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Inesperadamente, de manhã PDF Imprimir E-mail
Escrito por Maria Helena   
Qua, 02 de Novembro de 2011 20:26

INESPERADAMENTE, DE MANHÃ *

 

                                        Cyro Martins

 

                Dirijo-me à janela com o intuito de fechar o postigo entreaberto. Antes, porém, me demoro uns instantes encostado à vidraça, observando a entrada do hotel que fica em frente. A tragédia dera-se de manhã, Empenho-me em não me ocupar mais daquilo. Mas todo o esforço é inútil. O quadro se repete incessantemente na minha retentiva, com a rigidez duma obsessão.

                 Fazia pouco que me estabelecera como médico em São João Batista do Quaraí, minha terra natal. Médico jovem recém-formado e pobre. E, nesse escasso tempo, quantas vezes já me topara, num quase corpo-a-corpo, com os ultrajes cotidianos da vida! Sem falar nos meus, essencialmente pessoais. Bah, me vi aos tombos com a sorte, para sobreviver. Mas arreda pra lá. lembrança ingrata, e me deixa pervagando no mais geral, naquela espécie de campo grande das estâncias antigas, povoado dos enigmas gordos que tonteiam os homens. E também os apaixonam.

               Serão onze horas? Meia-noite? Uma da madrugada? Enxergo vultos de homem na calçada do hotel, uns de sobretudo, outros enfiando capas compridas. Hão de estar com frio: caminham, esfregam as mãos, fumam e conversam. Ouço um zunzum indistinto. Já teria chegado de Uruguaiana a família do suicida? Noto que há mais gente, aos grupinhos, nas esquinas próximas, rondando a casa. Na certa que estão esperando pelo momento crucial da chegada da viúva. Poucas luzes. Através duma janela sem cortina, avista-se uma vela, a chama tesa. O resto da rua, deserto e gelado. E assim deveriam estar todas as tuas do Batista. Latidos de cachorro, sim, ouviam-se. Dava medo pensar que, como médico, pudesse ser obrigado a sair àquela hora. Noite limpa. Estrelas, todas as estrelas cintilando, nítidas. O bafo da respiração embacia o vidro. As poucas luzes do hotel fundem-se numa luminosidade baça e longínqua. Já não distingo quase nada na calçada oposta. Me aflora a pergunta universal dessas ocasiões: por que se teria matado aquele homem? Maus sucessos financeiros, abalos morais, questões de família? Nada disso satisfazia, nem mesmo às pessoas simples do povo. Não era um mal que se explicasse assim no mais. Eu já supunha, então, que os suicídios deveriam obedecer a motivos bem mais profundos. Outra pergunta me acode: por que diabos seriam tão frequentes os suicídios em São João? Falava-se em contágio, porque alguém, um dia, não sei onde nem se era uma teoria, deixara escapar essa palavra, à guisa de explicação.

                  Que fotografia macabra não daria o meu vizinho, tal qual o vira no primeiro nomento! O pescoço comprido enrolado no pé da cama. As pernas e os braços, magros e longos, desasados sobre o assoalho, no meio da massa pegajosa do sangue coagulado, como apêndices desengonçados de um boneco monstruoso. O queixo me pareceu afrontoso, com o seu ar de pouco caso. O revólver, que lhe saltara da mão, atirado contra a parede, no chão. Da boca escorria gosma. Recendia no quarto um cheiro forte, enjoativo, incaracterístico, mescla de miolo, sangue, urina e pólvora. 

                  Mas a todas essas, por que se teria matado o hoteleiro? Dez minutos antes estivera conversando comigo, na frente da minha casa. Não direi que aparentava calma, porque era um indivíduo agitado. No entanto... Para que conjeturar? Uma rajada matinal. Mas por que eu teria adivinhado tudo, logo ao ouvir o estampido? O que me teria revelado do desenlace iminente a fisionomia daquele homem? Era alto, era magro, gesticulante, parlador, cabelo preto amelenado, insinuava estar por dentro da vida de pessoas que luziam na sociedade e também das tricas políticas. Nunca se soubera bem por que se mudara de Uruguaiana para São João, um lugar muito menor. E muito menos se sabia acerca das razões por que não trouxera a família. Sim, porque argumentos como esse de primeiro ia ver se o negócio pegava para depois providenciar na mudança definitiva, argumentos desse tipo não satisfaziam. Num ano ou quase de estada ali, ainda continuava uma figura estranha na cidade, embora aparentemente se desse às maravilhas com meio mundo. Tinha um jeito de falar mal dos outros que não aborrecia ninguém. Me dava mais uma impressão de caixeiro viajante que de morador. Mais nada. Mais nada? Não me recordava de outras características. Mas com certeza lera-lhe o desígnio fatal nos olhos. Ah, o seu olhar de quem espia sem se mostrar de corpo inteiro. E a sua risada gaiata também não convencia, porque não contagiava. Demais, não se demorava com a gente, não acampava, seus contatos eram de relance.

                Um ruído miudinho de rato me incomodava. No quarto ou na peça vizinha? Acendo a luz. O súbito contato com o ambiente real me deixa meio estonteado. Olho com certa estranheza para as coisas banais que me cercam: a estante de livros, a mesa de trabalho, as calças dobradas na guarda da cadeira, a maleta de médico... sim, a que levei comigo ao atravessar a rua de manhã, correndo. Os ratos silenciaram. Levanto-me. Procuro vestígios de rato. Acho um buraco suspeito. Entupo-o. Volto para a cama. Nesse momento chegava um auto no hotel. Devia ser a família do morto. Sim, sem dúvida. Ouvi gritos desusados, lamentos, exclamações, sem distinguir com nitidez o que diziam. Saltei da cama e espiei pela janela. Afora o auto que está parado em frente à porta principal do hotel, transformado em casa funerária, tudo mais, na cidade e no céu, continua tranquilo e igual, na santa paz do Senhor.

 

 * In:  A Dama do Saladeiro. Histórias vividas e andadas. 2ª ed. Porto Alegre: Movimento, 2000. p.73-76.

Última atualização em Qua, 02 de Novembro de 2011 20:32