Políticas da Amizade, de Jacques Derrida Imprimir

Jacques Derrida 1

Suzana Albornoz 2

Este texto busca recuperar a aula dada em 4 de junho de 2008, dentro da programação do curso de extensão Reflexão sobre a amizade, desenvolvido na UNISC, em Santa Cruz do Sul, no qual colaboraram professores das áreas de filosofia, letras, educação e ciências humanas. Trata-se, pois, da memória de uma comunicação oral com objetivo determinado, que não pretende demonstrar conhecimento de especialista nem dominar o estado das discussões e comentários sobre o autor ou a obra considerada, nem sequer finge o conhecimento amadurecido desta obra singular. A exposição oral e o texto correspondente pretendem também ter um sentido de homenagem ao professor Jacques Derrida, falecido em 2004 pouco depois de uma visita ao Brasil, e cujo seminário aberto, sobre Nacionalismos e nacionalidades filosóficas, tive a chance de assistir, anos oitenta, na Escola Normal Superior em Paris.

Embora possa ser considerado como um caminho comum, diferente, pois, do espírito da obra que vamos abordar, pareceu-me conveniente começar por resumir alguns dados biográficos do autor. Qualquer pessoa hoje pode encontrar na rede da Internet, por exemplo, na enciclopédia eletrônica Wikipedia, que Jacques Derrida nasceu em El Biar, Argélia, em 15 de julho de 1930, e faleceu em Paris, em 8 de outubro de 2004, tendo sido um importante filósofo francês. Esta primeira sucinta apresentação já desperta, em quem ouviu falar alguma coisa da trajetória internacional do autor, uma dúvida imediata, se será correto apresentá-lo como filósofo francês. Pois Jacques Derrida nasceu e cresceu na Argélia, numa família da comunidade judaica, tendo sofrido em sua infância a repressão anti-semita. Sua família mudou-se para a França em 1949, onde iniciou o curso superior em 1952, na Escola Normal Superior. Em 1957, casou-se com Marguerite Lacouturière, com quem teve dois filhos. De 1960 a 1964, Jacques Derrida exerceu sua atividade docente na Sorbonne; em 1965, foi chamado para dar aulas na Escola Normal, onde lecionou até 1984, tendo ajudado, em 1983, a fundar o Colégio Internacional de Filosofia. Desde 1984, foi orientador de teses na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, também em Paris, continuando a ministrar seu seminário à rua d’Ulm. Em 1981, fundara a associação Jan Hus, destinada a auxiliar intelectuais dissidentes perseguidos na Tchecoslováquia. Desde 1966, quando participou pela primeira vez de um Colóquio na Universidade John Hopkins, em Baltimore, ligou-se com os EEUU, e em 1986 passou a ser professor de Humanidades na Universidade da Califórnia. Parece evidente que a influência da filosofia francesa nos meios acadêmicos dos EEUU nas últimas décadas deve-se em grande parte ao brilho de Jacques Derrida; e através de sua presença sobre as letras norte-americanas, sua fama e a influência de suas idéias espalharam-se também pelos meios cultos latino-americanos e, em especial, no Brasil.

Além desses dados biográficos mínimos do filósofo Jacques Derrida, e para motivar os alunos _ agora, os leitores, a peregrinarem pelas páginas do livro anunciado, peço licença para referir algumas cenas que presenciei em meu tempo de estudante tardia, em Paris, de 1986 a 1990. São cenas que julgo expressivas da capacidade de amizade do professor Derrida, para além das vaidades acadêmicas, para além de sua obra de filósofo e de escritor, e por isso têm a ver com nossa meditação neste curso.

A primeira cena se passa em manhã de sábado no Colégio Internacional de Filosofia, que funciona no recinto da antiga Escola Politécnica, onde se reúnem e apresentam conferências, debates, encontros e seminários, os mais reconhecidos professores de Filosofia do mundo inteiro. Nessa manhã de sábado, no palco do auditório principal, Jacques Derrida encara um público que se esparrama por todas as filas de assentos e pelo chão, nos degraus dos corredores. O filósofo compartilha a mesa do grande anfiteatro ao lado da escritora Hélène Cixous.3 Cixous expõe e expressa, de forma inspirada e poética, uma maneira feminina de dizer e refletir sobre o fazer literatura. Derrida traduz o discurso da escritora para uma linguagem mais abstrata, aquela considerada como estritamente filosófica. O público entende bem as duas intenções e sorri com espírito ante a performance premeditada de ambos os conferencistas. Sobra a convicção de que Jacques Derrida, arauto da diversidade das linguagens na filosofia, é dos poucos filósofos que reconhece uma forma feminina de discurso e reflexão, e usa de seu talento e prestígio para difundir este reconhecimento.

A segunda cena se passa em sessão do já referido Seminário da EHESS trabalhado no recinto da Escola Normal. Jacques Derrida recebe como convidada especial uma professora israelense, para falar sobre o discurso e a forma de linguagem da Bíblia. A proposta do seminário é deixar ouvir outras linguagens e outras formas de dizer sabedoria e fazer filosofia, não só, mas além da forma greco-latina, e franco-anglo-germânica de filosofia, que tem sido predominante no horizonte ocidental. Ouve-se então a afirmação do direito da imagem e da metáfora para dizer a condição humana e a transcendência.

A terceira cena que lembrei para ser aqui descrita se passa também num auditório da Escola Normal, por ocasião da publicação em francês do livro do filósofo alemão da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas_ O discurso filosófico da modernidade, onde uma das doze conferências se ocupa do pensamento de Jacques Derrida, que Habermas compreende como uma tentativa de nivelamento entre a filosofia e a literatura. Derrida tem a palavra para se defender da interpretação crítica de Habermas, e concentrados nas fileiras de frente do público, seus discípulos e admiradores estão mal-dispostos com as observações críticas do frankfurtiano ao seu mestre. Presente no público, Arno Münster, professor alemão e estudioso de Ernst Bloch, que naquele momento dava um curso no Colégio de Filosofia sobre a Cabala e outras correntes místicas judaicas, tomou a palavra para tentar clarear a posição de Habermas, sem faltar em nada ao respeito a Derrida, o que, certamente, já estava assegurado também pela inserção da conferência de Habermas no livro em que analisa alguns dos mais importantes discursos filosóficos dos séculos XIX e XX _ de Hegel e algumas correntes hegelianas, a Nietzsche, Heidegger, Adorno e Horkheimer, Bataille, até Foucault _, entre os quais inclui Derrida.4 Arno Münster associava o discurso de Derrida à tradição judaica, tentando erguer por aí a ponte que deveria uni-lo ao universo de Habermas, não sendo talvez bem compreendido pelo público, muito disposto emocionalmente a tomar partido em defesa do mestre. Após as observações de Münster, os discípulos postados em bloco nas primeiras filas parecem prontos para forte oposição; colegas e discípulos, amigos e menos amigos, os virtuosos, os interesseiros e os bajuladores, talvez até alguns inimigos disfarçados, todos aqueles dos quais este curso vem falando e procurando pensar, quiseram manifestar-se, ouvindo-se ao mesmo tempo muitas vozes com ímpeto e pouca ordem. Ante esse evento, Derrida se ergueu da cadeira, de modo a impor-se a todo o auditório, e pediu silêncio, dizendo ao público, predominantemente francês e de seu clube de fãs, que o Prof. Münster sabia do que estava falando, portanto, convinha que o ouvissem atentamente. Jacques Derrida tomava a defesa do professor visitante contra seus próprios amigos, atitude que despertou a admiração de todos os que observávamos a polêmica de uma margem externa.

E a quarta cena se passa numa área mais reservada e à sombra, num canto do café da esquina próximo ao prédio do seminário, onde o professor espalha sobre a mesa as páginas rabiscadas pelo estudante, orientando como ele deve continuar a produzir sua tese. Quem se encontrava exatamente naquele processo, com o mesmo problema, teria como tive a paciência de permanecer por ali em silêncio e, discretamente, ouvir a orientação, ocasião para avaliar ao mesmo tempo o talento e a paciência do professor.

De cenas como essas formei a convicção de que Jacques Derrida soube ser um verdadeiro amigo _ de seus alunos, discípulos, colegas, dos colegas estrangeiros, bem como das suas colegas. A meditação sobre a amizade que percorre o livro Políticas da amizade deve ser vista como enraizada nessa vivência da amizade, que o levará a questionar a tradição que tem afirmado o conflito entre a quantidade e a qualidade, o número e a verdade dos amigos.

Para bem preparar a compreensão de Políticas da amizade, além de alguns dados biográficos e essas imagens da vida acadêmica parisiense, talvez ainda devesse fazer, embora breve, uma introdução à obra e pensamento de Jacques Derrida, enveredando pelos traços gerais do seu empreendimento literário-filosófico. Para tanto, pensei retomar, olhando embora de outro ponto de vista, o esquema de recente conferência em que foram indicados, como principais da contribuição de Jacques Derrida para a filosofia contemporânea, os conceitos de desconstrução, como procedimento metódico; de jogo, como procedimento da crítica da razão; o de diferença 4, como princípio fundamental; o de presença, como característica do pensamento metafísico; e o de escritura, como metáfora da filosofia e da compreensão do mundo. Decidi, contudo, deixar de lado a preocupação com esses importantes aspectos da obra filosófica de Derrida, por reconhecer como outra minha tarefa na situação concreta desta aula. Tenho consciência de que minha tarefa é manter viva entre os alunos deste curso a meditação sobre a questão da amizade, que tem sido encaminhada pelos colegas que aqui já se apresentaram, através do modo de pensar de grandes autores, entre os quais devo incluir Jacques Derrida. Minha promessa foi a apresentação específica do livro Políticas da amizade, publicado em 1994; portanto, de agora em diante, procurarei limitar-me a esse livro, o que já é certamente tarefa excessiva para o tempo de que dispomos, e esta apresentação não chegará a dar conta de todo ele.

O livro Políticas da Amizade realiza uma longa e difícil revisão, ou melhor, uma re-visitação da filosofia, através da citação de citações e comentários das citações de citações, do marco mais famoso e importante da clássica reflexão sobre a amizade, no eixo principal da história da filosofia ocidental, em seu caminho de dois mil e quinhentos anos, desde o Lysias de Platão, e as Éticas de Aristóteles, até Nietzsche e Sartre. Esta re-visitação, mais que uma busca de informação e nova compreensão, o que sem dúvida também é, acaba por desconstruir, quem sabe, reconstruir e, às vezes, mesmo, destruir o que se tem pensado sobre a amizade. Para tanto, re-visita a filosofia ocidental sobre a amizade, a mesma que se tem aberto para nossa informação e meditação neste curso, e parte de Montaigne, dele indo para trás, a Cícero e Aristóteles, este que permanecerá no livro como referência perene, espécie de farol para a viagem de volta, dos antigos aos cristãos e aos modernos e, finalmente, aos pós-modernos.

Jacques Derrida explora e comenta os textos que falam do amigo e também do inimigo, em autores diversos como Hegel, Nietzsche, Heidegger, Carl Schmidt, mostrando como a filosofia sobre a amizade tem-se valido também da consideração do seu oposto para compreender seu objeto. Para realizar esse périplo, dos antigos pensadores gregos aos alemães e franceses do século XX, sem perseguir uma exposição propriamente cronológica, nosso autor passa pela filosofia cristã do amigo de Deus, Santo Agostinho, à filosofia moderna do amigo do homem, Immanuel Kant, relembrando toda a história da filosofia sobre a amizade, que é contada, construída e desconstruída, em torno de um ponto, enquanto a questão se mantém aberta.

Da história da filosofia sobre a amizade no ocidente, Derrida não apenas pinça, mas seleciona e ilumina, valorizando, uma frase em particular, que destaca como núcleo desta herança de pensamento, e transforma-a em estrela que irradia e deixa-se revirar em múltiplos sentidos, resultando, em certo momento, no seu reverso. A frase revirada é aquela com que o velho sábio se queixa quanto às amizades ordinárias e costumeiras, “em relação às quais é preciso empregar a palavra tão familiar a Aristóteles: ‘ó meus amigos, não há amigos’”. 5 Essa frase opera como fio condutor da reflexão na obra em questão, que se tece em torno dessa palavra do velho Montaigne que relembra Aristóteles, e é na despedida de sua vida que o velho pensador se exclama “O mes amis, il n’y a nul amy”. Esta exclamação, segundo Derrida, aponta para a morte dos amigos; para o fato de que o amigo morto vive através da lembrança do amigo sobrevivente. Sobreviver ao amigo, fazer-lhe o discurso de despedida e homenagem_ assim como Derrida faria, mais tarde, a Lévinas _, e manter sua memória enquanto sobrevivente, é ao mesmo tempo a essência, a origem e a possibilidade, a condição de possibilidade da amizade; esse tempo de sobrevivência é a dimensão da amizade.6 Nessa associação da amizade com a morte do amigo, o mesmo que lamenta a ausência da amizade, Derrida não traz propriamente uma novidade à filosofia sobre a amizade; apenas refaz os passos dos filósofos de todos os tempos, mas os refaz como quem destrói o tom, a clave, a solene certeza, mesmo o lamento do indivíduo, para reconstruí-la em outro nível, como quem reconstrói, após desconstruir. Parece dizer o mesmo, mas é como se nunca antes se houvesse ouvido dizer o que já dissera Cícero, que pela amizade, pela memória do amigo “os ausentes são presentes (...) e, o que ainda é mais difícil de dizer, os mortos vivem”, 7 citação que é a epígrafe da obra aqui analisada.

A referência constante permanece, ao fundo, Aristóteles, mediado pela citação de Montaigne: “Ó meus amigos, não há amigos”. Os intérpretes lembram a contradição que aparece, de saída, nesta frase, nessa espécie de lamento. Se Montaigne se dirige a seus amigos uma vez que pode começar por dizer “Ó meus amigos”, como poderia querer, ele ou Aristóteles, afirmar que não há nenhum amigo, ou seja, negar a existência de amigos? Mas em toda a tradição da questão _ como diz Derrida: de Aristóteles a Blanchot _, houve sempre uma alternativa para sair dessa contradição. A alternativa, que se revelou também ser uma saída do ponto de vista moral e educativo, foi uma interpretação piedosa que acabou ofuscando a primeira, uma vez que Aristóteles foi predominantemente interpretado como se houvesse dito: “Quem tem muitos amigos, não tem nenhum amigo verdadeiro”. Os especialistas jogam com essa distinção, entre a interpretação que mantém a contradição, como no lamento de Montaigne _ “Ó meus amigos, não há nenhum amigo” _, e a interpretação que predominou nas versões das palavras de Aristóteles, a interpretação piedosa que o traduziu como preocupado com a verdade, com o verdadeiro laço de amizade, dizendo “quem tem muitos amigos, não possui nenhum amigo verdadeiro”. Nesta segunda interpretação que, como também em outras questões relativas aos vocábulos gregos, tão múltiplos e ricos de significados, parece depender de um indeciso detalhe de escrita _nesse caso, do modo como se escreve um ômega, encontra-se a pergunta pelo que é importante na amizade, pelo que é a amizade, ou seja, pelo que é a verdadeira amizade.

No centro de Políticas da amizade 8, o Capítulo 8 faz uma espécie de revisão desse debate. A maioria das citações ao longo da história da Filosofia, que se referem a esse ponto em Aristóteles, toma como referência Diógenes Laércio, que Derrida consultou em diversas traduções 9 .Chama a atenção para o fato de que a citação de Aristóteles, referida por Diógenes Laércio, que também está ainda no centro da história da frase, em Montaigne, não se encontra no livro VII da Ética, como foi indicado por Laércio; não se encontraria no livro VII da Ética a Eudemo, nem no livro VII da Ética a Nicômaco; é claro que isto exige uma pesquisa detalhada, pois têm sido muito diversas as formas de ordenar os livros das Éticas, em diferentes edições. Essa tradição poderia ser pensada, pois, como uma tradição de citação, e não como afirmação de um pensamento de autoria original comprovada. A frase é situada no contexto da reflexão sobre as amizades comuns, lembrando-se a distinção feita por Aristóteles10, entre as amizades perfeitas, aquelas que se criam entre os homens virtuosos, e as amizades comuns, imperfeitas, movidas por algo outro e não pela virtude, seja pelo interesse e a utilidade, seja pela busca do prazer, feitas também considerações que distinguem o afeto pelos homens enquanto homens e a afeição pelos homens enquanto indivíduos.11 Pergunta Derrida12: qual mesmo a diferença entre a versão canônica e a versão redobrada?13 A primeira versão _ a que se abre com a interjeição Ó, com o Ó vocativo, que comporta o que alguns chamariam de “contradição performativa”, pois como alguém pode dirigir-se a seus amigos dizendo-lhes que não há amigos?_, que é a frase de Montaigne, fala aos amigos, enquanto a segunda versão, a frase de Aristóteles, interpretada a partir de outro modo de escrever o ômega, fala dos amigos. Não é demais lembrar que mesmo a versão canônica da frase, a da interjeição, não diz que “não há nenhuma amizade”, mas sim, que “não há nenhum amigo”.

Á medida que rememora a frase de Montaigne que cita Aristóteles, em sua longa jornada pela história ocidental da filosofia em torno da amizade, passando pelo romano Cícero, Derrida nos transporta para o outro lado do rio do tempo e do pensamento, levando para perto, quase para ainda há pouco, para perto de Nietzsche, quando o “louco solitário ri com seus amigos solitários”. Em Nietzsche, a questão é invertida, ou melhor, revertida, e da reflexão sobre a amizade, sobre a memória sobrevivente do amigo morto, transforma-se na meditação sobre o inimigo, sua presença e sua ameaça. É aí onde Derrida vai apoiar-se para reclamar a dimensão política da amizade, indicada no título Políticas da amizade. Onde Montaigne citava Aristóteles para lamentar que “não há amigos”, sendo que, pela interpretação inspirada em Cícero, identificava-se esse lamento com a sobrevivência ao amigo morto e a lembrança da morte dos amigos, sua memória e seu testamento, Jacques Derrida vai inovar, propondo abrir-se a consciência para a dimensão coletiva e política do luto e da sobrevivência aos amigos. Para fazer esta passagem, este salto, do ensinamento sobre o individual para o que nos leva a outro registro de reflexão sobre a história, a ocasião é “o louco”, o primeiro que contesta a história clássica da reflexão sobre a amizade. “Amar seus inimigos? Creio que este ensinamento foi bem aprendido: hoje em dia se aplica de mil maneiras”.14 A cadeia da citação de “Ó meus amigos, não há amigo” formou um imenso rumor através de toda a literatura filosófica do ocidente, de Aristóteles a Kant até Maurice Blanchot, passando por Montaigne e Nietzsche que, pela primeira vez, iria parodiar a célebre frase lamentativa, afirmando de maneira inversa, ou seja, que inverte e vira do avesso, mas também transborda e provoca uma espécie de terremoto, destruindo a segurança das interpretações da tradição. Esta revolução causada por Nietzsche, da qual, para continuar com a metáfora geológica, podem-se perceber as ondas sísmicas, segundo Derrida, constitui uma revolução política, mais discreta que as outras revoluções assim chamadas, mas tão perturbadora e revolucionante quanto as maiores, pois é uma revolução “do” político15.

Na frase de Nietzsche a voz se levanta para contestar, não para repetir nem citar nem lembrar, mas contestar, pode-se dizer, mesmo, para protestar. Na história daquela citação de citação, no rolar contínuo de seu acontecer e desenrolar-se, o levante da voz de Nietzsche representa um corte, uma interrupção. O protesto imprimiria aí a marca de um acontecimento sem precedentes; na realidade, esse acontecimento, mais que interromper, lembra a ruptura inscrita na palavra que interrompe. Após esse acontecimento, do outro lado da cadeia de citações, Derrida quer relançar a questão da amizade como questão do político.16 O contra-testemunho de Nietzsche aparece com um sentido de excesso, uma onda irresistível do demasiado, da desmedida.“Talvez então um dia chegará a hora da alegria, quando cada um dirá: ‘Amigos, não há amigos!’ exclamava o sábio agonizante; ‘inimigos, não há nenhum inimigo!’ exclama o louco vivo que sou eu”17.

Pelas muitas páginas de grande expressividade, depois de mergulhar nos textos de Nietzsche, e relembrando, desse mesmo lado do rio da reflexão, a história da filosofia na senda de Hegel, Hobbes, Maquiavel, Heidegger, não em perfeita ordem cronológica, talvez tão pouco em qualquer ordem muito clara, Jacques Derrida se detém na consideração dos textos de Carl Schmidt (1888-1985), espécie de inimigo que faz a filosofia do inimigo, à sombra do amigo ausente em “Ó mes amis, il n’y a nul amy”. Para Schmidt, o político como tal, nem mais nem menos, deixaria de existir se não houvesse a figura do inimigo, e sem a possibilidade determinada de uma guerra real. Perdendo o inimigo, perde-se simplesmente o político mesmo, e tal seria o horizonte do nosso século, depois das duas guerras mundiais.18 A distinção específica do político à qual podem ser referidos os atos e os motivos políticos, é a discriminação entre o amigo e o inimigo.19

Schmidt remete à distinção entre público e privado, em cuja moldura suas idéias se acomodam: “Não se poderia, razoavelmente, negar que os povos se reagrupam conforme à oposição amigo-inimigo, que esta oposição permanece uma realidade em nossos dias e que ela subsiste no estado de virtualidade real para todo povo que tem uma existência política. Não é o concorrente ou o adversário que, no sentido geral do termo, é o inimigo. Também não é o rival privado, pessoal, que se odeia, e pelo qual se tem antipatia. O inimigo só pode ser um conjunto de indivíduos agrupados, enfrentando um conjunto da mesma natureza e engajados numa luta pelo menos virtualmente possível”.20 O contrário de amizade, em política, segundo Schmidt, não é a inimizade, mas a hostilidade. Primeira conseqüência: o inimigo político não seria forçosamente inamistoso, não alimentaria necessariamente sentimento de inimizade contra mim, e reciprocamente. Além disso, o sentimento não teria nada a ver, nem a paixão, nem o afeto em geral. “Eis uma experiência do amigo-inimigo em sua essência política, totalmente pura de todo afeto, ao menos de todo afeto pessoal, a supor que haja outro. Se o inimigo é o estrangeiro, a guerra que lhe faço deveria permanecer, no essencial, sem ódio, sem xenofobia. E o político começaria por esta purificação, pelo cálculo desta purificação conceitual. Posso também fazer a guerra a meu amigo, uma guerra em sentido próprio, uma guerra própria e sem piedade. Mas sem ódio”.21

Politiques de l’amitié aborda pouco a amizade tal como aparece na filosofia cristã, onde seria associada ao amor ao próximo como um afeto universal, mediado pelo dever ou pela graça. Mas esta lacuna não significa pouca estima. O companheiro de pátria africana, Santo Agostinho, o amigo de Deus, é lembrado por Jacques Derrida, para quem o livro IV das Confissões mereceria uma “interminável meditação”. Santo Agostinho discorre sobre o amigo, o par de amigos, o luto e o testamento, o fluxo e economia das lágrimas ante a morte do amigo, e promove a ‘infinitização cristã’ da amizade e da fraternidade espiritual, que continua, além de toda conversão.22

Mais de um milênio mais tarde, mas ainda na continuidade da filosofia cristã, outro grande marco do pensamento sobre a ação humana e a moral onde se deixa pensar a questão da amizade, na filosofia moderna, o amigo dos homens, Immanuel Kant, é também objeto de reflexão em Políticas da amizade, por páginas que, infelizmente, não será possível resumir aqui, por isso destaco apenas a idéia que me pareceu a mais importante, que é a do respeito. Derrida ressalta no pensamento iluminista de Kant a dimensão do respeito como condição para a verdadeira amizade. Com o rigor, a força e a originalidade que Kant confere a este conceito, o respeito introduz uma nova configuração na história filosófica da amizade. O autor faz notar, de passagem, que as duas palavras, respeito e responsabilidade, que se ligam e provocam sem cessar, parecem fazer referência, a primeira, em língua de família latina, à distância, ao espaço, ao olhar, e a outra, ao tempo, à voz, à escuta. Não há respeito, como seu nome o indica, sem a visão, para o que é necessária uma certa distância, um espaço próprio, um espaçamento; e não pode haver responsabilidade sem resposta, sem o que falar entrega ao ouvido, esse receber que toma tempo.23

Kant foi o primeiro que, com rigor crítico, procurou cercar o conceito próprio do respeito amistoso; não pode haver amizade sem “respeito do outro”, e o respeito de amizade é inseparável de uma “vontade moralmente boa”, como na tradição da virtude, da próté philía, da amizade virtuosa, entre os homens virtuosos, tal como aparece no pensamento canônico da amizade, de Aristóteles a Cícero e Montaigne. Por outro lado, o respeito não se confunde puramente com o respeito moral, que é devido à sua causa, a lei moral, e encontra na pessoa apenas um exemplo. Respeitar o amigo não é exatamente respeitar a lei; pode-se ter amizade por uma pessoa, exemplo do respeito à lei moral; mas não se pode ter amizade pela lei, que é a causa do respeito moral.24

É ainda no próprio Aristóteles em quem Derrida vai encontrar a ligação entre o justo, a amizade e a partilha comunitária; desta ligação o filósofo tira as conseqüências para a amizade: por um lado, a amizade é irredutível ao instrumento, a toda dimensão técnica; por outro lado, a amizade se destina à democracia. Não que isso seja firme como uma lei, mas seria uma tendência, uma relação proporcional; porque há mais coisas comuns lá onde os cidadãos são iguais, e a partilha comunitária implica mais lei, mais contrato, mais convenção, logo, a democracia é mais favorável à amizade do que a tirania. A relação paternal é monárquica, e a relação entre o homem e sua mulher é aristocrática, mas o político, que muito freqüentemente é traduzido por democrático, é a relação entre irmãos, a igualdade da fraternidade. A politeia é coisa de irmãos.25

Aparece assim o lugar da política na hierarquia ou arquitetônica proposta por Aristóteles. De um lado, a obra política, o ato ou a operação propriamente política produz o máximo de amizade possível. Esta lei, ou melhor, esta tendência parece ao mesmo tempo associar a amizade à política, em sua origem como em seu fim. Se a política realiza sua obra no progresso da amizade, a amizade seria originariamente e inteiramente política.26 Mas as coisas não são tão simples, e estamos no centro de muitas contradições. Não é possível esperar que a vida política se paute exclusivamente sobre a amizade no seu primeiro sentido, de amizade fundada sobre a virtude. E assim, o autor reafirma, embora no seu modo de reafirmar aberto à ambigüidade e à multiplicidade de sentidos, que há uma ligação intrínseca entre a amizade e a democracia. A tradição que se impôs na história da filosofia, embora apresente certas dúvidas, relativas ao cálculo das quantidades de amigos com os quais podemos nos sentir cúmplices e identificados, tendo os mesmos fins, reconhece a afinidade entre amizade e democracia. Se na tirania a amizade e a justiça têm um papel muito fraco, ocorre o contrário na democracia, onde domina a relação entre irmãos, a relação fraterna.27

A propósito da relação fraterna e da fraternidade, encontra-se no livro o Capítulo 9, onde fica provado que Derrida é de fato um filósofo francês em todo o sentido da palavra. O Capítulo 9 aborda a fraternidade, tal como era prezada pelos cidadãos no século XVIII, da Revolução Francesa, quando era parte do lema que se imortalizou _ Liberdade, Igualdade, Fraternidade _, dando a cor da faixa vermelha da bandeira da França.28 Com o título “Em língua de homem, a fraternidade...”, o capítulo trabalha o tema usando como inspiração e mediação textos dos dois grandes historiadores da História da França, Edgar Quinet e Jules Michelet _ eles que nos dão também o exemplo de uma amizade de excelência, e destes autores são as citações escolhidas como epígrafes.29 Em ambas, Quinet como Michelet associam a França à cultura da fraternidade, com sua marca da herança romana continuada na cristã. O autor pondera que é difícil, talvez impossível identificar o conceito de fraternidade com o de philía dos gregos, se é que sabemos ainda o que era para os gregos philia, mas ainda é problemático aproximá-lo de freundschaft, friendship, ou mesmo, amitié, nas línguas modernas.

Ao final do livro, quando volta a perguntar quanto à ligação da amizade com a democracia, Derrida surpreende ao afirmar que, ante as políticas de amizade, ou, digamos, ante a amizade vista sob o ângulo das virtudes comunitárias, a questão principal é a seguinte: Por que na herança principal do pensamento ocidental sobre a amizade se descobre (ou melhor, diria eu, se cobre) uma dupla exclusão do feminino? Como, nesta tradição de pensamento sobre a amizade que se impôs, foi excluído o feminino, a heterossexualidade, a amizade entre mulheres, ou a amizade entre homem e mulher? E por que a heterogeneidade entre eros e philia?30 São perguntas que permanecem, evidentemente, sem resposta, e não sabemos se será um dia possível respondê-las. Mais uma vez, como havia previsto, esta exposição é insuficiente, e cada uma dessas questões mereceria um cuidado muito mais longo, tanto para acompanharmos mais de perto as reflexões do autor do livro como para avançarmos nas questões mesmas. Mas nosso debate agora recém começa, e este encontro deve ser apenas um começo de aproximação a essa obra, que se acrescenta de modo especial às aulas que recebemos antes, sobre Cícero, Aristóteles, Platão, Montaigne...


Alguns livros de Jacques Derrida publicados em português

Gramatologia. Perspectiva, (1973) 2004.

Escritura e a diferença. Perspectiva, (1971) 2002.

Do espírito. Papirus, 1990.

Paixões. Papirus, 1995.

A voz e o fenômeno. Jorge Zahar, 1994.

Espectros de Marx. Relume-Dumará, 1994.

O olho da universidade. Estação Liberdade, 1999.

A religião. Estação Liberdade, 2000.

Mal de arquivo. Relume-Dumará, 2001.

As margens. Loyola, 2002.

Políticas da amizade. Campo das Letras, 2003.

Adeus a Emanuel Lévinas. Perspectiva, 2004.

Papel-máquina. Estação Liberdade, 2004.

Pensar a desconstrução. Estação Liberdade, 2005.

A farmacia de Platão. Iluminuras, 2005.

Cartão Postal. Civilização Brasileira, 2007.

Força de lei. Martins Fontes, 2007.


NOTAS

1. Politiques de l’amitié, de Jacques Derrida, editado em Paris pela Galilée, 1994, foi traduzido em Portugal como Políticas da amizade, Campo das Letras, 2003.

2. Suzana Albornoz atua no Departamento de Ciências Humanas e no Programa de Mestrado em Educação da UNISC.

3. A escritora francesa igualmente nascida na Algéria, Hélène Cixous, escreveu um estudo sobre Clarice Lispector, obra traduzida por Rachel Gutierrez, filósofa e escritora gaúcha.

4. Ultimamente, embora mantendo suas diferenças filosóficas, Derrida se aproximou de Habermas, quando ambos concertaram uma ação política em comum, ante eventos internacionais do início do século XXI.

5. Trata-se de différance, talvez traduzível por diferança.

6.Montaigne, “De l’amitié”, in: Essais, vol. I, Cap.XXVIII.

7. Politiques de l’amitié, 1994, 31.

8. Cícero, Laelius de amicitia.

9. Politiques de l’amitié, 1994, edição francesa, p.219-252.

10. Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, Garnier-Flammarion, 1965.

11. A concepção aristotélica de amizade neste curso foi objeto da aula do Prof. Sérgio Schaefer, cap.X deste livro.

12.Derrida, 1994, 222.

13.1994, 240.

14. A palavra é replis, traduzível como prega, dobra, ou recôndito, íntimo e secreto na alma e no coração; de replier, fazer novas pregas, dobrar uma ou mais vezes, concentrar.

15.Nietzsche, Para além do bem e do mal, 216; Derrida, 1994, 43.

4. Derrida escreve do político, indicando o conceito no sentido em que o propõe Claude Lefort (1924 -), pensador do propriamente político.

17. Derrida, 1994, 45.

18. Nietzsche,“Von den Freunden,”in: Humano, demasiado humano; cita Derrida, 1994, 45.

19. Derrida, 1994, 103.

20. Carl Schmidt, apud. Derrida, 1994, 104.

21. Schmidt, apud. Derrida, idem.

22.Derrida, 1994, 107.

23.Derrida, 1994, 213.

24.Derrida, 1994, 282.

25.Kant, Metafísica dos costumes, 2ª. 46-47; cf. Derrida, 1994, 283.

26. Ética a Eudemo, 1241b 30. Derrida, 1994, 223/224.

27. Conferir Derrida, 1994, 225.

28.Derrida, 1994, 309.

29.Derrida, 1994, 253 e ss.

30.Trata-se de excertos dos ensaios “Porque o dogma da fraternidade humana foi inscrito tão tarde no direito civil e político”, de Edgar Quinet, in O cristianismo e a Revolução francesa (1845); e de O povo (1846), de Jules Michelet.

31.Derrida, 1994, 308.