O abraço de Liana, uma biografia impressionista* | Imprimir |

- leitura da exposição Cyro, o Conciliador de Extremos


Tania Mara Galli Fonseca**

Adentrar uma vida para transformá-la em texto de imagens nos conduz a uma certa grafia que vem acompanhada de zumbidos que assombraram os ouvidos durante uma leitura. Poderíamos pensar na ocorrência de um perspectivismo, mas, desta vez, não a serviço de conceder mais uma visão de um outro sujeito acerca de um mesmo objeto, de um olhar de uma outra forma para este mesmo objeto. Não se trata, neste caso de Liana com Cyro de mais uma variante de uma mesma verdade, mas da condição da verdade de uma variação. Não se trata, ainda, de trabalhar em prol da cultura como se faz um inventário de bens culturais erigidos como cânones ou como espólio de um morto. Não se trata, pois,  de um passado embalsamado cuja atualidade seria sinônimo de intemporal. Aqui, Liana traça uma biografia não como repetição de um valor eterno do passado no presente. Foge da concepção apologética e repetitiva e forja a narrativa de uma vida como intensidade, ou seja, desde o vir-a-ser de suas potências. Faz fulgurar potências que jazem encobertas na obra de um passado e que, ainda hoje, agem como confiança, coragem, humor e astúcia aos nossos olhos e compreensão. É essa atualidade intensiva que vem designar as ressurgências de elementos ocultos, esquecidos diria Proust, recalcados diria Freud, do passado no presente. A obra Liana-Cyro convoca-nos a uma especial hospitalidade e faz com que criemos, nas condições de nosso presente, a disponibilidade para esse ressurgir e para essa reinterpretação sempre feita à luz súbita que nos possibilita um olhar. Tomo essa biografia como Monet com seu Nascer do Sol. A paisagem muda menos em função do movimento de troca de lugar do pintor, e mais na relação do deslocamento do sol frente à tela pintada.

Gostaria, assim, de nomear de uma biografia impressionista o trabalho poético de Liana a respeito da vida e obra de Cyro. Encontro de dobras atiçando-se e desdobrando-se na feitura de outras. Plissê vivo e vivido, presente e passado conjugados, dobragem biográfica em que ambas as vidas - a da biógrafa e a do biografado -, se expõem como um ar fresco.  Biografia para além das cronologias, que ao distender a superfície problemática do existir de um sujeito, nos reporta também àquilo que podemos considerar como uma pequena multidão de vidas, humanas e inumanas, que se entranharam e enlaçaram no acontecimento daquela vida. Leitora das palavras e da trajetória de Cyro, Liana as transforma em imagens e as realiza em estado de núpcias com ela -  Liana-em-Cyro, Cyro-em-Liana em sobreposição, texto a quatro mãos, tecido como uma aventura que faz emergir a obra imagética como um terceiro personagem cujas vozes falam conosco e nos conduzem a uma travessia dos gestos da criação que indicam a eternidade efêmera de que somos feitos. Trata-se de uma operação da ordem de um tempo sutil que faz durar aquilo e aqueles que já passaram. Enfim, um modo de fazer vencer a vida contra o esquecimento e a morte.

Biografia impressionista, povoada de elementos extraídos de diversas épocas e de suas condições de existência e que se oferece, sobretudo, como fagulhas e retalhos recolhidos do “isto é para mim” e na qual o enunciado “isto foi” não lhe cai muito bem. Essa obra biográfica, que nos olha como um terceiro recém-nascido nos diz de um encontro e de um combate entre dois corpos, indica-nos o caminho exploratório das circunstâncias históricas das quais foi retirado o que mais convinha para dizer o seu amor. É uma obra que tampouco poderia se fazer devir desde uma conversação em circularidade fechada, de uma fusão indistinta em que se perdem as singularidades de dois, agora expressas em-um. Nunca se poderia biografar sem amar e tampouco sem combater. Além de amar, há que se guerrear com o próprio biografado para aplicá-lo a tantos crivos e cortes quantos forem necessários, para recusar-lhe a transcendência e enraizá-lo nas forças de onde julgamos terem brotado seus possíveis. Trata-se, enfim, de um esforço de re-invenção do plano que deu consistência e se fez terra para algo do que aconteceu, do que foi dito, escrito, recusado e mesmo do que foi silenciado. Dizer de uma vida é dizê-la sempre como potencial e em tom de indeterminação. Refere-se a amá-la em suas divergências e disparates a ponto de instituir o sujeito biografado como aquele que fez escolhas diante das bifurcadas possibilidades. Significa transformá-lo em uma espécie de jogador diante do lance de dados que, dispersos no tabuleiro, apontam para as muitas direções coexistentes que o espreitam. Retrata-se uma vida para fazer dela emergir a ética e a estética de um modo de viver; uma vida que, tendo se oferecido como acontecimento, tornou-se desafio a um modo de se tornar humano; uma vida que, ao fim e ao cabo, nos fará saber se esteve à altura de seu destino e vontade de potência.

Em sua sobreposição e incorporação à vida e à obra de Cyro, Liana não se neutraliza. Busca se fazer parte, cede seu calor para que o “isso foi” ainda possa vibrar, e para que, ao unir Amar + Pintar + Combater possa fazer justiça àquele a quem se amou, com quem se aprendeu e viveu, àquele, enfim, que se toma como doador de potência inspiradora, como estrangeiro que pode levar a  mundos ignotos. Cyro é retirado da simples cronologia e também de si próprio através da segunda voz de Liana que não se prende àquela vida como um arquivo a ser resgatado e conferido. Então, uma certa prática da raridade faz com que seja retomado o vivido como princípio das coisas em si vividas, d’aquele momento, d’aquele sorriso, d’aquela morte. As marcas e cores impressas nas telas emergem como rastros de uma cadeia mnemônica e são investidas dos demônios que já andavam a sobrevoar no espírito de Liana. Tem-se, então, uma biografia como tramada de heterogêneos, de seus matizes, gradações e nuances, enfim, do que há de melhor em benefício da vida.

Ocorre nesta espécie de biografia a suspeita da figura do espelho, uma vez que se sabe que a superfície de um rosto é tão estranha quanto a mucosa que reveste o seu coração. Sabe-se que os olhos vêem aquilo que  se apresenta como superfície do próprio corpo que vê; sabe-se que todo rosto é este estranho que tudo vê e que não conhece a si mesmo senão por algo que o espelhe. Cria-se, pois, uma espécie de caverna de imagens que remete e espelha uma outra e mais outra. Anota-se registros que percorrem um anel tortuoso e formam uma cadeia quebrada. Coloca-se sob prova as intensidades que se fizeram fulgurar nos atos de uma vida. Acompanha-se as telas como saltos que fizemos nos riachos que cortam as planícies e os tempos. Acata-se os vácuos, as lacunas, pois tem-se a noção de que uma vida como um todo se torna para sempre inapreensível. Quantos sorrisos, tristezas, mínimos gestos expressivos não poderão jamais ser lembrados embora tenham feito parte das cenas e tido a força de sintetizar estados d’alma, acionar ou recusar encontros ...

Nas laterais externas das telas, acoplam-se imagens de outros. Estas soam como uma assembléia de almas que podem dizer dos sopros que estavam na fundação das travessias. Podem ser escutadas como vozes que fizeram companhia e amizade naqueles tempos, que intercederam para fazer de uma vida uma enunciação coletiva e um efeito de sua época. Assim, Liana empreende mais uma vez sua fuga de um tempo linear e egóico para nos remeter a um tempo múltiplo e acontecimental, que não pertencendo a ninguém, também é de qualquer um. Destrona-se  o lugar de um Eu soberano para fazê-lo soar como um dos possíveis resultados de algo que o ultrapassa e no qual, entretanto, se encontra desde sempre mergulhado. O tempo biográfico de Liana é desmesurado em possibilidades, descabido nas evidências dos sentidos, tecido pela atmosfera pática e pré-verbal que associa às formas, uma multidão de forças infinitesimais e imperceptíveis que irrompem de sua impessoalidade para se concretizarem em efetiva existência, na qual, entretanto, não se apaziguarão jamais. No acontecimento da vida em nós, sempre somos algo do que acontece, não sendo mais possível a perspectiva da busca das origens e das evidências simples que incidiram sobre nós. Estamos, estaremos e sempre estivemos em um jogo de forças que nos excede e que não nos é de todo apreensível. De uma vida sempre se perde a possibilidade de reencontrar as conexões, os encontros, os bloqueios que, em dado momento, formaram o que em seguida funcionará como evidência. Sabemos que não se pode submeter as condições da existência à lei do “uma vez por todas” e que tudo que se faz e se fez pode retornar não como “aquilo que foi”, mas como um futuro pretérito em que se afirma e inclui todos os possíveis que antecederam o presente vivido. Aqui, nada ressuscita como idêntico ao que foi. Não há ressurreições. Cada elemento pintado que compõe as telas surge de uma espécie de sombra. Carrega consigo a sua própria sombra, testemunha não apenas um longínquo passado, mas se torna coexistente com o próprio presente. Nesta estranha aliança de imperceptíveis, espaço e tempo constroem o próprio princípio da profundidade de uma vida.  Diante deste emaranhamento de elementos e dimensões, Liana lança a linha do tempo para trás, pois sabe que tudo o que se refere a datas, períodos e nomes funcionam tão somente como anzóis para que outras coisas se deixem iscar. Sabe, ainda, que cada tela é sempre como a página aberta de um livro, em cujas entre-linhas rumoreja aquilo que se dispersou, mas que insiste como presença real e invisível, aberta às potenciais leituras.

Oferecendo-nos seu texto sobre Cyro, Liana, paradoxalmente, também oferece o seu próprio que, como espada afiada, escolhe os ouvidos e os olhos certos para ouvi-lo e vê-lo. Trata-se de uma multiplicação de sua posse, de uma partilha, de uma auto-expropriação que se desdobra em ressonâncias de sua longa viagem pelos caminhos da criação. Somos fisgados e tornamo-nos cúmplices. Damos nossos olhos, nossos ouvidos, nossas sensações e palavras para dar a ver a plurivocidade dos dois autores abraçados, sendo que concluímos pensando na dádiva que Liana-Cyro nos facultam de virmos mais uma vez saber de nós próprios.

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* Texto apresentado no evento Cyro:O conciliador de extremos,  promoção do CELPCYRO e da Território das Artes, como parte das comemorações do centenário de Cyro Martins. Na Casa de Cultura Mário Quintana – Galeria Xico Stockinger, 16 de setembro de 2008.

** Psicóloga, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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