" A gente não nasce mulher, se torna mulher"

Simone de Beauvoir

Sexo é uma condição biológica, gênero uma condição psico-social

Judith Butler

"A categoria do sexo é a categoria política que funda a sociedade heterossexual".

Monique Wittig

No livro Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrel, um personagem do romance afirma que não existem apenas dois sexos, mas, no mínimo mais de cinco. Pensando nessa afirmação é que nos propomos fazer algumas reflexões sobre o tema. Seres humanos não são apenas macho e fêmea, enquadrados numa classificação zoológica, como a que elaborou o naturalista sueco Carolus Linnaeus. Os sujeitos homem e mulher, não se restringem à condição do macho ou fêmea, mas ultrapassam esses limites por serem muito mais complexos e imprevisíveis em seu comportamento. Na realidade, são construções bio-sócio-culturais, modeladas por regras e códigos simbólicos e rígidos.

Judith Butler (1956-), Professora de Literatura Comparada e Retórica da Universidaded de Berkeley, Califórnia, em seu livro Problemas de Gênero, questiona a idéia de que seres humanos sejam apenas dos sexos macho e fêmea ou dos gêneros masculino e feminino, conceitos básicos com os quais Freud trabalhou. Butler deseja mostrar que o gênero não é apenas uma construção social, mas também uma espécie de performance, de adoção de uma máscara, representação de um "show" permanente, explicitados com roupas, hábitos, preferências, ademanes e expressões corporais que dissimulam às vezes o mais íntimo caráter de um ser humano.

Vejamos como, tradicionalmente é definido o sexo.

1. Cromossômico : xx ou xy

2. Anatômico : ováro e vagina ou testiculos e pênis

3. Hormonal : estrogênio ou testosterona

E como se define o gênero:

4. Legal : registro em cartório (Maria ou João)

5. Familiar

6. Social

7. Psicológico

8. Desejo

Então, vemos que na determinação do sexo e do gênero, são levados em consideração fatores biológicos os três primeiros e não-biológicos os outros. A distinção entre sexo e gênero, concebida originalmente para contrariar a formulação de que a biologia é o destino, atende à tese de que, embora o sexo seja inalterável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído. Portanto, supondo que a estabilidade anatômica do sexo binário seja imutável, (e atualmente não é), não decorre daí que o conceito de "homem" aplique-se exclusivamente a um corpo masculino ou que o termo "mulher" aplique-se somente a um corpo feminino.

Se pensarmos o gênero apenas como um sistema binário – masculino ou feminino – isto significa que há uma relação mimética, perfeita entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo e é por ele restrito. Porém, quando nos damos conta de que a condição socialmente construída do gênero pode ser radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo masculino como um feminino e mulher e feminino, tanto um corpo feminino como um masculino.

SEXO, GÊNERO, PRÁTICA SEXUAL, DESEJO

Mas, além do aparato genital e do gênero, a identidade pessoal também é constituída de preferências por certas práticas sexuais ( vaginal, anal, oral, outras) e pelo desejo ( por homem, por mulher, por ambos). Assim pensando, a heterossexualidade compulsória imposta pela cultura judaico-cristã, tornou-se um regime de opressão do gênero, a falocracia. E, na interpretação de Judith Butler," a imposição binária da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de práticas sexuais que rompem as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica ".

Nessa linha de pensamento, Monique Wittig (1935-2003) feminista e ativista política francesa, afirma: "a restrição binária que pesa sobre o sexo atende os objetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsória". E assim, chega-se à conclusão de que a derrubada da heterossexualidade compulsória irá inaugurar um verdadeiro humanismo, livre dos grilhões do sexo, aliás como desejava Santo Agostinho, porém através da castidade. Em outros contextos, Wittig sugere que o estabelecimento de uma economia libidinal não falocêntrica, acabará banindo as ilusões do sexo,do gênero e da identidade.

Simone de Beauvoir (1908-1986),vai mais longe quando observa que a exagerada identificação das mulheres apenas com o "sexo", (boca, mamas, vagina, bunda), imagens insistentemente difundidas pelo "marketing" midiático, constitui-se numa fusão do sexo e gênero femininos com características ostensivamente erotizadas dos seus corpos e, portanto, uma recusa em conceder liberdade e autonomia às mulheres, tal como as desfrutadas ( pretensamente ) pelos homens. Pretensamente, dizemos, porque ainda tem razão um algo olvidado filósofo judeu-alemão quando dizia que " A liberdade do homem passa, inevitavelmente, pela liberdade da mulher ". Não existe liberdade a meias, ou só para um gênero.

Se Lawrence Durrel tinha razão ( e a tem) podemos afirmar que se a liberdade não existir para todos os sexos e gêneros e para suas respectivas práticas amorosas, a falocracia, seus preconceitos e discriminações de toda a espécie jamais serão abolidos. E, no mínimo, metade da humanidade se verá excluída de boa parte de suas liberdades sexuais, laborais, amorosas e de plena opinião de pensamento.

Franklin Cunha- Médico
franklincunha@terra.com.br