Enquanto as águas correm - Cyro Martins | Imprimir |

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Quando o andante entrou na venda, havia pouco movimento. Um negrinho metia alguns embrulhos numa mala de garupa, um indiático gordo, cara de sapo, sentados no banco comprido do lado de fora do mostrador, e um terceiro, homenzinho de talhe mirrado, que discutia com uma senhora. O recém-chegado cumprimentou, porém foi correspondido quase imperceptivelmente, exceto pelo dono da casa que lhe deu um bom-dia em tom alto e franco. Entretanto todos fitaram com curiosidade o desconhecido. Simulando não haver notado o interesse que provocara, o estranho dirigiu-se diretamente ao senhor que despachava o negrinho.

- O senhor dá licença, é o dono da casa?

- Sim, senhor. Às suas ordens.

- Eu queria descansar um pouco, se houvesse onde...

- Como não, há sim. Está vendo? - Apontou para o galpão. - Pode ficar lá à vontade. Mas antes, sente-se.

O andante sentou-se ao lado do índio bêbado, que, imediatamente, levantou, mandou encher outro copo de cachaça e lhe ofereceu. Após um olhas de refilão, o homem agarrou o copo. Como o ofertante permanecesse de pé, na sua frente, ele compreendeu que devia beber, e bebeu um gole.

Quando esmoreceu a atenção em torno de sua pessoa, o viajeiro pôde tomar conhecimento do ambiente. Atrás do balcão, além do comerciante e de sua mulher, estava também um guri espichado, magro, com algumas sardas.

- Deve ser filho do casal - pensou.

O patrão apontava na livreta o que o negrinho levava, interrompendo-se de vez em quando para lhe recomendar cuidado com as mercadorias, que não fosse perder nada, que não fosse a galope. E a cada instante mirava de soslaio o desconhecido, colhendo sugestões, no aspecto do sujeito, para a posterior aplicação de sua técnica de identificação, adquirida em longos anos de beira-estrada.

O guri mastigava um pedaço de rapadura. A mulher continuava atendendo o mesmo freguês. Muito despachada, falava em tom insinuante, buscando incutir no ânimo do comprador as vantagens do artigo que lhe oferecia. Após lhe haver despachado alguns metros de tecido, passou à oferta de medicamentos, porque na venda havia de tudo: secos, molhados, fazendas, ferragens e drogas.

- E agora, seu Veríssimo, de que remédios precisa? Olhe que na campanha ninguém pode passar sem a sua botica.

Neste ínterim, o marido a interrompeu.

Aurora, tu que olhaste a fatura do arroz que chegou ontem, qual é a suba?

Ah!, sim, o arroz subiu outra vez, é uma barbaridade, tudo sobe, onde iremos parar, o arroz subindo cém réis por quilo.

Mas em seguida voltou ao assunto com o seu Veríssimo, porque a sua paixão era vender.

- A gente não pode viver como os animais, ao Deus dará, tem que se defender contra as doenças. E o recurso, na campanha, é sempre ter à mão os nossos medicamentos de confiança;

Já agora falava não apenas para o seu Veríssimo, mas para todos, exaltada. O pescoço engrossou e os olhos fitavam com energia os circunstantes. Ela sentia um particular prazer em vender remédios. Adorava a controvérsia. E em matéria de medicamentos era fácil encontrar todos os dias alguém que discordasse da sua opinião.

- Atingiu o setor da sua preferência - refletia o desconhecido, que a observava atentamente.

- E até digo mais - continuava ela - devemos nos prevenir contra qualquer surpresa desagradável, tomando diariamente a nossa dosezinha preventiva. Isto eu não só aconselho, como cumpro religiosamente. Aqui em casa, todos os dias cada um toma as suas dosezinhas. Não é, Pacheco? Não é verdade que tu tomas todos os dias três colheres de Elixir de Nogueira para afinar o sangue e curar a sífilis, ainda do tempo de rapaz?

- Ah, sim, o Elixir de Nogueira é ótimo preparado. Faz muitos anos que o uso.

- E quem foi que te meteu esse hábito no corpo?

- Todos sabem que foi a minha velha.

- Ainda bem que tu reconheces.

- Ora, mulher...

- Pois bem, o senhor já ouviu falar, seu Veríssimo, que o Pacheco estivesse doente alguma vez?

- Só aquela vez do fígado...

- Ah, bom, isso é outra história, e ademais, isso de fígado todo mundo sofre. Lá chega um dia...

Dirigindo-se para o bêbado:

- Não está de acordo, seu Anacleto?

- Todos os domingos, venho aqui e escuto a senhora dizer essas mesmas coisas. Até já comprei alguns desses remédios. Mas le garanto que amanhã eu estou com o fígado deste tamanho!

- Estão vendo? É coisa corriqueira. Eu me refiro a doenças de verdade, dessas que dão e matam, quando o nosso organismo não está preparado de tempos pra resistir.

Dona Aurora crescia atrás do balcão, falava alto, gesticulava abundantemente, arrazoando argumentos puxados, um atrás do outro, com tal veemência que não deixava dúvidas quanto à eficácia dos seus conselhos terapêuticos.

- Eu sei, dona Autora - dizia humildemente o seu Veríssimo - eu sei que a senhora é a melhor homeopata de por aqui!

- De por aqui e de outros pagos, não esqueça!

Fez um gesto largo, apontando para um lado, e sorriu com benevolência para o homenzinho.

- Olhe que as minhas doses de briônia, ipecacuanha, beladona, arsênico e outras...

Calou-se, numa pausa estudada para dar tempo a que a reticência se estirasse bem e prosseguiu, endereçando o olhar firme para o homem silencioso que a observava e que estava pensando, enquanto ela discorria, na fé que votava à sua sapiência.

- ... as minhas doses já chegaram até a cidade e mais de um desenganado por médico salvou-se! Porque eu não aplico homeopatia por palpite, como se costuma fazer por aí, eu consulto o meu autor. E olhem, o meu autor!... é dos bons, dos verdadeiros. Já se vê que é antigo, porque os modernos vêm falsificados.

Quando dona Aurora terminou sua arenga, Veríssimo saiu com os bolsos carregados de vidros de remédios, glóbulos homeopáticos de variadas cores. Anacleto cochilava no banco, o negrinho já ia longe no seu petiço tostado, o andante fruía com tudo as palavras que ouvia e via, e Pacheco, sorrateiramente, procurava um meio de chegar ao alvo.

- Então, amigo, viajando?

- Sim, viajando. De a pé, mas viajando.

- Andarilho?

- Não propriamente.

- Decerto procura trabalho... é a primeira vez que cruza estes pagos?

- Sim, senhor.

- Pois aqui estamos no município de São João Batista. Não é de lá que vem?

- Não, senhor.

De repente, batendo com a mão na testa, ao mesmo tempo que olhava o relógio, o comerciante virou-se para a mulher, falando-lhe com certa precipitação.

- Nos descuidamos, Aurora, já são dez e meia, não demora muito estão aí os passageiros, vai ver o almoço como anda.

Em seguida, tornando ao interlocutor, explicou:

- A estrada de ferro fica pertinho daqui, nós fornecemos almoço para os passageiros que vêm embarcar e para os que desembarcam. É um negócio que não dá, fazemos isso mais por servir... E o diabo é que essa gente nunca está contente com nada, ora reclamam o preço, ora é o bife que está duro ou são os ovos mal passados, moles ou duros demais, enfim, esta lenga-lenga é todos os dias. Então, o amigo anda à procura de trabalho! A propósito, qual é o seu ofício?

O andante sentiu a força da interrogação e compreendeu que se aquilo continuasse poderia levá-lo longe demais, por isso respondeu secamente, com uma mentira, e resolveu tratar do descanso pedido.

- Ferreiro. Mas seu... Pacheco, a conversa me interessa, mas quero descansar um pouco para depois seguir viagem...

- Pois não, amigo. Olhe, lá naquele galpão você encontrará uma cama de vento, pode usá-la.

Mal o desconhecido botou o pé fora da porta, dona Aurora, que não se sofrera lá dentro e vinha de volta para escutar a conversa e intervir com o seu jeito, caso o marido não se conduzisse com perícia, pegou no ao a palavra ferreiro.

- Ferreiro! Te parece? Hum, hum! E ainda tu, um homem velho, de cabelos quase brancos, cais na asneira de oferecer cama pra esse sujeito, um indivíduo que chega a pé! Bem se vê que serás o palerma de sempre. Que dormisse em cima dos couros! Depois eu irei lá destripar os segredos desse indivíduo. Sujeitos a pé pela campanha e... ainda por cima falando castelhano... Hum! Não me cheira bem. (págs. 23-27)

 

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Mal saíram, e o moço, contente com a sua conduta acolhedora, abriu o seu farnel e ofereceu um pedaço do fiambre ao companheiro, o qual, durante um trajeto longo, mastigou com notório apetite o frango assado, revolvido na farinha de mandioca.

Carlos o observava, curioso, fugindo só de quando em quando para a paisagem. Conhecia-a de guri. Estudante em férias, desabrochando em si as fantasias poéticas, mergulhava nos seus fundões verde-azulados, mosqueados de caponetes, com olhos diferentes, de saudade criadora, revendo e recompondo, por todos os lados, marcos dos dias de infância. Aquele cerro grande ... Quantas vezes passara por ali, montado no seu petiço douradilho, acompanhando o pai? Guardava bem viva a tonalidade alta e clara de sua voz, como se fala a cavalo, na estrada, contando e recontando histórias de tempos idos. "Lá morava o seu Abreu, um homenzinho muito quieto, muito miúdo, e que um dia, não se sabe até hoje por quê, se enforcou com a regeira dos bois de lavrar, dependurando-se num galho de cinamomo, atrás do galpão. E ali ficou horas, suspenso. Lá mais adiante, estás vendo, naquele arvoredo, bem na boca da coxilha, morava o seu Anselmo Lopes, homem buenacho, de círculo grande, gauchão..."

- Faça o favor de me dar o fogo.

Interrompendo o devaneio evocativo, o rapaz reparou o cigarro do companheiro e sem vacilar lhe disse:

- Não, ponha esse fora.

Tirando do bolso a carteira, ofereceu-lhe cigarros. Antes, porém, que o cidadão se decidisse a aceitá-los ou não, perguntou-lhe de chofre:

- Como se chama?

- Izidro.

Breve pausa indecisa. Izidro lia claramente a inquietude que os olhos vivos do adolescente expressavam.

- Mas., fume...

Carlos também prendeu um cigarro. "Cigarro bom, e interessante o rapaz." Por isso lhe veio um súbito desejo de conversar, sentindo-se leve por haver encontrado alguém simpático, capaz de ouvi-lo e provavelmente de compreendê-lo. Diria toda a verdade a seu respeito? Tolice! Tolice! Que importa a verdade dos fatos? Que valor tem o timtim por timtim? Quando se conversa à toa, se diz a verdade de muitas maneiras. O verdadeiro mesmo está no prazer de falar e de ouvir.

- De onde vem o senhor?

- De Montevidéu.

- Quer dizer então que é uruguaio?

- Sim, sou uruguaio - respondeu Izidro com firmeza, depois duma curta vacilação.

Talvez não com tanta firmeza assim, pois deu para Carlos desconfiar pelo timbre de sua voz. Mas preferiu encordoar no faz-de-conta.

- Ah, gosto muito do seu país! Leis sociais adiantadas, as mais progressistas do Continente. Admiráveis poetas e escritores, sobretudo o grande José Henrique Rodó... Pode falar correntemente em espanhol, que o compreendo bem. Izidro sorriu amavelmente para o jovem, ficando a maturar por que lhe teria falado logo em escritores. E em seguida rematou o raciocínio: "Entusiasmos de adolescente, entusiasmos... Também os tive!..."

- Como se foi por essas campanhas?

- Muita prevenção comigo por essas campanhas;;;

- Na campanha rio-grandense a gente se habitou de tal modo ao viajante a cavalo, que os indivíduos que andam a pé pela estrada sempre inspiram desconfiança.

- Deve ser isso mesmo. Compreendo melhor agora o que tenho observado.

- Então o amigo é uruguaio? Filho de pais uruguaios ou de imigrantes?

- De pai uruguaio e mãe francesa.

Ao pronunciar as palavras "mãe francesa", o andante notou que se iluminara de interesse a fisionomia do rapaz e resolveu deixar sem freios a imaginação e a língua.

- Em 1916, me alistei na legião estrangeira para defender a França. Fui ferido várias vezes, porém tive muita sorte, apenas estilhaços nas pernas, nos braços, superficialmente no tronco.

- Ah! foi defender a França! Se a guerra fosse agora, eu também iria. Adoro a França.

Estas palavras foram ditas com uma exaltação ingênua tal que Izidro adorou, a ponto de continuar a farsa, pelo seu tempero poético no mais.

- Estive em Paris, firmada a paz.

- Paris!...

- Vá a Paris, jovem.

- Fale francês!

Izidro falou francês, fazendo-lhe perguntas simples - quem era, o que fazia, que idade tinha?

Carlos não pôde, com o seu aprendizado ginasial, entender suficientemente o interlocutor. Pediu repetição de várias palavras, fingiu compreender outras tantas, e acabou solicitando que ele continuasse a conversa em espanhol mesmo, não sem um certo vexame por não saber expressar-se na língua que tanto admirava, sentindo ferido seu amor próprio de estudante e leitor de Flaubert.

Izidro sorriu paternalmente e prosseguiu, estendendo-se em dissertações sobre Paris, o interior da França, a guerra, as batalhas, os gases asfixiantes, o horror todo. E aí já estava falando sério.

Calou-se e baixou a cabeça, sorumbático. Carlos, porém, queria aproveitar o que desse. Como iria desperdiçar uma oportunidade daquelas? Talvez daquele encontro saísse um conto. ( pp. 31 - e segs)

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Cyro Martins, Enquanto as águas correm.
Porto Alegre, Movimento, 1981(2ª ed.) 1ª Ed. 1939.

 

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