Entrevista eletrônica com a equipe da Zeppelin sobre “Um menino vai para o colégio” | Imprimir |

CELPCYRO - Como se deu a escolha da novela Um menino vai para o Colégio para fazer o curta-metragem?



Laura Amaral (Produção) - Lemos praticamente toda a obra de Cyro Martins e optamos por “Um menino vai para o colégio” porque traz aspectos históricos e políticos interessantes, assim como retrata, de certa forma, um pouco do que foi vivido pelo próprio escritor, revelando sua visão do campo e da cidade e, em especial, a transformação de um menino tornando-se adulto



Ana Kessler (Roteiro)- Inicialmente, foram distribuídas várias obras do Cyro entre os membros da equipe, de forma que cada um lesse um pouco de tudo: contos, romances, novelas - por causa do prazo de entrega do filme, não dava tempo de todos lerem a obra completa. Depois separamos as histórias mais votadas e as distribuímos novamente entre os que não haviam lido aquelas especificamente. Um menino vai para o Colégio foi, entre as finalistas, a história mais votada entre a equipe, por vários motivos que aponto na pergunta três, logo mais.



Liliana Sulzbach ( Direção) - No meu entender, Cyro Martins é um escritor que privilegia uma linguagem poética e reflexiva, nos presenteou com vários textos e histórias inesquecíveis, mas nem sempre fáceis de traduzir para a linguagem audiovisual. Optamos pela adaptação da novela "Um Menino vai para o Colégio", por considerarmos uma obra com forte dimensão humanista, ao abordar o rito de passagem de um menino para a vida adulta. Parcialmente autobiográfico, apresenta uma narrativa que leva literalmente o personagem de um lugar para outro, fundamental numa narrativa audiovisual. Neste caso, do campo para a cidade, da infância para a vida adulta. As situações que se apresentam são visualmente ricas e os diálogos curtos e essenciais, criando um clima nostálgico das situações passadas. Lembranças positivas de uma infância feliz e despreocupada, mescladas com situações de uma vida futura que se impõe, que não admite retornos, ao mesmo tempo em que oferece inúmeras possibilidades.


CELPCYRO - O que a equipe já conhecia de Cyro Martins?

Laura - A equipe era muito grande, por isso seria injusto respondermos a esta questão de uma forma genérica. Mas é claro que a trilogia do gaúcho a pé estava presente na memória de muitos.

Ana - Eu já havia lido uma coletânea de contos do Cyro, “Você deve desistir, Osvaldo”, publicada pela L&PM. Mas confesso que um contato mais intimista e profundo com seus livros e, consequentemente, com seu estilo de narração e universo literário, tive ao estudá-los para desenvolver o roteiro do filme. Pessoalmente, ouvia muito falar no Cyro Martins em rodas familiares onde um tio meu que conheceu Cyro em vida, psiquiatra Luis Paulo Paim Santos, o elogiava com freqüência.

Liliana - Dificilmente alguém não tinha ouvido falar na "Trilogia do gaúcho à pé". Mas nem todos eram íntimos de sua literatura. Mesmo tratando de textos com forte acento local, muitas expressões utilizadas pelo autor eram inteiramente desconhecidas da equipe. Mas, para a escolha da novela, praticamente toda a obra do autor foi estudada.


CELPCYRO - Que características da novela foram determinantes para a realização do curta?

Laura - Acredito que os aspectos regionais, desde a descrição de alguns ambientes ou personagens até a linguagem utilizada. Isso influenciou a escrita do roteiro e a escolha dos atores e da forma como representariam seus papéis.

Ana - Um menino vai para o Colégio nos cativou em vários pontos. Ela é uma obra autobiográfica, apesar de ter título de “novela” e as personagens estarem “disfarçadas” com nomes fictícios. Seria uma ótima oportunidade de contar um pouco da trajetória do Cyro, quem ele foi e como se deu a transformação do menino do campo em uma sumidade das ciências e da literatura. Outro ponto foi o pano de fundo da Revolução de 1923 em que a obra está inserida. É um importante marco na história do Rio Grande do Sul e Cyro relata de dentro pra fora, conta a História (com “H” maiúsculo) com a visão de quem foi uma testemunha viva dos fatos - claro, através dos olhos de um menino de 12 anos, o que torna tudo ainda mais interessante. Um menino... é uma novela que descreve o rito de passagem da infância para a vida adulta. Há cenas lindas no livro, como a cena final, no Hotel Lagache, em que simples gestos descritos nos fazem absolutamente enxergar a transformação ocorrida em Carlos. E ainda achamos bárbaro poder retratar a vida de “antigamente”, onde escolas eram internatos, a autoridade paterna ainda existia e era respeitada, os costumes gaúchos do início do século, entre outras peculiaridades.

Liliana - Levamos em consideração a narrativa proposta. Ou seja, era importante que houvesse um desenvolvimento dramático na história. Mesmo sutil, algumas transformações no personagem central foram determinantes para a escolha da novela. Imaginamos também que o fato de se passar grande parte no campo, proporcionaria uma riqueza visual ímpar. Em termos de produção, devemos confessar que trabalhar um filme de época, com crianças, animais e diárias externas durante um inverno rigoroso, não foi a opção mais razoável que já fizemos na vida.


CELPCYRO - Houve preocupação em manter o linguajar do livro? Como conduziu isso e como os intérpretes reagiram?

Laura - Houve sim. A escolha do elenco foi feita muito em função disso. Os textos utilizados nos testes continham o linguajar gaudério e escolhemos as pessoas que tinham capacidade de expressar-se dessa forma. Além disso, foram feitos alguns ensaios e passagens de texto com os atores o que ajuda a afinar ainda mais a mensagem que se pretende passar.

Ana - Sim, tive todo o cuidado, ao escrever o roteiro, de não deturpar o linguajar “gaudério” das personagens, evitando ao máximo substituir expressões por outras “modernas” ou gírias contemporâneas. Inclusive, ao criar diálogos novos, pesquisei e adaptei expressões modernas ao universo campeiro em que elas estavam inseridas. Em reuniões de equipe, chegamos ao consenso de que o “estilo Cyro” deveria ser mantido, pois Um menino vai para o colégio, apesar de única, diz muito das outras obras do Cyro Martis, do seu estilo de escrever e jeito peculiar de enxergar, escrutinar a vida.

Liliana - Nossa preocupação era manter somente os diálogos necessários para o entendimento da história. Mas procuramos manter em muitos diálogos o linguajar que o livro propõe. Para nós, que não estamos acostumados com isso, foi um desafio encenar situações sem que as interpretações parecessem forçadas.


CELPCYRO - Como relacionam a linguagem literária e a cinematográfica? Em que medida uma iluminaria ou obscureceria a outra? Dêem exemplos com cenas do livro e do filme.

Laura - Na adaptação desta novela, em especial, tínhamos muitas cenas bucólicas e contemplativas que não careciam de texto ou diálogo. Falavam por si. Acredito que o recurso da imagem acrescenta à literatura um olhar específico que pode ou não corresponder à leitura feita por cada pessoa. Mas neste caso trata-se da leitura que cada membro da equipe fez deste projeto e, em especial, trata-se da forma como os diretores enxergam esta trama.

Ana - São duas linguagens bem diferentes, duas formas de contar uma história. A linguagem literária é descritiva. O autor é o maestro que rege as ações e reações de cada personagem, situação, pensamento. Ele precisa dar elementos descritivos ao leitor para que este entenda o que quer dizer. Ao mesmo tempo, é uma linguagem que faz uma dupla com o leitor, que “enxerga” a narrativa e constrói a imagem das personagens de modo absolutamente particular. Por exemplo, o protagonista Carlos é um menino de 12 anos, mas são vários meninos de 12 anos, porque cada leitor constrói para si a imagem dele baseada em suas referências pessoais. Mesmo que o autor entre em detalhes, como em um trecho do livro: “Defronte, sentava um indivíduo indiático, corpulento, de lenço encarnado no pescoço, bombachas e botas, uma perna cavalgando a guarda do banco”. O meu `indivíduo indiático' vai ser diferente do seu. Dentro desta perspectiva, costumo dizer que todo leitor é `co-autor' de um livro.

Já a linguagem cinematográfica é mais explícita, pois quem fala é a imagem. Você `lê' o que vê, o que ouve. A emoção está menos nas palavras do que nos outros sentidos. Como roteirista, temos que saber `compartilhar' a autoria do roteiro com o diretor que vai dirigir a cena, o produtor que vai escolher o local da filmagem, o que vai indicar os atores, etc. Não há detalhes e artifícios de linguagem na hora de escrever porque a finalidade do roteiro é contar uma história para ser traduzida visualmente. Então, quem tem que entender o que o roteirista está dizendo é o diretor, a equipe. É uma linguagem “limpa”, clara, transparente, sem margem para divagações ou interpretações dúbias. A atenção maior se volta para os diálogos e como mostrar cada cena, ou ainda, o que não mostrar.

Um exemplo bom é o da cena do cachorro, logo no início do livro. No livro, é bem descritiva e rica em detalhes. No filme, o latido do cachorro, a cara de assustado do menino, a respiração ofegante, os passos correndo, tudo isso forma a cena, escreve na alma das pessoas.


CELPCYRO - Estamos desenvolvendo um projeto CYRO MARTINS VAI ÁS ESCOLAS, a partir da leitura de Um Menino ..., com alunos do Ensino Fundamental. A atração que revelam por expressarem-se visualmente é muito grande, inclusive fizeram filmetes, dramatizações, muitas maquetes. O que pensam sobre isso?

Laura - Acho fantástica a iniciativa e acredito que a obra se propõe a isso porque trata de um temo próximo a estes alunos.

Ana - Acho um ótimo exercício para perceberem o quanto a imaginação humana é rica e o quão difícil e desafiante é transformá-la em realidade. E também é bacana para mostrar como cada um tem uma visão diferente da vida e das coisas da vida, de um texto, de um livro, há um ângulo particular que deve ser respeitado e incentivado. Nesse contexto, a arte, seja visual, gráfica ou cinematográfica, é um excelente e prazeroso caminho na formação da individualidade.

Liliana - Acho ótimo qualquer tentativa de expressão audiovisual. Acho que faz refletir sobre a obra literária. Colocar palavras em gestos não é tarefa fácil.


CELPCYRO - Retomando o texto e vendo o filme pronto, em que aspecto lhes parece haver mais harmonia entre ambos?

Laura - Na contemplação e na sensibilidade em se contar uma história.

Ana - Ainda não vi a versão final do filme, precisei viajar, estou curiosíssima!

Liliana - O filme se propôs a criar a atmosfera descrita por Cyro. Ou pelo menos, como a imaginamos. Acho que a alma da novela está representada nesses momentos nostálgicos.


CELPCYRO - Houve impedimentos maiores que resultaram em lacuna no filme? Que problemas se resolveram apesar das dificuldades? O que veio a facilitar o trabalho?

Laura - A maior dificuldade foi o tempo. Tínhamos 5 diárias previstas para a filmagem e, em função da chuva e da serração, tivemos que cancelar inúmeras vezes nossa programação, estendo o cronograma e tendo que fazer reajustes na equipe. No mais, houve um grande envolvimento de toda a equipe e dos atores e tínhamos locações muito bonitas. Recebemos um enorme apoio dos parceiros em Garibaldi, Bento Gonçalvez, Gravataí, Pântano Grande e Lami. Isso ajudou bastante.

Ana - No caso específico do roteiro, a primeira versão foi escrita sem cenas de trem, elemento esse bastante presente no livro e significativo na história. Vários pensamentos de Carlos e situações têm o trem de pano de fundo e ele era quase tão importante quanto uma personagem na história. Inclusive, queríamos usá-lo como uma espécie de link entre a meninice e a maturidade, tipo, vai para o colégio menino, volta para a estância adulto. Mas havia dificuldades de produção para filmarmos dentro de um vagão em movimento. Dificuldades essas - ainda bem! - superadas e o trem entrou na versão final com o importante papel que tem no Um menino vai para o colégio.


CELPCYRO - A realização desse trabalho significou o que na sua trajetória profissional?

Laura - Uma estréia na produção executiva, ao lado de Liliana Sulzbach.

Ana - Significou muito. Foi o meu primeiro trabalho de ficção. Trabalhei no jornalismo da TV Globo do Rio nos últimos seis anos e, como publicitária, sempre sonhava em migrar para a ficção. E fazer essa estréia escrevendo sobre o Cyro Martins, ao lado da maravilhosa equipe da Zeppelin, numa série sobre escritores gaúchos para a RBS/TV, é recomeçar com o pé direito, né? Acho um projeto bárbaro esse de valorizar e divulgar o que temos de melhor na literatura gaúch Uma produção audiovisual sempre trabalha com limitações: No caso específico, foi difícil trabalhar um filme de época, reproduzir uma Porto Alegre dos anos 20, visto que não existe um cuidado muito grande em preservação urbana. Como falei, trabalhar com crianças, animais, externas durante o inverno, com um orçamento apertado, são fatores complicadores. a e me sinto honrada e feliz com a oportunidade de participar dele.

Liliana - Nunca havia trabalhado com um roteiro adaptado. Sempre a partir de roteiros originais. Neste sentido, foi uma experiência nova, interessante, que abriu novas possibilidades.


CELPCYRO - Que outra obra de Cyro Martins lhes parece atraente para transformar em filme? Por quê?

Laura - Gosto muito de “Um sorriso para o destino”. Acho intrigante e envolvente a história. Seria fantástico adaptá-la aos dias de hoje.

Ana - Vixe, que pergunta difícil! Particularmente, eu gostei muito, muito mesmo, dos contos do Você deve desistir, Osvaldo. Talvez porque tenha sido o primeiro livro do Cyro que li e, relendo com a cabeça voltada a montar um roteiro, me deu vontade de juntar contos como Guri e Tempo de Seca e Nevoeiro Denso (entre outros), cujo impacto cinematográfico seria incrível, em um novo enredo, e fazer uma miscelânea de histórias a la Cyro, onde o universo campeiro e humanista se mesclassem.

Liliana - Acho que O Professor renderia um bom filme. Bons filmes são feitos com grandes personagens e o professor é um personagem e tanto.


OBS.: No entender das entrevistadas aqui, os demais componentes da equipe de modo geral compartilham as idéias expostas.


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