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Contribuições do CCYM

Desconsolo

 

Cristina Macedo

 

 

Alguns meses se passaram desde que peguei o trem. Eu, sem destino.

Naquele dia, passei horas sentado na poltrona que me coube: tempo suficiente para assimilar o novo personagem.

Desci do trem numa praia. Lugar pequeno e - imaginei - apropriado. Fui direto ao mar, entrei na água vestido, como um louco.

Mais tarde, enquanto, ainda molhado, caminhava pela cidadezinha, exercitei meu olhar perdido. O silêncio que planejara não era sacrifício. Desde o acidente, tenho falado apenas o necessário. Em minha nova vida, escolhi ser mudo.

Não demorou para que as pessoas estranhassem minha presença. Algum tempo mais e estava na delegacia. Sem documentos, cercado por policiais que faziam muitas perguntas e me observavam. Eu, calado, olhar distante. Nenhuma pista. Espanto.

Depois da delegacia, o hospital. Vários médicos me examinaram. Diagnóstico: doente mental. Eu me esforçava para que pensassem que sim. Internaram-me.

No início, passava quase todos os dias olhando pela janela. Algumas vezes, passeava pelo gramado verde-musgo do hospital. Outras, ia para a capela e tocava piano por horas, lembrando Mozart e Beethoven.

Com o passar do tempo, a solidão angustiava-me. E, ao contrário do que imaginara, estava ficando difícil permanecer calado.

Hoje, alguns meses depois de minha internação, resolvi que falaria. A enfermeira aproximou-se com a pergunta de sempre:

- Podemos conversar, hoje?

- Podemos sim. Sobre o que? - respondi.

Em poucos minutos, funcionários e pacientes estavam a minha volta, ansiosos. Eu tinha recuperado a fala! Não era mudo! Logo quiserem saber minha história.

Contei a verdade. Não suportava mais aquela farsa. Falei sobre o acidente que matou minha mulher e minha filha, sobre ter sido pianista que amava os compositores clássicos, sobre a família.

E, como num vômito, falei de minha impossibilidade de retomar a vida. A única saída era recomeçar do zero, em outro lugar, sem identidade, uma pessoa reinventada.

No entanto, tudo foi em vão. Olho para as pessoas e sinto desprezo. Em algumas, vejo aquele olhar de piedade do qual eu tentava fugir.

Não tem solução. Tudo voltou a ser como antes, em especial meu desespero. Não consigo mais viver...

Olho para a janela aberta. O que me esperará dez andares abaixo?

 

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Romeu e Julieta e o Setembro Amarelo

 

Graziela Stein de Vargas

 

Esse clássico da literatura foi escrito há mais de 400 anos e até hoje segue sendo representado no teatro e nas telas. Entretanto, não é o amor romântico que observo nessa obra, mas sim o amor tóxico. 

Romeu era apaixonado por Rosalina e sofre Depressão por seu amor não ser correspondido. 

Esse tipo de amor romântico e seu sofrimento era chamado de Melancolia, no passado era assim a definição de Depressão.

Romeu, entretanto, rapidamente se esquece de Rosalina e se encanta por Julieta numa mistura de paixão, impulsividade e juventude.

Muitas mudanças hormonais somadas a um cérebro imaturo são os grandes gatilhos para os desastres do coração.

Romeu consegue seduzir e convencer Julieta a consumar seu amor tendo sua primeira relação sexual, o que era inadmissível para ambas famílias.

Confissões e brigas são muitas nessa obra, o que é bem característico de reações secundárias à imaturidade juvenil.

A história segue e depois de muitos desencontros, Julieta, vendo que seu amado havia cometido suicídio, decide suicidar-se também, configurando uma grande tragédia entre as respectivas famílias e no âmbito da fantasia juvenil.

Atualmente, cada vez mais vemos as taxas de tentativas de suicídio aumentarem em todas as idades, mas preocupa o aumento expressivo entre jovens e crianças, essa sim, uma grande tragédia da vida real. 

Sabemos que o suicídio tem, entre suas principais causas, a Depressão, uma doença que tem tratamento, porém 60% jamais consultou com um profissional da saúde mental. 

Não podemos glamorizar o suicídio, muito menos, romantizá-lo, mas sim divulgar quanto precisamos estar atentos às pessoas e combater o preconceito com o tratamento mental. 

Tratar as causas de suicídio é a forma de salvar vidas, de salvar nossos Romeus e nossas Julietas.

 

Origem do Setembro Amarelo: https://gntech.med.br/blog/post/origem-setembro-amarelo-prevencao-suicidio

 

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ESCRITA TERAPÊUTICA

As artes e as terapias da alma caminham juntas. E a Dra Graziela vivencia isso belamente. Está, pois, falando com conhecimento científico e com a experiência pessoal de quem aprecia e cria manifestações artísticas.(MHM)

                                                                                  Graziela Stein de Vargas

          Faz parte do olhar integrativo a expressividade da alma através da Arte, pois a Arteterapia pode ser integrada com a prática da Psicoterapia. Busco colocar técnicas que vieram da Arte para auxiliar no atendimento aos pacientes, desta maneira, além de trazer uma leveza ao atendimento, traz a possibilidade do paciente se experienciar usando técnicas artísticas no contexto de sua terapia, desde formas mais sutis como certas técnicas da escrita terapêutica, até formas mais explícitas de Arte como a pintura.

          A escrita terapeutica é a principal técnica que utilizo dentro da Psicoterapia.

       Escrever de forma terapêutica é o exercício cerebral mais complexo que existe, através dele podemos tanto estimular o cérebro quanto auxiliar nossa mente a processar emoções. O córtex é ativado e diversas regiões se conectam como a região temporal, onde está a memória, a região frontal e pré frontal responsável pelo planejamento, a região occipital, onde se encontra a visão, entre outras que se conectam com o sistema límbico responsável pelas emoções que sentimos.

          Principais benefícios da Escrita Terapêutica

1- promove a auto-reflexão

Esse exercício mental aprofunda o conhecimento sobre si mesmo gerando maior compreensão sobre as próprias necessidades, dificuldades e qualidades. 

2- estimula a inteligência emocional

Pensar sobre quem somos e o que sentimos é uma forma de provocar nossa mente ao raciocínio do subjetivo e desta forma crescermos emocionalmente. 

3- possibilita o autoconhecimento

Quanto mais pensamos de forma reflexiva sobre nós mesmos, mais somos capazes de encontrar respostas sobre quem somos. 

4- promove o alívio da raiva e outras emoções

Projetar no papel a emoção da raiva nos obriga a refletir sobre ela ao invés de descarregar muitas vezes em outra pessoa, além de evitar o risco de nos arrependimento depois... 

5- possibilita a catarse

Descarregar as palavras em uma folha é uma alternativa saudável para liberar nossas emoções e não reprimir e negar o que sentimos, auxilia em ter mais saúde emocional. 

6- estimula o exercício da memória

Muitas vezes no ato de escrever e refletir sobre o que sentimos e pensamos precisamos acessar nosso álbum de recordações pessoais e isso se torna um exercício para a memória. 

7- organiza as ideias

Parar para pensar exige uma organização mental que, mesmo se estamos confusos, a medida que vamos escrevendo e lendo, vamos colocando as ideias no lugar, assim podemos ler e organizar até que tudo tenha uma ordem melhor.

8- possibilita maior clareza mental

O papel é um rascunho que tem a função de treinar possibilidades para depois refletir e decidir prioridades.

 

9- promove a livre expressão em oposição a repressão dos sentimentos

Reprimir as emoções pode ser muito tóxico e danoso para o organismo, escrever sobre o que sentimos é uma forma de não acumular sensações que não foram processadas.

10- promove a ressignificação da própria história.

          Esse é um exercício terapêutico que busca compreender e acolher nossas dores, auxiliando a construir o quebra-cabeça de nossa história até que possamos contá-la de forma inteira, honesta e compreendendo onde chegamos e quem somos. 

          Algumas características da Escrita Terapêutica compreendem refletir sobre as próprias emoções. Alguns exemplos de exercícios práticos, que podem ser feitos através dessa técnica, são possíveis de serem realizados sozinho, mas o ideal é que sejam interpretados por Psicoterapeuta, neste caso, com formação prévia em Psiquiatra ou Psicologia.

          A seguir, alguns exemplos dessa técnica muito especial que une Psicoterapia e Arte. Cada um deles possui instruções específicas conforme a necessidade terapêutica e o perfil de cada paciente:

1- escreva uma carta para seu pai/ mãe/ ambos/ outro familiar

2- escreva uma carta para um amigo que te magoou

3- escreva uma carta para você criança

4- escreva sobre o pior dia de sua vida

5- escreva sobre um desejo/ um sonho que queira realizar

6- faça uma lista do que irrita você

7- qual é o seu pior medo e por quê?

8- escreva sobre uma culpa ou arrependimento

9- escreva para o grande amor da sua vida

10- escreva uma carta para si mesmo que será aberta em 10 anos.

                                                                                                        Porto Alegre, dezembro de 2020


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Graziela Stein de Vargas* 

graziela

Graziela e seu filho Conrado

 

1. Toda mãe é feliz
2. Toda mãe é igual
3. Mãe é santa
4. Mãe vive para o filho
5. A gestação é maravilhosa

(leia mais)


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OUTUBRO AZUL E NOVEMBRO ROSA


 

            Fugindo do que seria esperado - enfatizar a campanha Outubro Rosa para os cuidados com as mamas -, Dra Graziela subverte expectativas e faz valer um recurso especialmente expressivo - fases da vida e arte de Pablo Picasso - reavivando a questão e efetivamente pintando-a com novas e atraentes cores! (MHM)

Graziela Stein de Vargas*


            Pensar em Outubro Rosa para mim é como pensar em Novembro Azul, ou vice-versa, pois a importância de cuidados com a saúde deve ser igual independente do gênero. Entretanto, um dos motivos dos homens viverem menos, infelizmente, é porque fazem menos exames de rotina que as mulheres. Além disso, a maioria dos homens não tem a cultura que é imposta desde cedo às mulheres e, para nosso bem, desde a menarca adquirimos um olhar voltado para a saúde feminina. Desde cedo precisamos ir ao ginecologista. E seria extremamente importante que, desde o início da adolescência, os meninos fossem acostumados a ir ao urologista, pois essas especialidades assumem o lugar que até a pré-adolescência é por direito e por dever dos pais consultar ao pediatra.

 

            A cultura da saúde deve ser estimulada desde cedo, a prevenção das doenças segue sendo o melhor remédio.

            Além disso, quando penso nas cores rosa e azul, muito além de defender a ideia do gênero sobre as cores, o que me parece desnecessário, até porque o rosa não pertence apenas às mulheres e nem o azul aos homens, lembro-me, acima de tudo das fases rosa e azul de Pablo Picasso.

            Sua fase azul começou um período onde retratava seus sentimentos de tristeza em seus quadros, temas como pobreza e sofrimento tiveram seu tom marcado pela dor, após o suicídio de seu amigo Carlos Casagemas, em 1901. Entretanto, em 1904, Picasso começa a sua fase rosa em Paris. Como não ser feliz em Paris? Picasso pintava palhaços e arlequins, tinha se recuperado do longo período de depressão e voltou a sorrir, a divertir-se. Começou a entender que a vida tem inúmeras facetas e a produzir obras cada vez mais irreverentes para a época, iniciando o movimento cubista.

            Foi escultor, pintor, poeta entre outras funções, e nos inspira até hoje para usarmos todas as cores que quisermos, seja na arte de criar, ousar ou usar.

            Que as cores sejam livres, mas que os movimentos em prol de uma cultura para o desenvolvimento da saúde da população permaneçam e reverberem.

 

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*Graziela Stein de Vargas é médica psiquiatra e membro docente e da Diretoria do CCYM


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SETEMBRO AMARELO


            O surgimento do romantismo literário e a questão do suicídio foram envoltos numa aura esteticamente emocional, criando situações e alimentando perspectivas mórbidas, numa atmosfera até mesmo glamourizada da morte. Werther (1774), de Goethe, explorando esses aspectos, se torna um marco para o Romantismo e desencadeador de inúmeros atos suicidas.
            Em nosso tempo, as motivações e a incidência desse ato diversificam, o preconceito a seu respeito persiste. Acrescem a esse quadro as mazelas da pandemia do Corona Virus. Daí a importância de especialistas abordarem a questão do suicídio com mais freqüência e em diferentes meios para difundir esclarecimentos e orientar atitudes. (MHM)

veronica morrer

 

Sobre o filme Verônica decide morrer - Contribuições do CCYM

Dra. Alcina J. S. Barros e Dra. Graziela Stein de Vargas*

 

            No mês de setembro, o tema “prevenção do suicídio” torna-se foco de campanhas e atividades em todo país. Dentro desse contexto, escolhemos o filme Veronika decide morrer, baseado na obra do escritor Paulo Coelho. O título já nos suscita importantes perguntas internas: o suicida decide morrer ou pelas anormalidades no pensamento, afeto e autodeterminação, a morte é a única conduta tida como possível?


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Dra. Alcina J. S. Barros

 

            Veronika personifica muitas das dúvidas que o suicida nos deflagra, ao retratar uma jovem adulta bonita, independente financeiramente e fisicamente saudável, porém desesperançosa sobre o que os próximos anos lhe trarão. Após a tentativa de suicídio, no início do filme, ela acorda de um estado comatoso em uma instituição psiquiátrica. Além do estranhamento pelo local e situação, Veronika é confrontada com uma notícia inesperada. Interessante observar as sessões com o psiquiatra assistente, nas quais ela passa a se sentir melhor, ou mais aliviada, quando expulsa de si, através das palavras, os sentimentos hostis e temores acerca da vida

            Veronika não culpa diretamente os pais pelo seu estado, mas se queixa de que não teve a liberdade para fazer escolhas no passado, a fim de agradá-los. Apenas ao perder a sanidade (para a sociedade) e a saúde física (para si), ela se permite retomar as atividades que gostava, como tocar piano, explora novas expressões de sua sexualidade e permite que um outro ser humano se aproxime verdadeiramente dela. O objeto de amor, por sua vez, guarda em si um retraimento social e mutismo, como resultados da sua extrema dor emocional, que só é rompido pelo apaixonamento sublime entre os personagens. Veronika, finalmente, se reconecta com a vida através de um novo vínculo.

            O trabalho clínico com pacientes que apresentam histórico de suicídio, seja pelo risco, ideação, planejamento ou tentativa prévia, bem como o acompanhamento de pacientes que foram sobreviventes ao evento - neste caso, os familiares e entes queridos de um suicida que teve êxito - nos evidenciam um potencial terapêutico semelhante ao retratado na obra. Remédios, prescrições, sinais e sintomas, diagnóstico, prognóstico, hospitalização são importantes, porém o vínculo terapêutico entre dois seres humanos representa o elemento primordial na recuperação e melhora do paciente. E o que ele tem de tão especial? A ressignificação conjunta da realidade

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* Alcina J. S. Barros é Doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento;Professora e Diretora Científica do   Programa de Formação em Psiquiatria do CCYM.                          

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Dra Graziela Stein de Vargas*

 

Desde o início o filme monstra uma pessoa que está decidida a suicidar-se, tão decidida que já cria o próprio enredo, premeditando detalhes em sua fantasia de um futuro trágico.

Veronika chega em casa e coloca os comprimidos na boca como coleções de gotas dolorosas e as ingere com álcool... Escreve uma carta para os pais libertando-os da culpa, mas não suporta mais a “loucura coletiva” e mergulha nas profundezas da morte, mas ninguém sabe como será do outro lado...

            Veronika tenta suicídio, mas acorda do coma após 2 semanas... Os pais não entendem e Veronika também não, está com muita raiva de si e do mundo e isso se transforma em dor e em auto-agressão até que o tratamento começa aos poucos a fazer efeito e ela lembra do quanto faz bem sentir-se melhor, lembra da arte, volta a tocar piano, volta a sentir novamente sua alma mais leve.

            “Não deveria deixar essa vida sem saber aonde pode chegar”, frase de umas das pacientes da clínica para Veronika e que nos faz refletir. Também penso que ninguém deveria antecipar sua partida, ninguém deveria abandonar a vida, mas sim aprender com ela e ter o auxílio para reduzir as suas dores, aliviar o sofrimento e saber que o tratamento é a melhor alternativa quando não estamos bem. A paciente melhora e volta a libido, a pulsão de vida e, por fim, Veronika decide viver, passa a decidir pela vida porque não é mais a sua depressão quem decide.

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* Graziela Stein de Vargas é Médica pela Universidad Interamericana de Buenos Aires; Especialista em Psiquiatria e Psicogeriatria. Professora do Curso de Especialização emPsiquiatria do CCYM e sua Diretora Tesoureira.

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Preservar a vida

Dr. Cláudio Meneghello Martins *

 

 

            Setembro, no hemisfério sul, tem o início da primavera como simbolismo maior da reenergização da vida, através do “ressurgimento” de muitas espécies da flora e fauna, com abundância do verde, flores e toda uma cadeia alimentar que propícia o desenvolvimento da vida... Entretanto, também desde 2014, o setembro amarelo passou a fazer parte do calendário de alerta, conscientização e ampliação de atenção sobre medidas preventivas de automutilação e suicídio. A campanha do “setembro amarelo”, desenvolvida pela Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP, em parceria com o Conselho Federal de Medicina, que vem agregando várias outras instituições privadas e públicas, mobiliza ações psicoeducacionais com o objetivo de prevenir e reduzir as taxas de suicídio que teimam em se manter altas. A escolha da cor amarela se deve a que:

 

Em 1994, um jovem americano de apenas 17 anos, chamado Mike Emme, tirou a própria vida em seu Mustang 1968 amarelo. Seus amigos e familiares distribuíram no funeral cartões com fitas amarelas e mensagens de apoio a pessoas que estivessem enfrentando o mesmo desespero de Mike e a mensagem foi se espalhando mundo afora. O carro era um Mustang 68 hardtop, completamente restaurado pelo próprio Mike e pintado de amarelo brilhante, Os pais de Mike, Dale Emme e Darlene Emme, iniciaram a campanha do programa de prevenção de suicídio"fita amarela" ( yellowribbon).

 

  

            Tal evento se tornou emblemático e a cor amarela foi estabelecida para um chamamento de alerta para toda a sociedade. 

            Temos que trabalhar contra o estigma da doença mental (psicofobia), tanto dos próprios doentes, familiares, médicos, profissionais de saúde e a sociedade como um todo. Pois, 99% dos casos de suicídio são cometidos por pessoas com transtornos mentais não tratados, que acabam nesse desfecho trágico. 

            Patologias como depressão, transtorno bipolar, transtorno relacionado ao uso de substâncias lícitas ou ilícitas, esquizofrenia e transtornos de personalidade fazem parte do grupo de risco. Quanto mais precocemente tratarmos tais quadros, interrompemos o curso natural de agravamento da doença, e os padecentes destas e seus familiares podem ter uma vida mais estabilizada e regular. Evitando o agravamento e a possibilidade de suicídio. 

            Alguns mitos e tabus em relação ao suicídio devem ser esclarecidos, para que todos possam estar alerta para essa emergência médica, que pode se manifestar de diversas formas. 

            Importante ficar em alerta quando alguém fizer uma tentativa de suicídio (TS), pois nesse momento está indicada uma intervenção e identificação de doença mental, pois amplia-se o risco de nova tentativa. 

            Manifestações de desesperança, que se apresentam através de pensamentos atuais de suicídio, planos ou meios para tal, devem nos alertar para a necessidade de intervenção médica. Algumas expressões como “eu não desejaria ter nascido”, “preferia estar morto” nos indicam a necessidade de maior atenção e monitoramento dessa pessoa, sendo às vezes necessário uma internação hospitalar. 

            Dependendo da vulnerabilidade prévia da pessoa, situações de estresse podem desencadear pensamentos suicidas, destacando-se separações conjugais, desemprego, crise financeira, migração e prisão estão no “top” do ranking de fatores desencadeantes. Com a pandemia da covid 19, grande parte da população se tornou mais vulnerável, em função de todas as alterações comportamentais, sanitárias e econômicas que a sociedade como um todo foi atingida. Aumentou a necessidade da ampliação de assistência à doença mental, para prevenirmos desfechos trágicos como o suicídio.

 

            É muito importante que se possa evitar meios acessíveis para cometer o suicídio, como armas e medicações. A tentativa de suicídio ocorre por um descontrole de impulso, que é precedido por um pensamento suicida, que pode ser transitório (minutos a horas), agrava-se quando há abuso de substâncias lícitas (álcool) ou ilícitas (maconha, cocaína....)

 

            Quando a pessoa está doente mentalmente, podem ocorrer “falhas” nos mecanismos básicos do “instinto de vida”, que nos faz lutar para preservar a vida. Isso se manifesta com o desejo de morte para acabar com a dor, a infelicidade e para encontrar um alívio. Este é o momento em que há uma queda da resiliência e diminuição do limiar de frustação, que colocam o psiquismo num posicionamento debilitado. 

            A busca de uma assistência médica psiquiátrica e acompanhamento psicológico adequado, propiciam uma reversão de tal quadro. Quanto mais precoce intervirmos, melhor prognóstico, para que a pessoa possa retornar ao seu funcionamento prévio. Importante salientarmos que os transtornos mentais não diferem de outras doenças sistêmicas (cardiovasculares, respiratórias, etc...), ou seja, o melhor de tudo é não precisarmos de médico ou de remédios, mas o ser humano é vulnerável...mas felizmente a medicina e a ciência estão ampliando conhecimentos em escala de progressão geométrica, o que nos dá esperança de que possamos combater com mais eficácia os transtornos mentais e prevenirmos o desfecho trágico do suicídio 

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*Cláudio Meneghello Martins é Mestre em Psiquiatria. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria;.Presidente da Associação de Psiquiatria Cyro Martins – CCYM; Presidente do CELPCYRO.

 

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O PERSONAGEM DARTH VADER  E  A ATUALIDADE 


darth vader



Visão da Dra Alcina de Barros *

Escrever sobre o anti-herói icônico de gerações é uma tarefa divertida e desafiadora. É difícil existir alguém nascido após a década de 70 que não seja capaz de recuperar no imaginário Darth Vader, a figura dominante e intensa, cuja respiração emblemática antecipava tensão, risco  e potencial de destruição.

Observando o nome, é possível verificarmos uma aproximação com um Dark Father, pai obscuro, disfarce interessante, nos primeiros anos dos filmes, para o segredo que o associava aos heróis Luke e Leia, seus filhos. Pais e filhos tinham um aspecto em comum: a separação precoce de um dos genitores ou de ambos. Na origem, eram determinados, inteligentes, talentosos e conectados com a “Força”.

Star Wars nos conta a história de vida de Anakin Skywalker, sua infância, perdas, processo de aprendizado e uso de aptidões. Ele teve acesso aos melhores e mais dedicados mestres, porém, durante sua jornada de desenvolvimento pessoal, Anakin já demonstrava dificuldades de lidar com o seu lado negro. Quanto mais poderoso ele se tornava, mais identificado com aspectos da parte sombria da “Força” ele ficava. A sedução pelo poder absoluto e infinito, associada aos deletérios sentimentos de ciúmes, inveja e ingratidão, culminaram em um duelo com o Cavaleiro Jedi, seu mentor, Obi-Wan Kenobi, que arranca seu braço e suas pernas, deixando-o padecer em lava derretida. Ao sobreviver às chamas, não temos um renascimento sublimado, como da fênix grega, mas sim um ciborgue vingativo, cruel e tirânico.

Esse mito moderno ilustra a freqüente ambivalência humana, luta constante entre seguir os bons princípios, ter empatia, suportar as perdas ou se deixar conduzir pelo egoísmo extremo, ambição irrefreável, ódio e exercício da dominação. O personagem também demonstra frieza emocional e completa despreocupação com o outro, sendo este apenas interessante enquanto útil. Por que então o narcisismo maligno e os traços psicopáticos da figura robótica causam tanto impacto em nós? Não seria lógico sentir repulsa, raiva e medo, ao invés de admiração, veneração e curiosidade? A armadura negra pode ter a função de separar o que restou de humano (interno) e o que se manifesta de maligno (comportamento observável), facilitando nossa auto-justificativa de que o apreciado nele é exatamente sua característica sobrehumana.

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* Dra Alcina de Barros: psiquiatra forense(ABP), doutora em Psiquiatria (UFRGS) Psicoterapeuta de orientação analítica (CELG). Diretora Científica (CCYM)


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Visão da Dra Graziela Stein de Vargas **

            O lado negro da força sempre nos acompanhou, talvez por isso esse personagem gere tanto fascínio. Todos temos um lado mais obscuro, o que Jung chamou de nossas sombras, mas que também podemos pensar que o escuro corresponde à Caverna de Platão, ou seja, o que Freud chamaria de Inconsciente.

            O que não é visível aos olhos, escondido está por alguma razão ou várias razões. Muitas vezes nossos próprios mecanismos de defesa estão lá, protegendo as fronteiras do abismo.

            O personagem Darth Vader usa como roupagem a cor negra construída com metal e tecido, protegendo toda a superfície de seu ser; nem seus olhos, seus cabelos, nem ao menos 1 cm de pele estão expostos, tudo se tornou uma verdadeira couraça de proteção.

            Sabemos que quem muito se protege, muito esconde e neste caso era o menino doce, romântico e sonhador que sucumbiu aos desejos de poder desmedido, uma tentativa desesperada de substituir o pai não conhecido.

            Darth Vader se torna o pai que não teve, poderoso e capaz de atacar e de se proteger, ou seja, com grande capacidade de sobrevivência e auto-proteção, ao mesmo tempo que mantém a perversão de um pai que abandona o filho sem antes desenvolvê-lo.

            Sim, antes de se tornar Darth Vater, o menino era Anakin Skywalker, o oposto de sua sombra, me fazendo pensar em dissociação da personalidade, justo quando o menino está prestes a se tornar pai, o trauma precoce reaparece e o que nasce é Darth Vader, o menino se transforma em sua própria sombra, tentando abandonar a outra parte de si mesmo. Esquece a identidade que carregava antes, seu passado, seus sonhos, inclusive que amou. Deixa de ser luminoso para ser sombrio, para se tornar simplesmente o lado negro da força.

            Entretanto, você pode se questionar: por que falar desse personagem em tempos de COVID-19? Mais do que nunca parecemos estar dissociados, separados e divididos. Por um lado, temos o grupo de Direita e outro de Esquerda; os saudáveis versus os doentes; o grupo de maior risco e o grupo de menor risco, os a favor do isolamento e os que são contra.... Quando deixaremos de agir como forças opostas, como se fosse uma luta eterna entre bem e mal e passaremos a abraçar nossas características gerais, unindo forças e reduzindo as críticas, mas buscando fazer a diferença? Seguimos à espera de um pai divino, um super patriota ou super herói para nos salvar, mas precisamos deixar de esperar salvação, precisamos assumir nossa responsabilidade e fazer nossa parte, fazer o que é possível sem brigar com nós mesmos, com nosso vizinho, com os políticos ou com a China... Não há mais tempo para isso, não agora...

            Enquanto há a separação perdemos tempo e energia em lutas desnecessárias, é preciso neste momento união, paz e boa disciplina para seguir adiante.

Infelizmente não poderemos nos proteger do coronavírus com a super roupa preta do Darth Vader, mas podemos ao menos tentar unir as forças em prol do bem comum, ou seja, em prol da saúde.

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** Dra. Graziela Stein de Vargas:Psiquiatra e Psicoterapeuta, Professora de Ética e Sistemas em Saúde (CCYM), Diretora Tesoureira (CCYM).

                                                     
Porto Alegre, junho de 2020