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127 Horas. De quanto tempo estamos falando?

                                                                                                                       Juarez Guedes Cruz 

 

                         Em um seminário clínico realizado na cidade de São Paulo, Bion, a partir de uma pergunta banal que o paciente fizera à sua analista ('Que horas são?'), desenvolve um profundo debate a respeito do tema 'de que Tempo estamos falando quando falamos de tempo numa sessão psicanalítica?'. O paciente estaria se referindo àquele momento da entrevista? Ou às perplexidades de um menino que ainda não sabia ver as horas? Ou falava de uma eternidade pré-natal de quando era um pequeno feto, indistinto de uma mamãe/analista? Do mesmo modo, podemos nos perguntar: de quanto tempo Danny Boyle, diretor de ‘127 Horas’ está falando quando fala em ‘cento e vinte e sete horas’? Dos cinco dias durante os quais Aron Ralston, protagonista do episódio real que deu origem ao filme, esteve preso por uma rocha que prensara seu braço direito contra as paredes do cânion? Dos 94 minutos de duração de um filme que deve contar uma vida inteira? De uma existência revivida dentro de uma fenda no ventre da Terra? Ou das ‘horas-esperança’ que guardamos na alma quando perdemos as pessoas que amamos ou quando nossa vida está em risco? A grandeza e o mistério deste filme residem no fato de que ele nos fala de tudo isso. E de muito mais.

 

                       'Horas-esperança' é um termo criado por Donald Meltzer para expressar aquilo que os psicanalistas, num jargão mais técnico, descrevem como 'constância objetal'. Todo ser humano — do mesmo modo que conta com reservas orgânicas para sobreviver alguns dias sem alimento e sem água — possui, na mente, um patrimônio de amor que lhe permite sobreviver em estados de solidão. Ele varia de pessoa para pessoa. Algumas suportam prolongados períodos de infortúnio por contarem, dentro de si, com um repertório de vivências seguras com seus primitivos objetos internos, a lhes proporcionar um valioso sentimento básico de que 'no fim, tudo dará certo'. Há outras, entretanto, tão intolerantes à frustração, que mal contam com segundos-esperança. Tal carência está relacionada a estados de adição a drogas (que possibilitam um alívio imediato da dor psíquica) ou a situações de dependência afetiva de objetos de amor, mesmo que definitivamente inadequados.

 

                        Isso nos leva a pensar nas admiráveis condições de sobrevivência de Aron Ralston. Em 2003, aos 27 anos, ele fazia uma excursão solitária pelo Parque Nacional Canyonlands, em Utah, nos Estados Unidos, quando caiu numa fenda e teve o braço esmagado por uma rocha. Permaneceu cativo por mais de cinco dias, até que, ao decidir amputar o braço, conseguiu libertar-se e procurar socorro. Antes desse gesto extremo, pensou: “Esta pedra esteve me esperando durante toda a minha vida. E, também, durante toda a sua vida, há milhões, bilhões de anos, desde que era um pedaço de meteorito no espaço. Esperando, para chegar aqui. E eu estive me movendo em direção a ela a minha vida inteira. Desde o dia em que nasci. A cada respiração, cada ação foi me conduzindo a este lugar, a este encontro”.  Cercado por tais abismos, de espaço e de tempo, Ralston encontrou recursos para sobreviver, psíquica e fisicamente. Sua estratégia foi a de criar personagens e dialogar com eles. Descobriu que o tempo, no mundo interno, passa em outra velocidade e que o espaço é mensurado por distintos padrões. No terceiro dia de aprisionamento, quando já perdera a esperança de ser encontrado, imaginou um programa de televisão onde era entrevistado sobre como se acidentara e conseguira escapar para contar a história. Cercou-se, na fantasia, de representantes de seu mundo interno, seus pais, a namorada, seus amigos e, na companhia deles, encontrou forças para lutar pela vida.

 

                      Esta criação de personagens — externalização dos bons e cuidadores objetos internos da infância — funcionou como uma estratégia de preservação psíquica semelhante àquela concebida por Chuck Noland, personagem de ‘O náufrago’, ao promover a bola Wilson a amigo Wilson, durante os dias em que aguardava um resgate bastante incerto. Tática também adotada pelo protagonista do conto 'Xadrez', de Stephan Zweig, que se mantém vivo em uma prisão nazista jogando intermináveis partidas contra um oponente imaginário. Ou pelo neto de Freud elaborando, na brincadeira de desaparecimento e recuperação do carretel, a ausência da mãe. Ou, ainda, do menino Julio Cortazar, a escrever, no espaço de um quarto vazio, o nome da atriz Lola Membrives, enquanto esperava que seus pais retornassem do teatro. Nesta breve lista de exemplos da criação de personagens funcionando como recurso de manutenção da sanidade psíquica — conferindo, ao tempo, uma dimensão interna diferente daquela da realidade externa —, não podemos esquecer um exemplo ilustre: o de Cervantes, durante os meses em que permaneceu preso em um cárcere na cidade de Sevilha, idealizando o Quijote.  Não é casual o fato de que James Franco, ator que interpretou Ralston, tenha escondido seus livros, repletos de personagens, nas fendas do cânion, com o objetivo de manter sua mente livre da influência claustrofóbica do estreito set de filmagens, onde permaneceria por horas.

 

                     Muitas pessoas, ao saberem do argumento desse filme, são tomadas por uma outra inquietação relacionada aotempo: como o diretor Danny Boyle conseguiria manter a atenção do espectador durante duas horas, centrando a ação em um só e imóvel personagem. Mas ele conseguiu, e com muita competência. Simon Beaufoy, o co-roteirista de 127 Horas, comentou a respeito do diretor: “... se você diz, para o Danny, que algo é impossível,  seus olhos brilham e ele diz que será incrível (...) adora quando é impossível.” Com essas palavras, refere-se ao fato de que, nas discussões preliminares sobre a construção da película, Beaufoy também achava muito difícil transformar em imagens que cativassem o olhar, a história de um homem imobilizado no fundo de um abismo. Mas, ao contrário da esperada crônica de uma lenta agonia em uma ambientação estática, o filme envereda pelas sendas da vida.

 

                   Difícil, ao terminarmos de assistir ‘127 Horas’, não nos perguntarmos sobre o que fazemos com nossa liberdade de movimentos e de comunicação. No quanto, muitas vezes, não valorizamos essas faculdades preciosas de caminhar, falar, escrever, chegar perto dos outros. Em quantas oportunidades na vida, esquecendo que somos diretores e roteiristas das nossas existências, sentimo-nos presos a um destino auto-imposto. Boyle, de modo semelhante ao que fizera no premiado Quem quer ser um milionário?, utilizou uma história de infortúnios para nos fazer refletir sobre como aproveitar a vida partindo de condições adversas. Quem sabe, assim como Ralston, podemos recuperar a liberdade, mesmo pagando o preço de abandonar partes da alma.

De hoje em diante, depois deste filme, sempre que nos disserem que algo é impossível, teremos todo o direito de responder, parafraseando Danny Boyle, e com um brilho nos olhos, que será incrível.



* Psiquiatra e psicanalista. Sócio efetivo do Centro de Estudos Luis Guedes. Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.