Na Estrada | Imprimir |
Estante do Autor - Ficção

                Dez léguas já se tinham ido, e o pingo de longe em longe escarceava...

                Não podia desencilhar ali, pois no céu havia ainda umas dez braças de sol, e, de mais a mais, a fazenda não estava muito longe. Bastava um empurrãozinho mais para chegar.

                E porque dormir no campo, sem abrigo, suportando a geada, que aquela noite parecia ser grande?

                Já estava velho, e, embora não gostasse de incomodar ninguém, era obrigado pela falta de saúde. Noutro tempo, no tempo de moço, sim, em qualquer parte que a noite viesse, vinha bem.

                Se era na estância, ele a recebia rindo e tomando chimarrão; se era na estrada, tirava as “garras” do matungo, atava-o à soga no primeiro pau que encontrasse, e se restava nos pelegos, tendo por travesseiro o seu lombilho duro.

                E no outro dia, a trote, fumando, poncho duro de geada, não esperava pelo sol, ia encontrá-lo em viagem.

                Mas agora estava mudado, já não era mais o mesmo! Tinham vindo os anos, ele enfraquecera, alquebrara-se. Já ia rumbeando pras bandas da morte...

                Assim meditava o velho Jango, enquanto arrumava os arreios no tordilho.

                Depois montou, e prosseguiu, de vagarinho, deixando uma poeira fina pela estrada a fora.

                O seu olhar ora caía nas rezes que pastavam ou ruminavam à costa do alambrado, ora ia mais longe, e descansava numa morada distante, perdida no seio dobrado das coxilhas.

                Enquanto isto, o pensamento trabalhava.

                O velho recordava os dias decorridos. E à medida que se ia desenvolvendo o cenário do seu pago, novas lembranças lhe surgiam à mente. Umas deviam ser tristes, porque o seu semblante de vez em quando se confrangia, vestindo-se de melancolia; outras, com certeza eram alegres, porque sorria sem querer.

***

                Dum alto, donde já se avistava a estância, o olhar do gaúcho espraiou-se mais, e viu, lá na costa do mato, juntos a dois grandes umbus mui ramalhados, as paredes negras e um rancho de torrão. Fitou-as por instantes. Depois sorriu, mas logo carregou o semblante. Sorriu, porque, ao contemplar aquele rancho, lhe viera à memória a recordação da noite linda em que roubara dali, na anca do cavalo, a china arisca e querendona.

À meia-noite. Luar muito claro. O vento não rolava a ramaria do mato. Ele chegou. Ela o esperava. Saltou, com seu auxílio, à garupa, e desapareceram na picada...

                Muitos anos viveram juntos. Até que um dia a morte se chegou ao rancho, e lhe arrebatou a companheira.

                E por isso se entristeceu depois do sorriso.

***

                Já ia chegando à estância. O sol, muito vermelho, descambava por trás das coxilhas.

                E a cachorrada, ladrando, saltava ao seu estribo, enquanto se ouvia o – já cachorro – do capataz que chimarreava à porta do galpão.

Cyro Martins

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In: Vibração: revista de literatura e ilustração. Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 139-140, setembro/outubro de 1926.