Humanismo Psicanalítico e a guerra* - Cyro Martins | Imprimir |
Estante do Autor - Ensaios

 

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A sabedoria de  vida ensinando os homens a contornar o destino

Já em 1930, Freud assinalava um tanto melancolicamente o magno obstáculo com que tropeça a evolução cultural humana: "a tendência constitucional dos homens a agredirem-se mutuamente". Por certo, desse famoso ensaio de Freud, O mal-estar na cultura, muitos outros conceitos poderíamos aproveitar aqui, mas o escolhido me parece desses que nasceram da pena do autor destinados a figurar como epígrafes.

As aspirações socioculturais do humanismo psicanalítico deverão ser, além de contribuir para a elevação do indivíduo à condição de cidadão do mundo, ideal cada vez mais distante, também  há de libertar o homem da destinação do aniquilamento nuclear, ameaça real que paira, terrível, neste fim de século, contrastando com a mentalidade despreocupada daquele outro fin de siecle refinado e sorridente, que atingiu seu apogeu em 1890. O presente, sem demasiada mistificação e sem ironia, pode-se dizer que era festivo. O futuro atraía, sem problemas aparentes, embora um espírito agudo como Eça de Queirós se confessasse curioso acerca do porvir de um certo príncipe, o Kaiser. O passado representava um repertório rico de modelos de soluções para as questões que porventura surgissem na esfera da política, dos intercâmbios sociais, do pensamento. "Mas hoje", já enfatizava Ortega y Gasset há quarenta anos, "vivemos para um futuro que acusa, em forma talvez mais extremada que nunca na história do Ocidente, seu adusto e dramático perfil de radical problematismo."

Projetada na tela da história, a conceituação de humanismo vem sofrendo variações e se ampliando, desde a tema visão budista da criatura humana, do civismo confucionista, da riqueza poética e ideológica greco-latina, do humanismo medieval que entesourou o helenismo e transmitiu aos humanistas da Renascença o sentimento de generosa humanidade e revalorização da vida que vIrIa a constituir-se no movimento renascentista contra as servidões feudais e a favor da renovação do pensamento. Esses ventos criadores vieram soprando ao longo das centúrias, como asas da grandeza humana. Fecundaram muitas teorias. Todas ajudaram. Nenhuma resolveu. Sempre havia chance para mais um visionário. E daí, que importavam os desmentidos da realidade? Entretanto, agora, o suspense imposto pela era nuclear obriga a humanidade a uma tomada de posição sem precendentes.

Escolas filosóficas e correntes político-sociais diversas têm-se empenhado na procura da formulação perfeita que, incluindo lições do passado, expresse a prospecção de ideais novos, capazes de orientar o homem em meio à conturbação dos três últimos séculos. Assim, no século XVIII o materialismo mecanicista apontou rumos; na segunda metade do século passado, coube ao positivismo dar as cartas; e, em fins do século XIX e começos do XX, o cientificismo onipotente, esplendidamente engastado na moldura da belle époque, oferecia a chave para a solução de todos os problemas inerentes à condição humana, inclusive a angústia ante o porvir. No Ocidente contemporâneo, alinham-se, cada qual propugnando como exclusiva e definitiva a sua reforma sociocultural, o humanismo pragmático, o humanismo cristão e o humanismo socialista. O pragmático e o cristão pretendem uma reformulação da dramática humana, o primeiro visando equilibrar as inter-relações sociais através do existir cotidiano, ligado à realidade do imediato, ao caminho da ação. O segundo, tentando em vão repor o ser humano em face da transcendência divina, numa ingênua negação da vertigem da época. Já o socialista é radical, atento às contingências utilitárias da experiência social, advogando uma inversão das normas vigentes, em proveito das necessidades pragmáticas da coletividade. Na ação, o socialismo tem procurado transformar hipóteses em experiências, de efeitos práticos no estilo de vida das populações. No decurso da história, porém, nem sempre os espíritos revolucionários foram buscar os vínculos de integração social no estudo dos fatos que caracterizam o presente e de certa forma antecipam o futuro. Assim sucedeu com os eruditos revolucionários da Idade Média quando, enfrentando barreiras opostas pela sociedade feudal, procuram alargar o campo de seus conhecimentos, numa atitude, à primeira vista, paradoxal, como se o futuro não contasse. Num movimento de retrocesso, de insatisfação nostálgica. Com efeito, voltaram-se para a antiguiidade clássica em busca da universalidade do saber, idealizaram-na e a tomaram como padrão da lucidez e da independência de espírito. Seja como for, porém, enfocado de acordo com os preceitos do helenismo, ou com o entusiasmo do devir renascentista, ou com o humor tranqüilo do classicismo, ou com a penetração científica do século XX, a base ideológica de todos os humanismos continua sendo o aforismo do sofista Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas".

As disciplinas humanistas, da gramática à filosofia, caracterizam-se pelo seu esforço para compreender o espírito humano e fazer dos homens criaturas mais comunicativas. Na tentativa de compreender o semelhante vai implícito um intuito projetivo de impregná-Io de sabedoria de vida, aquele estado de espírito sutil, elástico e envolvente que aproxima as criaturas pela simpatia. pairando acima das ideologias preconceituais, essa sabedoria deverá ensinar os homens a contornar o destino. Para tanto, necessita o homem, primordialmente, do conhecimento de si mesmo, para não passar a existência inteira repetindo os mesmos erros que, de cada vez, lhe fecham as portas do êxito. Nem recaindo nas desgraças de sempre, sem nenhum poder de previsão, escravo de crenças, paixões, instituições e costumes regressivos. E como essas repetições de destino se sucedem com uma freqüência assombrosa, atingindo meio mundo, generalizou-se a crença, sob a forma manifesta de sabedoria popular, de que o destino é inelutável e que não nos resta outra atitude senão a de aceitá-Io com resignação. Essa é a conduta obscurantista de entrega, sob a égide de Tânatos. Essa maneira de pensar, inspirada na fatalidade das tragédias gregas, contaminou as correntes humanistas de uma tendência ao pessimismo, de cuja angústia o homem intentou defender-se através do romantismo.

Mas o destino será tão inelutável assim? Esta pergunta parece ter alguma relação com a vertigem do nada. Isto acontece sempre que enveredamos rumo à vertente abissal da vida, como quando nos psicanalisamos. Mas a psicanálise tem uma  posição definida em relação ao destino. 0 destino é nosso, inteiramente, desde as raízes, isto é, desde  o substrato pulsional que desencadeia a ação, para o bem ou para o  mal. É nosso o nosso destino. Nós o fazemos. Esta é uma  idéia própria da psicanálise, que foge do pensar comum, sempre inclinado, nas  suas concepções do mundo e da vida, a desfazer a clivagem existente  entre o ideal e a realidade, em especial quando se futuro.

Não obstante a rica constelação de idéias culturais do passado, lS superiores de pensamento que chegaram até nós através ~ssivos momentos reveladores de todos os humanismos, predominantemente do greco-latino e cristão, os povos continuam a viver, hoje, numa exaustiva instabilidade, atormentados pelas guerras, revoluções e numerosas outras formas, manifestas ou mascaradas, de matanças públicas. Contra esta compulsão a repetir arcaicos clichês da história, agravados pelas atualizações da tecnocracia triunfante, oque configura uma realidade social espantosa, ergue-se, incorporado a outros, o humanismo psicanalítico, aplicação dos conhecimentos em profundidade que a psicanálise colheu no indivíduo, aos dramas coletivos  que mais nos afligem, destacando-se entre todos o fenômeno  guerra, cujas causas subjacentes urge desvendar. O humanismo psicanalítico é um saber intermediário entre a medicina e as ciências do espírito. Com efeito, quando no exercício estrito de seu terapêutico, a psicanálise é medicina pura. Mas num outro extremo expande-se numa ramagem de amplos contatos com a cultura,  fecundando a ideologia dos que se empenham pela melhora daas relações inter-humanas. Por isso Enrique Racker, abordando temas dessa magnitude, afirmou, categórico: "Uma ciência que descobriu  as origens dos fenômenos anímicos está chamada, evidentemente, a mostrá-los sempre e onde a psique se manifeste".

Crenças, instituições, costumes, dúvidas, confiança na ciência, imagens cambiantes da arte, esperança na política, enfim, todas as idéias que operam nas gentes hoje em dia não se formulam mais conforme o modelo do humanismo aristocrático, mas, consciente ou inconscientemente, de acordo com a experiência viva, com a experiência  suja que a psicologia profunda revelou, com o toque .significativo de seus critérios específicos. Da evolução dessa atitude moderna tem-se o direito de esperar que se originem condutas mais flexíveis, menos subordinadas às técnicas desumanizantes, tais como a mobilização da comunidade humana para o diálogo e a motivação para o exame dos dois pólos da questão, que sempre existem. O que nos interessa sobretudo, a nós, criaturas deste mundo e donos de uma vida só, é achar urgentemente o meio de ajudar o homem a reavivar seu interesse pela vida , a começar por um esforço de libertação desses flagelos periódicos, arrasadores, que são as guerras modernas.

Nestes tempos de produção em massa e de massas famintas, biafradas, de milhões de refugiados, de predomínio progressivo da automação, retomar a palavra humanismo como bandeira de paz poderá parecer apenas mais uma dissertação especulativa, entre tantas. Mas se lhe enxertarmos os conceitos revigorantes da psicanálise, a ciência por excelência do homem, creio que será viável continuar usando o sutil, versátil e sensível fio condutor de idéias que o toque quase mágico dessa palavra -humanismo -vem fazendo vibrar desde tempos imemoriais. Neste transe histórico de crise maior, será talvez improfícuo fantasiar com um novo humanismo que não conte com a ética psicanalítica, fundamentada no respeito à personalidade alheia, a começar por um autêntico interesse no crescimento do bebê. No panorama cultural dos próximos trinta anos, é bem possível que o que hoje principiamos a chamar de humanismo psicanalítico venha a se converter no fulcro em torno do qual se tra- vará a polêmica pelos direitos do homem a livrar-se da fatalidade do destino, através da progressiva conscientização de sua natureza.

Estabelecendo agora uma correlação entre os últimos parágrafos e o título deste ensaio, concluiremos sem dificuldade que a psicanálise é a grande via humanista contemporânea das ciências do homem. E por quê? Porque, com a introdução do conceito de inconsciente dinâmico na psicologia, ampliou a outrora visão estreita do psiquismo confinado à consciência, dotando-o, para fins culturais, de uma surpreendente gama de significantes da profundidade humana, impregnados de vivências originárias de fontes perdidas no tempo. Representa igualmente um princípio a mais a se opor ao preconceito da fatalidade histórica.

Todos sabemos, nesta era sem deuses, que a providência está no próprio homem. Mas se não adotarmos soluções básicas, a luta interespecífica prosseguirá indefinidamente na sanha predatória.

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* Excertos de ensaio escrito a partir de conferência proferida na Faculdade de Direito de Pelotas (RS), 22/10/71. Posteriormente publicado em MARTINS, Cyro. O mundo em que vivemos. Porto Alegre, Movimento,1983 (1a. ed.).