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Palavra cortante; palavra cortada | Imprimir |  E-mail

< Sumário - Volume 2 - Segundo Semestre - 2011


Encontros e Desencontros da/na

América Latina no Século XX


Organização Ligia Chiappini



Palavra cortante; palavra cortada


Vera Maria Chalmers[1]



Este estudo propõe-se a examinar a produção do xilógrafo Rubem Grillo para o jornal, Movimento, de São Paulo, no período de 1975 a 1978. A chamada imprensa alternativa produziu jornais nos quais o desenho ocupou um lugar predominante, como n’ O Pasquim, do Rio de Janeiro, no qual se destacava a colaboração de Henfil. Os pequenos jornais de oposição democrática à ditadura militar usavam o recurso do cômico como resposta à truculência do regime. O desenho integra-se junto com a escrita na produção de uma linguagem de resistência à censura nos meios jornalísticos e à veiculação de propostas de oposição, frequentemente organizadas em frentes, as quais congregavam membros de vários partidos de esquerda, então na clandestinidade. O jornal, Movimento ( 1975-1982 ) é publicado no período da chamada “abertura” de Geisel, sob a vigilância da censura, a qual só irá relaxar para o jornal em junho de 1978, depois que outros jornais já não sofriam a imposição de cortes das matérias escritas e dos desenhos, julgados ofensivos ao regime. Movimento durante sua circulação tem uma vida tumultuada por crises internas entre a direção, a redação e os colaboradores independentes. A intenção programática do jornal acentua-se a partir de 1977 e nos começos de 1980 assume um caráter de folha do movimento sindical. Não pretendo fazer um resumo da história do jornal, mas apenas pontuar determinados momentos para estabelecer a relação entre a obra gráfica de Rubem Grillo para o periódico e o período da sua colaboração para o jornal. No começo da edição de Movimento a colaboração de Rubem Grillo é eventual e divide espaço com outros desenhistas, tais como Loredano e Chicão, entre outros. A partir de 1977 a sua colaboração intensifica-se até sua retirada do jornal em 1979. A ilustração de Grillo destaca-se do conjunto dos desenhistas do jornal por ser xilogravura. Apesar do desenho linear o corte da madeira imprime um relevo escultórico característico da gravura. O traçado da gravura se coaduna com a diagramação do corpo 8 e 9 que compõe o jornal, há a notícia, “Exposições”, ( 17 de outubro de 1977, nº120, pg17 ) de uma exposição do projeto gráfico do jornal e da gravura de Rubem Grillo, no Teatro da Aliança Francesa. Bernardo Kucinski identifica como “estética do feio” o projeto gráfico de Movimento , pelo descuido do acabamento gráfico como manifesto político. ( KUCINSKI, 2003, pg355 ) Ao contrário da proposta de uma folha de caráter popular deformada pela repressão, a gravura de Grillo imprime ao jornal uma qualidade estética à denúncia contundente da censura. O desenho da xilogravura é mordaz e atinge o leitor em contraste com a comicidade da “charge” política e da caricatura humorística, que distende a tensão provocada pela matéria de denúncia, que caracteriza o jornal. A xilogravura de Grillo condensa a linguagem combativa do jornal. A ilustração articula-se numa linguagem gráfica autônoma criadora de significação. O desenho constrói o ícone, o qual muitas vezes diz o interdito do texto escrito. A xilogravura de Grillo é produto do embate da liberdade de criação com a censura política.
 

Há várias vertentes para o traço forte da ilustração de Rubem Grillo para Movimento. Uma contribuição importante para o seu desenho é a xilogravura expressionista. A deformação da representação realista e da perspectiva ilusionista pela expressividade dos recursos da linguagem gráfica é um princípio da construção da sua prática artística. A caricatura política reforça este traço do seu estilo expressivo. A xilogravura de tendência expressionista utiliza o contraste sem nuances entre o negro e o branco. A fatura gráfica original de Grillo é o corte da linha delgada em contraposição ao embate brusco com a madeira na gravura de fio e o aproveitamento da textura da madeira na construção da imagem da xilogravura popular. Há várias citações e alusões eruditas na composição de Rubem Grillo, incorporadas ao desenho atual e original. A estilização reforça o aspecto emotivo individual e coletivo dos motivos representados. A sintaxe linear utilizada pelo gravador no corte da goiva em “v” sobre o pau-marfim remete pela sua clareza gráfica à gravura de topo da ilustração do século dezenove. A fatura pessoal de Grillo atualiza as referências históricas na invenção de formas novas para exprimir a critica social contundente.  A produção de uma poética para o meio de massa, embora de circulação restrita da imprensa alternativa, propicia a utilização do repertório convencional da fisionomia popularizada nos periódicos ilustrados do século dezenove. Um estilema da fisionomia desenhada por Grillo para o jornal, a qual tem outras repercussões além da citada, é a boca escancarada com os dentes à mostra na expressão ambígua do grito ou do riso, que enuncia a palavra transgressora, cortante ou cortada, em oposição à censura e ao autoritarismo do regime, apesar da anunciada “distensão”.( figura 1- 30/05/77, nº100,pg2) A página do jornal é o suporte do desenho feito para ser publicado no espaço amplificado de repercussão midiática. O desenho emoldurado pelas colunas do jornal é o porta-voz ambivalente da palavra radical, porque enuncia a simultaneidade da expressão do sério-cômico.
 

Uma outra contribuição para a gravura de Rubem Grillo é a estética do surrealismo. A gravura de Rubem Grillo apresenta elementos da verossimilhança, por exemplo, os traços essenciais da composição da caricatura de Geisel, associados a analogias distantes no tempo e no espaço, como o selo de cera dos documentos oficiais do Império. Ou procede pela livre associação de elementos orgânicos e mecânicos, na composição de engrenagens complexas, como as que exprimem a complexidade das relações entre a conjuntura repressiva atual e a reflexão sobre o imperialismo norte-americano, no tríptico, que ilustra o texto, “Mudanças no Capitalismo” de Arthur Mac Ewan ( 5 de janeiro de 1976, nº27, pg4 ) ( figura 2 ) As imagens oníricas são produzidas por condensação e substituição de elementos da construção da imagem. O deslocamento de sentido produz o estranhamento, o qual consititui a imagem poética. A caricatura adquire uma qualidade estética superior à referência do esboço de circusntância. O traço expressivo é acentuado até confundir-se a referencialidade com a imaginação. Como o desenho do tampão com a efígie distorcida de Geisel e sua duplicação na imagem estampada pela figura do militar, a qual reconstitui a referência. A composição é uma operação metalinguística sobre o processo de produzir estampas sob a censura. Tal como o desenho do robô mecânico, formado por instrumentos contundentes, a foice apoiada sobre um livro, o qual serve de base e pedestal à “escultura”, o qual ilustra o artigo, “Que capitalismo é esse?” ( 13 de junho de 1977, nº102, pg8 ) ( figura 3 ) Este representa uma alegoria da censura, figura da qual escorre uma tinta preta escura como o sangue, e apresenta um dorso humano, vestido de paletó e gravata. O rosto é uma meia máscara humana, de olhos tapados por uma tarja preta, e afivelada por chaves de parafuso, uma das quais enfiada pelos dentes. O braço direito e o corpo são erguidos por fios como num teatro de boneços. A figura do corpo trespassado e despedaçador é surpreendente e ressalta a mensagem editorial do jornal de oposição revolucionária em tempos de violência do Estado. A imagem cortante exprime a palavra cortada pela ação da censura. Mas a configuração do corpo retalhador é capaz de ferir a estabilidade do regime de violência. O uso da máscara remete à Comedia Dell’arte e exprime a ambiguidade da representação, uma espécie de teatro de marionetes da violência.
 

A xilogravura de fio de Grillo para Movimento corta a madeira pau-marfim com a goiva em “v” para traçar a sintaxe linear do desenho. O contorno dos desenhos tem as espessura da letra, utilizada pela tipografia, realizando uma espécie de fusão entre o traçado da gravura e a mancha da página do jornal. Mas a partir de junho de 1976, o desenho muda para uma linha delgada e modulada, que o aproxima da caligrafia dos topos da ilustração da imprensa do século dezenove. A gravura torna-se mais nítida, apesar da concentração dos muitos elementos que constituem a narrativa de conjuntura política da imagem, como o desenho de capa, “A Constituinte de 46 – um depoimento de Hermes Lima”. ( 25 de julho de 1977, nº108 ) ( figura 4 ). O ponto de vista se desloca e o foco não é mais centralizador, há o deslocamento do eixo do desenho e pode apresentar-se uma perspectiva aérea da cena representada. A imagem original de Rubem Grillo para Movimento inscreve-se na tradição da arte gráfica latino-americana dos anos 20 e 40, notadamente à gravura de Posada a Siqueiros ( 13 grabados, série de 1938 ), até os gravadores do Taller de Grafica Popular, o TGP, de 1938. Como nas “calaveras” de Posada, o maxilar aberto,  os dentes à mostra e o corpo feito de instrumentos de corte como estrutura do esqueleto, da gravura acima citada, denotam a figura da morte, mas sem a conotação regeneradora da concepção popular mexicana do Dia dos Mortos. O maxilar aberto e os dentes à mostra no grito ou no riso grotesco são um estilema da gravura de Rubem Grillo, utilizado em muitos outros desenhos, nos quais o algoz da repressão é representado, sua matriz portanto é popular. O grande apelo das caveiras de Guadalupe Posada ( 1852-1913 ) é sua origem no imaginário popular do Dia dos Mortos. A utilização do conflito como núcleo da representação gráfica é o fundamento das cenas de alta tensão dramática, que exprimem o gosto pelas narrativas de crimes, adultérios, roubos, vida cotidiana, vidas de santos, estampadas nas capas de volantes, corridos e impressos da cultura popular. A crítica social concentra-se no essencial da representação gráfica, para obter o efeito plástico mais intenso, que constitui sua poética. ( WESTHEIM, 1992, pg242 ) A gravura de Rubem Grillo para Movimento concentra o efeito plástico na dramaticidade da cena narrada pelo texto do jornal, a ficção, os artigos e os editoriais.  
 

No que diz respeito ao Taller de Arte grafica a xilogravura de Rubem Grillo para Movimento apresenta afinidades com a xilo de Leopoldo Mendez ( 1902-1969 ), fundador do TGP. As calaveras de Leopoldo Mendez para o Corrido de Estalingrado exprimem o dinamismo e a tensão dramática do desenho popular de Posada. O primeiro album de Leopoldo Mendez, com 7 litografias, “Em nome de Cristo”, de 1939, refere-se ao assassinato político de professores na luta pelo ensino leigo na ditadura de Porfirio. As imagens são realistas e há forte contraste entre negros e brancos, entre luz e sombra, como na série de Goya, “Os desastres da guerra”. As 40 xilogravuras policrômicas para o livro, Incidentes melódicos do mundo irracional, de Juan de la Cabada, de 1944, exprimem numa linguagem onírica “surrealista” os elementos da cultura maya. A série, Estampas da Revolução Mexicana , de 1947, apresenta um album de 85 gravuras em linóleo cortadas por dezesseis membros da TGP. O objetivo da criação coletiva do Taller de Arte Grafica é a instrução popular a respeito da Revolução Mexicana. O texto da “Introdução” do album preconiza a simplicidade da fatura gráfica como obra didática. A gravura de Mendez para o album, “Liberdade de Imprensa”, é uma alegoria do poder financeiro assentado sobre a base das baionetas da Revolução. A fatura gráfica popular praticada por Mendez não corta grandes planos ou detalhes muito minuciosos, devido às dificuldades de impressão em grandes tiragens pelo Taller de Arte Gráfica. A expressão é sintética para obter clareza de leitura gráfica.
 

O projeto gráfico de Movimento de um jornal popular apresenta semelhanças com o projeto do Taller de Arte Grafica Popular, de instrumento de instrução política. A linguagem do jornal é direta e incisiva nos artigos dos colaboradores e colunistas, apesar da retórica programática dos editoriais e dos textos não assinados. Movimento não é um panfleto de propaganda política, mas busca fazer a análise da conjuntura política do momento da “distensão”, de forma acessível ao leitor comum, deste modo não apresenta matéria de especialista. A sua forma de distribuição por assinatura, venda em banca de jornal, de divulgação e de entrega mão a mão, enfatiza o contato pessoal com o leitor e a instrumentação pedagógica. A ilustração de Rubem Grillo mantém uma relação com o texto escrito do ficcionista, ou do articulista, que não é literal. Mas coopera para a criação da significação da mensagem de forma figurativa. Tal é o caso do artigo de Teodoro Braga, “Acertando o jogo”, ( 16 de maio de 1977, nº98, pg4 ) ( figura 5 ), no qual ele discute a prorrogação dos mandatos dos dirigentes de diretórios dos partidos políticos, como um primeiro passo para a prorrogação dos mandatos dos parlamentares. O desenho expressa de forma metafórica a manobra política do governo para evitar uma derrota política no campo parlamentar e adiar as eleições para governador. Para comunicar a análise de conjuntura a ilustração vai buscar a referência ao jogo político na configuração da linguagem das mãos no jogo popular de “par ou impar”. A fatura gráfica do desenho destaca-se por um corte brusco, que aproveita a textura da madeira. A assinatura “G” não é a mesma de “Grillo”, mas o corte da maiúscula é igual ao da assinatura habitual do gravador, a autoria está portanto assegurada. O desenhista recorta os dedos dos jogadores dispostos em diagonal, no plano bidimensional, contra o fundo branco estriado pela textura da madeira, obtendo uma gradação gráfica de cinza. O foco do desenho é a luz intensa do centro em branco, para onde convergem os dedos dos jogadores. O indicador da mão direita do apostador colocado no canto direito inferior do quadro interpõe-se e quase toca os dedos indicador e medio do outro jogador, posicionado no canto esquerdo superior do retângulo. O olhar do observador converge para o centro da ação dramática proposta, a manobra política da ditadura em estender o prazo do seu poder. A expressividade do gesto dos dedos dá movimento ao desenho e imprime profundidade ao espaço bidimensional do quadro. A luminosidade do plano de fundo destaca o claro-escuro do primeiro plano dos dedos, detalhados os nós pelo encavo. Evidencia-se a luz do clarão ao centro, o qual exprime a dramaticidade da forma plástica. A linguagem das mãos utilizada pelo artista sobrepõe-se à matéria circunstancial sobre a conjuntura política, como metáfora de uma aposta que transcende o momento. O plano no qual o jogo se dá é intemporal. O dedo indicador da direita que quase toca o outro recorta uma alusão, ainda que distante, à pintura da Capela Sixtina, “A Criação de Adão”, por Michelangelo. O desenho ganha autonomia e amplitude com respeito à palavra escrita e sobrepõe a esta a narrativa visual do livro da “Gênese”. A alusão verificada não é abusiva, pois a origem da xilogravura popular de um Posada está nos livros de santos espalhados pela Igreja no século dezenove.
 

A mesma gravura ilustra na coluna, “Conjuntura”, o artigo , “A velha e a nova distensão”, de Eduardo Neto ( 4 de julho de 1977, nº 106, pg4 ), o qual analisa a principal diferença entre a chamada “distensão” de 74-75 e a atual, que reside no fato de que a oposição está muito maior no momento atual. O autor refere-se à distensão de 1974 com o pronunciamento de Geisel sobre a “ distensão lenta, gradual e segura”, que sepultou então a esperança na abertura democrática. Os resultados práticos da chamada distensão de 74 foram então o acesso do MDB à campanha pela mídia do rádio e da televisão com vistas às eleições de novembro e a suspensão da censura aos jornais: O Estado de São Paulo; Jornal da Tarde; Veja e Pasquim. Mas de lá para cá afirma o articulista as lutas pelas liberdades democráticas não pararam de crescer, como o Congresso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados em agosto de 1974, em defesa do Estado de Direito, a reorganização do movimento estudantil e as greves nas fábricas. A política da distensão do governo militar não é a democratização, mas a busca de ampliação da sua base política para setores liberais para ganhar tempo. Porém as cencessões feitas pressionadas pela crise econômica e pelas lutas sociais não dão estabilidade ao governo, mas estimulam a oposição. O modelo econômico se esgota com o aumento da dívida externa, a inflação e o desemprego. A sociedade civil se organiza, o clero progressista assume a atitude de defesa dos trabalhadores. A situação internacional torna-se adversa aos regimes de direita, o Presidente Carter pronuncia-se pela Defesa dos Direitos Humanos, afirma o jornalista. Portanto, para o autor, a diferença importante em relação a 74-75 é que a situação política da conjuntura atual é favorável às lutas pelo Estado de Direito. A “distensão” atual faz “sondagens” sobre a substituição do AI-5 por “mecanismos constitucionais de defesa do Estado”, a serem aplicadas por um Conselho de Estado. Para o MDB a defesa do Estado tem que assentar-se na Constituição. Mas o movimento popular é contra a incorporação de mecanismos do AI-5 à Constituição. Outra das “possibilidades” aventadas é a transformação do Congresso em Assembléia Constituinte após as eleições de 1978. A dissolução do MDB e da ARENA e a criação de novos partidos é outra possibilidade, a qual visaria dividir a oposição e criar um partido de “centro” à direita. Para concluir, Eduardo Neto declara, que a chamada “Conciliação Nacional” deteria a radicalização da luta da sociedade civil pela democracia e daria prazo para o sistema se perpetuar no poder. A indefinição das propostas do governo a respeito da distensão deve-se ao temor pelo crescimento da oposição. Nada do que foi aventado se compara a uma dupla campanha de mobilização popular pelas liberdades democráticas e pela Assembléia Constituinte, apoiada pelos autênticos do MDB, as quais farão a mudança para o Estado de Direito.
 

A análise de conjuntura não leva em conta as divisões entre os militares da “linha dura” e os setores mais moderados, dentro e fora do governo. Embora já suspensa oficialmente a censura contra o jornal, Movimento não aprofunda diretamente a questão do Estado de Exceção na figura dos militares. Mas o desenho muitas vezes mostra o que a palavra silencia. Na gravura que ilustra os dois textos citados, a linguagem das mãos é eloquente e amplia a compreensão dos bastidores das propostas vazias que caracterizam a distensão, isto é, a manipulação do jogo político. Mas a relação entre imagem e texto escrito expressa-se em linguagem simbólica, a qual solicita a interpretação do leitor. A alusão à iconografia cristã da Criação configurada na Capela Sixtina opera na gravura por deslocamento e substituição, no que diz respeito à representação do toque dos dedos e sua posição no espaço hierático do quadro. A imagem onírica se desprende da correlação com a escrita de circunstância e alcança uma monumentalidade que não está circunscrita ao texto jornalístico. A ilustração ganha uma dimensão plástica própria no espaço da folha de jornal.  A gravura popular tem sua origem na iconografia cristã, portanto não é incongruente que a xilogravura de Rubem Grillo faça alusão à alegoria da Criação, da  perspectiva humanista de Michelangelo. A pintura da Capela Sixtina, “A criação de Adão” é uma imagem vulgarizada pela reprodução fotográfica, faz parte do repertório popular da obra do pintor renascentista. A alusão à pintura na gravura não é portanto, apenas uma elaboração erudita, mas faz parte de um repertório universal de reprodução de imagens de grandes obras de arte, de conhecimento público. No contexto político do jornal é um ícone da liberdade de expressão contra pressões autoritárias.
 

A ilustração de Rubem Grillo para Movimento evolui no decorrer do tempo, assim como o jornal sofre mudanças e crises internas. A primeira gravura para a coluna, “Estórias Brasileiras”, para o conto, “Apelo”, de Murilo de Carvalho, ( 14 de julho de 1975, nº2, pg27 ) tem uma fatura gráfica expressionista: um rato morto contra o fundo da arquitetura urbana. O corte recorta massas e o contraste entre negro e branco é forte. A estilização expressionista enfatiza o impacto emocional. A representação realista logo é substituída pelo traço exagerado e caricatural do humor corrosivo, da ilustração de “Estórias Brasileiras”, “O sol feriu a terra e a chaga se alastrou”, de Vital Santos ( 24 de novembro de 1975, nº21, pg20 ), na qual um violeiro grita seu poema. A sintaxe é linear. A alegoria do modo de produção capitalista surge na vinheta do artigo, “Mudanças no Capitalismo”, de Arthur Mac Ewan, ( 5 de janeiro de 1976, nº27, pg4 ) na qual uma engrenagem mecânica tritura uma figura humana, representada pela metonímia de um pé e uma boca escancarada, que vomita o riso dentro de um saco, frente a uma pilha de outros sacos cheios. Uma escova esfrega o pé e provoca o riso sarcástico, numa associação surrealista entre elementos distantes e díspares. A partir de um certo momento, ( 14 de junho de 1976, nº50, pg9 ) o desenho muda para o corte de uma linha muito fina e modulada, a cena apresenta a interação entre vários personagens e há o deslocamento do foco frontal para uma visão móvil, que pode ser por trás, um panorama aéreo, ou o ponto de vista de baixo para cima, como na ilustração do conto, “O suicídio”, de Odemir Capistrano, ( 7 de fevereiro de 1977, nº84, pg20 ). O arabesco passa a dominar a caligrafia da narrativa visual, como no artigo, “O dilema do MDB”, de Teodomiro Braga e Barbara Hertz ( 14 de março de 1977, nº89, pg14 ) ( figura 6 ). A figura de perfil de uma máscara carnavalesca da Commedia Dell’Arte aparece repetidas vezes, junto com o reclame, “Leia e assine Movimento “, como uma espécie de ex-libris do jornal ( 25 de julho de 1977, nº108, pg13 ). O motivo da máscara aparece ocultando o rosto de vários personagens e serve não apenas para dissimular a identidade da figura, mas para afirmar a perspectiva sarcástica da visão do ilustrador sobre a matéria debatida pelo jornal. O humor corrosivo dissolve a seriedade unilateral do assunto tratado pela escrita e sublinha o grotesco das situações relatadas. A configuração estética do grotesco é fruto do estranhamento, que fundamenta a poética visual de Rubem Grillo. A construção da imagem exige do leitor uma distância crítica na decifração do seu conteúdo. A gravura interfere na leitura literal do texto escrito, por uma visão histrionica dos fatos, e denúncia a farsa da distensão, debatida pelo jornal. A ilustração e a matéria escrita se completam para relatar o cotidiano da política nos anos finais da Ditadura Militar.

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Bibliografia

AGUIAR, Flavio – A palavra no purgatório – Literatura e cultura nos anos 70 São Paulo: Boitempo Editorial, 1997

KUCINSKI, Bernardo – Abertura, a história de uma crise. São Paulo: Brasil Hoje nº5, Ed. Brasil Debates, 1982

KUCINSKI, Bernardo – Jornalistas e revolucionários – nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: EDUSP, 2003

Posada’s Popular Mexican Prints – 273 cuts by José Guadalupe Posada selected and edited by Roberto Berdecio and Stanley Appelbaum. New York, Dover Publications Inc. , 1972

WESTHEIM, Paul – El grabado en madera .Mexico: Breviarios, Fondo de Cultura Económica, 1992



[1] UNICAMP-SP.




1. Movimento, 30 de maio de 1977, nº 100, xilo, Grillo, Rubem


2.Movimento, 5 de janeiro de 1976, nº 27, xilo, Grillo, Rubem


3. Movimento, 13 junho 1977, nº 102, Que capitalismo é esse. xilo, Grillo, Rubem


4.Movimento, 25 de julho de 1977, nº 108, A Constituinte de 46. xilo, Grillo, Rubem


5. Movimento, 16 de maio de 1977, nº 98, Acertando o jogo, xilo, Grillo, Rubem


6. Movimento, 14 de março de 1977,nº 89, O dilema do MDB, xilo, Grillo, Rubem


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Palavra cortante; palavra cortada

 

Vera Maria Chalmers

 

            Este estudo propõe-se a examinar a produção do xilógrafo Rubem Grillo para o jornal, Movimento, de São Paulo, no período de 1975 a 1978. A chamada imprensa alternativa produziu jornais nos quais o desenho ocupou um lugar predominante, como n’ O Pasquim, do Rio de Janeiro, no qual se destacava a colaboração de Henfil. Os pequenos jornais de oposição democrática à ditadura militar usavam o recurso do cômico como resposta à truculência do regime. O desenho integra-se junto com a escrita na produção de uma linguagem de resistência à censura nos meios jornalísticos e à veiculação de propostas de oposição, frequentemente organizadas em frentes, as quais congregavam membros de vários partidos de esquerda, então na clandestinidade. O jornal, Movimento ( 1975-1982 ) é publicado no período da chamada “abertura” de Geisel, sob a vigilância da censura, a qual só irá relaxar para o jornal em junho de 1978, depois que outros jornais já não sofriam a imposição de cortes das matérias escritas e dos desenhos, julgados ofensivos ao regime. Movimento durante sua circulação tem uma vida tumultuada por crises internas entre a direção, a redação e os colaboradores independentes. A intenção programática do jornal acentua-se a partir de 1977 e nos começos de 1980 assume um caráter de folha do movimento sindical. Não pretendo fazer um resumo da história do jornal, mas apenas pontuar determinados momentos para estabelecer a relação entre a obra gráfica de Rubem Grillo para o periódico e o período da sua colaboração para o jornal. No começo da edição de Movimento a colaboração de Rubem Grillo é eventual e divide espaço com outros desenhistas, tais como Loredano e Chicão, entre outros. A partir de 1977 a sua colaboração intensifica-se até sua retirada do jornal em 1979. A ilustração de Grillo destaca-se do conjunto dos desenhistas do jornal por ser xilogravura. Apesar do desenho linear o corte da madeira imprime um relevo escultórico característico da gravura. O traçado da gravura se coaduna com a diagramação do corpo 8 e 9 que compõe o jornal, há a notícia, “Exposições”, ( 17 de outubro de 1977, nº120, pg17 ) de uma exposição do projeto gráfico do jornal e da gravura de Rubem Grillo, no Teatro da Aliança Francesa. Bernardo Kucinski identifica como “estética do feio” o projeto gráfico de Movimento , pelo descuido do acabamento gráfico como manifesto político. ( KUCINSKI, 2003, pg355 ) Ao contrário da proposta de uma folha de caráter popular deformada pela repressão, a gravura de Grillo imprime ao jornal uma qualidade estética à denúncia contundente da censura. O desenho da xilogravura é mordaz e atinge o leitor em contraste com a comicidade da “charge” política e da caricatura humorística, que distende a tensão provocada pela matéria de denúncia, que caracteriza o jornal. A xilogravura de Grillo condensa a linguagem combativa do jornal. A ilustração articula-se numa linguagem gráfica autônoma criadora de significação. O desenho constrói o ícone, o qual muitas vezes diz o interdito do texto escrito. A xilogravura de Grillo é produto do embate da liberdade de criação com a censura política.

            Há várias vertentes para o traço forte da ilustração de Rubem Grillo para Movimento. Uma contribuição importante para o seu desenho é a xilogravura expressionista. A deformação da representação realista e da perspectiva ilusionista pela expressividade dos recursos da linguagem gráfica é um princípio da construção da sua prática artística. A caricatura política reforça este traço do seu estilo expressivo. A xilogravura de tendência expressionista utiliza o contraste sem nuances entre o negro e o branco. A fatura gráfica original de Grillo é o corte da linha delgada em contraposição ao embate brusco com a madeira na gravura de fio e o aproveitamento da textura da madeira na construção da imagem da xilogravura popular. Há várias citações e alusões eruditas na composição de Rubem Grillo, incorporadas ao desenho atual e original. A estilização reforça o aspecto emotivo individual e coletivo dos motivos representados. A sintaxe linear utilizada pelo gravador no corte da goiva em “v” sobre o pau-marfim remete pela sua clareza gráfica à gravura de topo da ilustração do século dezenove. A fatura pessoal de Grillo atualiza as referências históricas na invenção de formas novas para exprimir a critica social contundente.  A produção de uma poética para o meio de massa, embora de circulação restrita da imprensa alternativa, propicia a utilização do repertório convencional da fisionomia popularizada nos periódicos ilustrados do século dezenove. Um estilema da fisionomia desenhada por Grillo para o jornal, a qual tem outras repercussões além da citada, é a boca escancarada com os dentes à mostra na expressão ambígua do grito ou do riso, que enuncia a palavra transgressora, cortante ou cortada, em oposição à censura e ao autoritarismo do regime, apesar da anunciada “distensão”.( figura 1- 30/05/77, nº100,pg2) A página do jornal é o suporte do desenho feito para ser publicado no espaço amplificado de repercussão midiática. O desenho emoldurado pelas colunas do jornal é o porta-voz ambivalente da palavra radical, porque enuncia a simultaneidade da expressão do sério-cômico.

            Uma outra contribuição para a gravura de Rubem Grillo é a estética do surrealismo. A gravura de Rubem Grillo apresenta elementos da verossimilhança, por exemplo, os traços essenciais da composição da caricatura de Geisel, associados a analogias distantes no tempo e no espaço, como o selo de cera dos documentos oficiais do Império. Ou procede pela livre associação de elementos orgânicos e mecânicos, na composição de engrenagens complexas, como as que exprimem a complexidade das relações entre a conjuntura repressiva atual e a reflexão sobre o imperialismo norte-americano, no tríptico, que ilustra o texto, “Mudanças no Capitalismo” de Arthur Mac Ewan ( 5 de janeiro de 1976, nº27, pg4 ) ( figura 2 ) As imagens oníricas são produzidas por condensação e substituição de elementos da construção da imagem. O deslocamento de sentido produz o estranhamento, o qual consititui a imagem poética. A caricatura adquire uma qualidade estética superior à referência do esboço de circusntância. O traço expressivo é acentuado até confundir-se a referencialidade com a imaginação. Como o desenho do tampão com a efígie distorcida de Geisel e sua duplicação na imagem estampada pela figura do militar, a qual reconstitui a referência. A composição é uma operação metalinguística sobre o processo de produzir estampas sob a censura. Tal como o desenho do robô mecânico, formado por instrumentos contundentes, a foice apoiada sobre um livro, o qual serve de base e pedestal à “escultura”, o qual ilustra o artigo, “Que capitalismo é esse?” ( 13 de junho de 1977, nº102, pg8 ) ( figura 3 ) Este representa uma alegoria da censura, figura da qual escorre uma tinta preta escura como o sangue, e apresenta um dorso humano, vestido de paletó e gravata. O rosto é uma meia máscara humana, de olhos tapados por uma tarja preta, e afivelada por chaves de parafuso, uma das quais enfiada pelos dentes. O braço direito e o corpo são erguidos por fios como num teatro de boneços. A figura do corpo trespassado e despedaçador é surpreendente e ressalta a mensagem editorial do jornal de oposição revolucionária em tempos de violência do Estado. A imagem cortante exprime a palavra cortada pela ação da censura. Mas a configuração do corpo retalhador é capaz de ferir a estabilidade do regime de violência. O uso da máscara remete à Comedia Dell’arte e exprime a ambiguidade da representação, uma espécie de teatro de marionetes da violência.         

 A xilogravura de fio de Grillo para Movimento corta a madeira pau-marfim com a goiva em “v” para traçar a sintaxe linear do desenho. O contorno dos desenhos tem as espessura da letra, utilizada pela tipografia, realizando uma espécie de fusão entre o traçado da gravura e a mancha da página do jornal. Mas a partir de junho de 1976, o desenho muda para uma linha delgada e modulada, que o aproxima da caligrafia dos topos da ilustração da imprensa do século dezenove. A gravura torna-se mais nítida, apesar da concentração dos muitos elementos que constituem a narrativa de conjuntura política da imagem, como o desenho de capa, “A Constituinte de 46 – um depoimento de Hermes Lima”. ( 25 de julho de 1977, nº108 ) ( figura 4 ). O ponto de vista se desloca e o foco não é mais centralizador, há o deslocamento do eixo do desenho e pode apresentar-se uma perspectiva aérea da cena representada. A imagem original de Rubem Grillo para Movimento inscreve-se na tradição da arte gráfica latino-americana dos anos 20 e 40, notadamente à gravura de Posada a Siqueiros ( 13 grabados, série de 1938 ), até os gravadores do Taller de Grafica Popular, o TGP, de 1938. Como nas “calaveras” de Posada, o maxilar aberto,  os dentes à mostra e o corpo feito de instrumentos de corte como estrutura do esqueleto, da gravura acima citada, denotam a figura da morte, mas sem a conotação regeneradora da concepção popular mexicana do Dia dos Mortos. O maxilar aberto e os dentes à mostra no grito ou no riso grotesco são um estilema da gravura de Rubem Grillo, utilizado em muitos outros desenhos, nos quais o algoz da repressão é representado, sua matriz portanto é popular. O grande apelo das caveiras de Guadalupe Posada ( 1852-1913 ) é sua origem no imaginário popular do Dia dos Mortos. A utilização do conflito como núcleo da representação gráfica é o fundamento das cenas de alta tensão dramática, que exprimem o gosto pelas narrativas de crimes, adultérios, roubos, vida cotidiana, vidas de santos, estampadas nas capas de volantes, corridos e impressos da cultura popular. A crítica social concentra-se no essencial da representação gráfica, para obter o efeito plástico mais intenso, que constitui sua poética. ( WESTHEIM, 1992, pg242 ) A gravura de Rubem Grillo para Movimento concentra o efeito plástico na dramaticidade da cena narrada pelo texto do jornal, a ficção, os artigos e os editoriais.

No que diz respeito ao Taller de Arte grafica a xilogravura de Rubem Grillo para Movimento apresenta afinidades com a xilo de Leopoldo Mendez ( 1902-1969 ), fundador do TGP. As calaveras de Leopoldo Mendez para o Corrido de Estalingrado exprimem o dinamismo e a tensão dramática do desenho popular de Posada. O primeiro album de Leopoldo Mendez, com 7 litografias, “Em nome de Cristo”, de 1939, refere-se ao assassinato político de professores na luta pelo ensino leigo na ditadura de Porfirio. As imagens são realistas e há forte contraste entre negros e brancos, entre luz e sombra, como na série de Goya, “Os desastres da guerra”. As 40 xilogravuras policrômicas para o livro, Incidentes melódicos do mundo irracional, de Juan de la Cabada, de 1944, exprimem numa linguagem onírica “surrealista” os elementos da cultura maya. A série, Estampas da Revolução Mexicana , de 1947, apresenta um album de 85 gravuras em linóleo cortadas por dezesseis membros da TGP. O objetivo da criação coletiva do Taller de Arte Grafica é a instrução popular a respeito da Revolução Mexicana. O texto da “Introdução” do album preconiza a simplicidade da fatura gráfica como obra didática. A gravura de Mendez para o album, “Liberdade de Imprensa”, é uma alegoria do poder financeiro assentado sobre a base das baionetas da Revolução. A fatura gráfica popular praticada por Mendez não corta grandes planos ou detalhes muito minuciosos, devido às dificuldades de impressão em grandes tiragens pelo Taller de Arte Gráfica. A expressão é sintética para obter clareza de leitura gráfica.

O projeto gráfico de Movimento de um jornal popular apresenta semelhanças com o projeto do Taller de Arte Grafica Popular, de instrumento de instrução política. A linguagem do jornal é direta e incisiva nos artigos dos colaboradores e colunistas, apesar da retórica programática dos editoriais e dos textos não assinados. Movimento não é um panfleto de propaganda política, mas busca fazer a análise da conjuntura política do momento da “distensão”, de forma acessível ao leitor comum, deste modo não apresenta matéria de especialista. A sua forma de distribuição por assinatura, venda em banca de jornal, de divulgação e de entrega mão a mão, enfatiza o contato pessoal com o leitor e a instrumentação pedagógica. A ilustração de Rubem Grillo mantém uma relação com o texto escrito do ficcionista, ou do articulista, que não é literal. Mas coopera para a criação da significação da mensagem de forma figurativa. Tal é o caso do artigo de Teodoro Braga, “Acertando o jogo”, ( 16 de maio de 1977, nº98, pg4 ) ( figura 5 ), no qual ele discute a prorrogação dos mandatos dos dirigentes de diretórios dos partidos políticos, como um primeiro passo para a prorrogação dos mandatos dos parlamentares. O desenho expressa de forma metafórica a manobra política do governo para evitar uma derrota política no campo parlamentar e adiar as eleições para governador. Para comunicar a análise de conjuntura a ilustração vai buscar a referência ao jogo político na configuração da linguagem das mãos no jogo popular de “par ou impar”. A fatura gráfica do desenho destaca-se por um corte brusco, que aproveita a textura da madeira. A assinatura “G” não é a mesma de “Grillo”, mas o corte da maiúscula é igual ao da assinatura habitual do gravador, a autoria está portanto assegurada. O desenhista recorta os dedos dos jogadores dispostos em diagonal, no plano bidimensional, contra o fundo branco estriado pela textura da madeira, obtendo uma gradação gráfica de cinza. O foco do desenho é a luz intensa do centro em branco, para onde convergem os dedos dos jogadores. O indicador da mão direita do apostador colocado no canto direito inferior do quadro interpõe-se e quase toca os dedos indicador e medio do outro jogador, posicionado no canto esquerdo superior do retângulo. O olhar do observador converge para o centro da ação dramática proposta, a manobra política da ditadura em estender o prazo do seu poder. A expressividade do gesto dos dedos dá movimento ao desenho e imprime profundidade ao espaço bidimensional do quadro. A luminosidade do plano de fundo destaca o claro-escuro do primeiro plano dos dedos, detalhados os nós pelo encavo. Evidencia-se a luz do clarão ao centro, o qual exprime a dramaticidade da forma plástica. A linguagem das mãos utilizada pelo artista sobrepõe-se à matéria circunstancial sobre a conjuntura política, como metáfora de uma aposta que transcende o momento. O plano no qual o jogo se dá é intemporal. O dedo indicador da direita que quase toca o outro recorta uma alusão, ainda que distante, à pintura da Capela Sixtina, “A Criação de Adão”, por Michelangelo. O desenho ganha autonomia e amplitude com respeito à palavra escrita e sobrepõe a esta a narrativa visual do livro da “Gênese”. A alusão verificada não é abusiva, pois a origem da xilogravura popular de um Posada está nos livros de santos espalhados pela Igreja no século dezenove.

A mesma gravura ilustra na coluna, “Conjuntura”, o artigo , “A velha e a nova distensão”, de Eduardo Neto ( 4 de julho de 1977, nº 106, pg4 ), o qual analisa a principal diferença entre a chamada “distensão” de 74-75 e a atual, que reside no fato de que a oposição está muito maior no momento atual. O autor refere-se à distensão de 1974 com o pronunciamento de Geisel sobre a “ distensão lenta, gradual e segura”, que sepultou então a esperança na abertura democrática. Os resultados práticos da chamada distensão de 74 foram então o acesso do MDB à campanha pela mídia do rádio e da televisão com vistas às eleições de novembro e a suspensão da censura aos jornais: O Estado de São Paulo; Jornal da Tarde; Veja e Pasquim. Mas de lá para cá afirma o articulista as lutas pelas liberdades democráticas não pararam de crescer, como o Congresso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados em agosto de 1974, em defesa do Estado de Direito, a reorganização do movimento estudantil e as greves nas fábricas. A política da distensão do governo militar não é a democratização, mas a busca de ampliação da sua base política para setores liberais para ganhar tempo. Porém as cencessões feitas pressionadas pela crise econômica e pelas lutas sociais não dão estabilidade ao governo, mas estimulam a oposição. O modelo econômico se esgota com o aumento da dívida externa, a inflação e o desemprego. A sociedade civil se organiza, o clero progressista assume a atitude de defesa dos trabalhadores. A situação internacional torna-se adversa aos regimes de direita, o Presidente Carter pronuncia-se pela Defesa dos Direitos Humanos, afirma o jornalista. Portanto, para o autor, a diferença importante em relação a 74-75 é que a situação política da conjuntura atual é favorável às lutas pelo Estado de Direito. A “distensão” atual faz “sondagens” sobre a substituição do AI-5 por “mecanismos constitucionais de defesa do Estado”, a serem aplicadas por um Conselho de Estado.  Para o MDB a defesa do Estado tem que assentar-se na Constituição. Mas o movimento popular é contra a incorporação de mecanismos do AI-5 à Constituição. Outra das “possibilidades” aventadas é a transformação do Congresso em Assembléia Constituinte após as eleições de 1978. A dissolução do MDB e da ARENA e a criação de novos partidos é outra possibilidade, a qual visaria dividir a oposição e criar um partido de “centro” à direita. Para concluir, Eduardo Neto declara, que a chamada “Conciliação Nacional” deteria a radicalização da luta da sociedade civil pela democracia e daria prazo para o sistema se perpetuar no poder. A indefinição das propostas do governo a respeito da distensão deve-se ao temor pelo crescimento da oposição. Nada do que foi aventado se compara a uma dupla campanha de mobilização popular pelas liberdades democráticas e pela Assembléia Constituinte, apoiada pelos autênticos do MDB, as quais farão a mudança para o Estado de Direito.

A análise de conjuntura não leva em conta as divisões entre os militares da “linha dura” e os setores mais moderados, dentro e fora do governo. Embora já suspensa oficialmente a censura contra o jornal, Movimento não aprofunda diretamente a questão do Estado de Exceção na figura dos militares. Mas o desenho muitas vezes mostra o que a palavra silencia. Na gravura que ilustra os dois textos citados, a linguagem das mãos é eloquente e amplia a compreensão dos bastidores das propostas vazias que caracterizam a distensão, isto é, a manipulação do jogo político. Mas a relação entre imagem e texto escrito expressa-se em linguagem simbólica, a qual solicita a interpretação do leitor. A alusão à iconografia cristã da Criação configurada na Capela Sixtina opera na gravura por deslocamento e substituição, no que diz respeito à representação do toque dos dedos e sua posição no espaço hierático do quadro. A imagem onírica se desprende da correlação com a escrita de circunstância e alcança uma monumentalidade que não está circunscrita ao texto jornalístico. A ilustração ganha uma dimensão plástica própria no espaço da folha de jornal.  A gravura popular tem sua origem na iconografia cristã, portanto não é incongruente que a xilogravura de Rubem Grillo faça alusão à alegoria da Criação, da  perspectiva humanista de Michelangelo. A pintura da Capela Sixtina, “A criação de Adão” é uma imagem vulgarizada pela reprodução fotográfica, faz parte do repertório popular da obra do pintor renascentista. A alusão à pintura na gravura não é portanto, apenas uma elaboração erudita, mas faz parte de um repertório universal de reprodução de imagens de grandes obras de arte, de conhecimento público. No contexto político do jornal é um ícone da liberdade de expressão contra pressões autoritárias.

A ilustração de Rubem Grillo para Movimento evolui no decorrer do tempo, assim como o jornal sofre mudanças e crises internas. A primeira gravura para a coluna, “Estórias Brasileiras”, para o conto, “Apelo”, de Murilo de Carvalho, ( 14 de julho de 1975, nº2, pg27 ) tem uma fatura gráfica expressionista: um rato morto contra o fundo da arquitetura urbana. O corte recorta massas e o contraste entre negro e branco é forte. A estilização expressionista enfatiza o impacto emocional. A representação realista logo é substituída pelo traço exagerado e caricatural do humor corrosivo, da ilustração de “Estórias Brasileiras”, “O sol feriu a terra e a chaga se alastrou”, de Vital Santos ( 24 de novembro de 1975, nº21, pg20 ), na qual um violeiro grita seu poema. A sintaxe é linear. A alegoria do modo de produção capitalista surge na vinheta do artigo, “Mudanças no Capitalismo”, de Arthur Mac Ewan, ( 5 de janeiro de 1976, nº27, pg4 ) na qual uma engrenagem mecânica tritura uma figura humana, representada pela metonímia de um pé e uma boca escancarada, que vomita o riso dentro de um saco, frente a uma pilha de outros sacos cheios. Uma escova esfrega o pé e provoca o riso sarcástico, numa associação surrealista entre elementos distantes e díspares. A partir de um certo momento, ( 14 de junho de 1976, nº50, pg9 ) o desenho muda para o corte de uma linha muito fina e modulada, a cena apresenta a interação entre vários personagens e há o deslocamento do foco frontal para uma visão móvil, que pode ser por trás, um panorama aéreo, ou o ponto de vista de baixo para cima, como na ilustração do conto, “O suicídio”, de Odemir Capistrano, ( 7 de fevereiro de 1977, nº84, pg20 ). O arabesco passa a dominar a caligrafia da narrativa visual, como no artigo, “O dilema do MDB”, de Teodomiro Braga e Barbara Hertz ( 14 de março de 1977, nº89, pg14 ) ( figura 6 ). A figura de perfil de uma máscara carnavalesca da Commedia Dell’Arte aparece repetidas vezes, junto com o reclame, “Leia e assine Movimento “, como uma espécie de ex-libris do jornal ( 25 de julho de 1977, nº108, pg13 ). O motivo da máscara aparece ocultando o rosto de vários personagens e serve não apenas para dissimular a identidade da figura, mas para afirmar a perspectiva sarcástica da visão do ilustrador sobre a matéria debatida pelo jornal. O humor corrosivo dissolve a seriedade unilateral do assunto tratado pela escrita e sublinha o grotesco das situações relatadas. A configuração estética do grotesco é fruto do estranhamento, que fundamenta a poética visual de Rubem Grillo. A construção da imagem exige do leitor uma distância crítica na decifração do seu conteúdo. A gravura interfere na leitura literal do texto escrito, por uma visão histrionica dos fatos, e denúncia a farsa da distensão, debatida pelo jornal. A ilustração e a matéria escrita se completam para relatar o cotidiano da política nos anos finais da Ditadura Militar.

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Bibliografia

AGUIAR, Flavio – A palavra no purgatório – Literatura e cultura nos anos 70 São Paulo: Boitempo Editorial, 1997

KUCINSKI, Bernardo – Abertura, a história de uma crise. São Paulo: Brasil Hoje nº5, Ed. Brasil Debates, 1982

KUCINSKI, Bernardo – Jornalistas e revolucionários – nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: EDUSP, 2003

Posada’s Popular Mexican Prints – 273 cuts by José Guadalupe Posada selected and edited by Roberto Berdecio and Stanley Appelbaum. New York, Dover Publications Inc. , 1972

WESTHEIM, Paul – El grabado en madera .Mexico: Breviarios, Fondo de Cultura Económica, 1992

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