em palavras e ações a grandeza da vida, a verdade espiritual ou subjetiva. Ele viveu para promover a união, a concórdia e a paz.

Sonhou com uma civilização aperfeiçoada, dotada de uma claridade plena, com luz permanente para não ofuscar a liberdade. Preconizava um mundo onde predominassem os princípios dos ideais imanentes, os que assinalaram de maneira brilhante o auge da vida grega.

O destacado homem de letras sonhava em habitar um universo pleno de uma grandeza criadora, onde a luz nunca se apagasse. Uma claridade para guiar o ser humano, portador do estandarte da liberdade, a cumprir a sagrada missão universal: a de salvaguardar a existência da própria espécie.


O Ser Humano

Cyro, em sua fisionomia, irradiava uma profunda impressão de empatia; uma seriedade circunspecta que de maneira alguma se igualava à sisudez acadêmica.

Ele atravessou a vida ensinando e aprendendo, revivendo a conduta permanente dos sábios: a de aprender com a experiência. E como um verdadeiro sábio, era capaz de aprender até mesmo com quem não sabia.

Cyro conquistou uma de suas mais altas aspirações: a de associar o ofício de escritor à profissão de psicanalista. E tanto a uma, como a outra, serviu com igual proficiência e denodo.

Como destacado tributário e servo fiel das duas exigentes senhoras, sempre ávidas de constante dedicação, saiu-se vitorioso.

Envolto nesse matrimônio científico-cultural, sem nunca esmorecer, sem dele se divorciar e sem estabelecer vínculos de dependência com nenhuma, mais uma vez triunfou.

No interregno de uma e outra sessão, no curto espaço de uma pausa transformada em instantes, valia-se da celeridade dos segundos para dar vida e forma as suas inspirações.

A essa pausa, a esse interregno caleidoscópico, exíguo para anotar as idéias e inspirações, ele denominou “no rabo das horas”.

Cyro revelou-se um hábil escafandrista, destinado ao labor de trazer à tona os tesouros sepultados no fundo invisível do inconsciente humano.

Como um ser independente, jamais subjugou-se às normas e imposições, porque a sua maioridade psicológica e independência de espírito outorgaram-lhe o direito de exercer as suas próprias normas.

Na literatura, deixou à sua, às nossas e às outras gerações um legado extraordinário. Cyro, na literatura, foi um precursor, porque seu estilo límpido e claro, de certa forma nacionalizou o próprio regionalismo, promovendo assim uma espécie de diátese literária.

Cyro porfiava sempre em aguardar a ocorrência de um desafio que surge de inopino, ou das sombras das intenções. E então, como essas estrelas da tarde, posto no firmamento da intelectualidade brasileira, pacientemente esperava pelas trevas da noite para direcionar os lampejos de um talento iluminado.

Por vezes, quando se detinha a pesquisar uma obra, com seu semblante atento lembrava os grandes cientistas do passado e a esfinge de um senador romano.

Suas criações intelectuais revelavam o que ele pensava da vida, dos homens, das instituições e da sua própria história; asseverava com nítida clareza as ocorrências de antes e depois, a um só tempo antigas e modernas, e as condensava numa só: a universalidade das suas idéias e a amplidão dos seus princípios.

Cyro era um ser paciente, circunspecto e tolerante. Transmitia a idéia de jamais ter pressa. Concebendo sua postura por esse ângulo, poderíamos supor uma lentidão psicomotora, mas via-se que ele ocultava, atrás dessa postura, uma capacidade sem igual de atenção e observação. Essa posição não era outra senão uma forma de rever em sonho o céu estrelado da sua Itaqui inolvidável e os reflexos do luar nas águas serenas do Uruguai.

Jamais cheguei a conceber um Cyro Martins exercendo a política partidária de campanário, de conchavos, de impudências, sem princípios, sem ética, sem moral e, sobretudo, carente de idealismo.

Cyro foi um idealista consistente; proprietário de um ideal superior, transformou a literatura em arte, e  sublimação.

Cyro jamais posicionou-se na condição de dependente, de cativo, de submisso. Quem bem o descreve, no livro a ele dedicado Cyro Martins - 100 Anos - O homem e seus paradoxos, de autoria de Celito De Grandi e Núbia Silveira, é o professor Antônio Hohfeldt, que assim se expressou: “A renúncia política não se deve apenas à psicanálise. Cyro era um homem lúcido, crítico, que não aceitaria o cabresto do PCB, como fez Jorge Amado e outros".

Uma renúncia das hostes partidárias, no seu caso, não traduzia de nenhum modo um abandono dos seus princípios, ou uma rejeição dos ideais socialistas. Ele continuou exercendo um socialismo maduro e ético, através dos grupos terapêuticos, no Hospital São Pedro, como maneira de transformá-los numa microssociologia.


Cyro e as atividades políticas

Antes de submeter-se à formação psicanalítica e de passar pela análise terapêutica e didática, Cyro integrou o Partido Comunista para dele desligar-se tão logo voltou de Buenos Aires. Ele justificou-se perante seus camaradas, invocando o argumento da incompatibilidade entre a rigidez ideológica marxista e a idiossincrasia existente nos postulados psicanalíticos, no concernente à imposição de doutrinas políticas ditatoriais de direita ou esquerda.

Cyro, como já assinalamos, foi um homem de coragem, mas, ao mesmo tempo, deu provas de resguardo, escrúpulo e reserva, condições essas que lhe asseguravam o conceito em que era tido - exemplo de equilíbrio e lucidez mental.

Cyro situa-se entre um dos poucos que certamente diria, se renascesse, que seu desejo maior seria ser gerado dos mesmos pais e na mesma pátria. Seu equilíbrio, tantas vezes evidenciado no decorrer da existência, burilado pela psicanálise, tornou-o ainda mais diferenciado, grandioso e exemplar.

Quem privou com o festejado romancista, depois de sua volta de Buenos Aires, por certo não deixará de reconhecer o acentuado câmbio, não só em matéria política, como em outros mais.

Quem privou com o festejado romancista, depois de sua volta de Buenos Aires, por certo não deixará de reconhecer o acentuado câmbio, não só em matéria política, como em outros mais.

O agudo senso perceptivo e a capacidade tão peculiar de captar os segredos da mente humana, complexa e enigmática, brindaram-lhe a condição de transfigurar situações opacas em condições translúcidas. Sua sensibilidade está destinada a perscrutar os labirintos da mente, possibilitando “tornar consciente o inconsciente reprimido”, princípio fundamental da psicanálise. Com a transmissão desse princípio, quase dogma, arrancou muita gente da neurose.


O Homem da Fronteira

Durante várias décadas, e ainda hoje, designava-se o homem da fronteira territorial, e mais acentuadamente os da região meridional, como desconfiado, suspeitoso e outras denominações, algumas até desabonadoras. Atribuía-se aos habitantes dessas regiões uma varonilidade direcionada à boêmia e à libertinagem; eram e ainda são descritos como nômades, contrabandistas e outros tantos.

Esse sucinto bosquejo que faço sobre o homem da fronteira, sob um ângulo psicológico, objetiva, essencialmente, evidenciar um antagonismo e uma dessemelhança entre Cyro Martins e sua progênie fronteiriça.

Os fronteiriços, tanto os daqui como os de lá, se identificam por elementos essenciais de aculturação, por uma mesma condição econômica, por igual confinação geográfica, topográfica e toponímica.

Os mencionados habitantes, não raro, deixam transparecer uma personalidade ambivalente e dissociada e, sobretudo, as características de uma identidade imprecisa. Quando menciono o conceito “desconfiado”, “suspeitoso”, estou referindo as invasões estrangeiras em solo gaúcho, esse passado pletórico de episódios históricos que permanecem atuais na consciência de muitos como um estigma inextinguível.

Não se poderá apagar dos sentimentos e da memória da gente meridional as incursões do caudilhismo platense, que o gaúcho revidou utilizando a lança e a estratégia da sua mais alta vocação: a da audácia. Rio Pardo existe para comprovar e consubstanciar o cognome, que será eterno, de “fronteira invicta”.

Cyro não assimilou certos hábitos e procedimentos da cultura autóctone. Se com ela se identificou, ou dela se valeu, foi apenas para transportá-la e inscrevê-la nos anais da história, como estampa de uma herança ancestral; engrandeceu-a e eternizou-a na forma de uma linguagem descritiva e ficcional, ou em exposições orais, para as quais dificilmente renunciava um convite. Ele sempre abria novos modelos de perspectivas ao processo do pensamento, assim como um espaço de tempo para efetivá-las.

Destarte, sem exagero nem ufanismo, sem apartar-se da realidade histórica, soube engrandecer e eternizar a sua terra e a sua gente. Soube, com destacada aptidão, cultuar e exaltar a alma bravia da terra, do povo e da raça.

Não poderia concluir esta palestra sem direcionar uma especial e merecida moção de reconhecimento a duas pessoas aqui presentes. Mas, para atingi-las na sua plenitude, permitam-me tangenciar a metáfora da “laranja que não cai longe do pé”. Maria Helena, escritora e professora de literatura, caiu tão perto, a ponto de confundir-se com o tronco. “A agonia do heroísmo”, obra de sua autoria, é a expressão máxima desta menção. Cláudio, mestre e doutor em psiquiatria, não se põe na retaguarda, através dos escritos psiquiátricos.

O que mais atinge a nossa admiração, e nos compunge, são a ternura e a grandeza de um peculiar propósito, o do trabalho dos seus filhos -  fiéis guardiões de um tesouro de valor inestimável - para que a obra de seu pai continue viva através deles. O trabalho incessante e já prolongado fala ainda da pujança do amor filial, aquele amor que Cyro devotou ao “Seu Bilo”. Em seus filhos, seus devotos descendentes, o pai continua vivendo e com eles celebrizando suas obras imortais. Através deles, o pai biológico, cultural e intelectual estará permanentemente vivo, como está vivo entre nós nesta memorável reunião comemorativa do glorioso centenário.

Com ideal e denodo, Cyro poderia estar mandando um recado aos seus filhos: “Sinto agora, através de vocês, que o meu fim significa um começo.”

E o autor desta palestra diz, agora: “O seu fim não é uma linha de chegada, mas um ponto de partida para a perpetuidade das criações eternas.”


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*Discurso proferido na Academia Sul-Rio-grandense de Medicina, em 28/03/09 por ocasião da homenagem dessa instituição ao do centenário de nascimento de Cyro Martins.

** Dr. João Gomes Mariante é Membro Efetivo da International Psycho-Analytical Association, Membro Honorário da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina, Criador e Diretor do Jornal MENTECORPO (Porto Alegre).