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Machado de Assis e Alain Robbe-Grillet nos meandros do ciúme * E-mail

Maria Helena Martins

A literatura de ficção é pródiga em histórias de infidelidade amorosa e seu correlato, o ciúme romântico. Vou assinalar alguns traços dessa situação, escolhendo uma dupla de escritores, no mínimo, curiosa: o nosso  Machado de Assis e o novelista francês Alain Robbe-Grillet. Tomo o texto mais emblemático do tema, na literatura brasileira, o romance Dom Casmurro (1899), e elejo para contrastá-lo O ciúme (1957), nouveau roman, de Robbe-Grillet. A razão dessa leitura contrastiva se dá à propósito do livro  ...E viveram ciumentos e felizes para sempre, de Donatella Marazziti,   por ocasião de seu lançamento  no Brasil.

 

 

              Pouco mais de meio século separam as duas obras, mas é tempo suficiente para revelar transformações e embates pelos quais  a criação literária passou.  Não se pode  descontextualizar esses escritos, esquecer que entre a existência de ambos aconteceram duas Guerras Mundiais, Proust e James Joyce, Freud  e  Heidegger, tudo isso implicando mudanças radicais no universo social, nas relações interpessoais, no conhecimento do homem sobre si mesmo, nas manifestações artísticas em geral.  Ademais, a constituição de cada um desses textos, por si só, já indica como ambos são histórica e literariamente originados e plasmados por seus autores.  Vejamos então como a questão do ciúme aparece neles.

 

               Machado, em Dom Casmurro, está no ápice de seu domínio de um realismo literário intimista, com pleno conhecimento da criatura-personagem, em suas ambivalências e ambiguidades, insinuações e cismas, deixando o leitor entrevê-las pelas franjas do discurso e nos volteios da linguagem.

 

              O narrador-personagem, Dom Casmurro ou Bento Santiago ou Bentinho, relata sua história em flashback na 1ª. pessoa. Em tom memorialista, com intimismo contido, mostra seu ponto de vista – e só o seu – com suposições, mas sem relatar o que se passa na mente das demais personagens; é apenas um  observador - delas e de suas ações. Diz ele sobre o que vai relatar: “... vou deitar ao papel as reminiscências que vierem vindo. Desse modo, viverei o que vivi (...)  (p9- Martins Fontes, 1988).

   

                 Tudo indica que o leitor, cortejado pelo narrador com chamamentos não raro irônicos, irá acompanhar a narrativa pari passu. Mas esta não é linear e o confessional de fato não será o tom predominante. A ironia e o humor se encarregam de modular eventuais arroubos emocionais ou o confidencial pleno. Até porque, concordando com um velho tenor, está Dom Casmurro ironicamente convencido de que “a vida é uma ópera”, uma representação, ainda que verossímil: “Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor ...”  Mas Bentinho se permitirá essa auto-ironia  lá às tantas.

                  

              Só no capítulo CVII (107) vai registrar uma primeira manifestação ciumenta, íntima e metaforicamente revelada, ao se referir ao mar que teria distraído a atenção de Capitu, enquanto ele lhe falava de astronomia :   “  ... não fora o mar que lhe provocara ciúmes, mas o que poderia estar na cabeça dela”. (p, 264).  Já aí se percebe um processo emocional em construção, não ligado a fatos, mas a conjeturas.    

 

                            Assim se insere o ciúme no contexto ficcional, sutilmente, entremeado de dúvidas que logo dão lugar à certeza. Bentinho, em tom de cumplicidade com o leitor, vai desvelando o que se passa consigo:

              “ Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes                 tão   cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e       dos      anos. Sim,              senhor, continuei. Continuei a tal ponto que o    menor gesto me afligia, a    mais ínfima palavra, uma insistência qualquer. Muita vez só a          indiferença bastava. Cheguei a ter ciúme de tudo e de todos. Um      vizinho, um par de valsa,     qualquer homem, moço ou maduro, me    enchia de terror ou    desconfiança”. (p.279)

 

              Eis um quadro típico da representação do ciúme amoroso, que torna o ciumento um obsessivo, e é esse quadro que a literatura mais sabe explorar, levando, não raro, a  desfechos catastróficos, como o que  anuncia Dom Casmurro:

                            “ Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha   alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta.”         (p.323)

 

              Machado prolonga esse anti-climax numa cena em que – desviando-se da finalidade inicial (matar-se), Dom Casmurro quase obriga o filho a tomar o veneno. Essa cena - e ante  reiteradas alusões do marido a seus amores com Escobar, já então morto -  leva Capitu ao desabafo: “Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos teus ciúmes” (333). E assim fica selado e qualificado o comportamento doentio de Bentinho, por ele mesmo relatado.

 

              Á revelia de um possível desfecho de sangue, dá-se, porém,  um acerto socialmente aceitável: a família embarca para a Europa, de onde Bentinho volta e para onde retorna algumas vezes, até não deixar mais o Brasil, onde recebe o filho, já adulto, quando então declara:    “... posto que a idéia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição”. (346).

 

               E é essa  fleuma que envolve o final da narrativa, embora ele ainda relembre “os olhos de ressaca”, de “cigana oblíqua e dissimulada”.

                

           Passo, então, ao livro de Alain Robbe-Grillet, O Ciúme.  

              O autor pertence ao grupo dos escritores que, nas décadas de 50-60 pretendem desconstruir o romance convencional, criando o nouveau roman.* Este é proposto como uma narrativa em que a história dá lugar a pequenas sequências de acontecimentos sem continuidade cronológica, assim como as personagens não são apresentadas pelo que pensam ou sentem, mas apenas em ações; portanto se trata de um processo bastante diferente do realizado no romance convencional, que enfatiza a perspectiva psicológica, a história, o enredo, como se constata em Dom Casmurro.

 

              O autor joga duplamente com o sentido do título da obra. Por um lado, trata do ciúme (jalousie) de um anônimo (supostamente o marido) que espia sua mulher (identificada apenas como A...) e o amigo que ela recebe,  Franck, segundo insinua o narrador, amante dela. Por outro lado, é atrás de uma persiana (também jalousie em francês) que ele os observa, como se estivesse onipresente. Assim, o esquema do livro pode ser visto como o do clássico triângulo amoroso.

              Cabe aqui assinalar o que escreve Donatella Marazziti,  ao tecer considerações sobre  as origens do vocábulo ciúme:

 

              Em francês, jaloux corresponde ao adjetivo ciumento    (geloso, em    italiano), mas significa também cego e, como         substantivo, jalousie,           além     de ciúme, indica persiana    de barras horizontais, através da qual se pode perscrutar    sem ser visto. Mesmo em italiano, manteve-se o   significado      o substantivo gelosia para conotar  persiana. (...e viveram   ciumentos & felizes para sempre. Porto Alegre, Casa Editorial        Luminara, 2009, p. 62-3)

 

              O  narrador anônimo, atrás da persiana, se põe a descrever detalhada e obsessivamente o cenário dessa trama ciumenta, como se uma lente substituísse seu olhar. Ou, como declara Robbe-Grillet, como se o narrador estivesse ausente do romance, “sua consciência é inteiramente voltada para o exterior e ele não observa jamais sua própria interioridade”  ( p. 86 –Préface de . Alain Robbe-Grillet, Préface à une vie d'écrivain, Editions du Seuil, 2005.)

             

 Entre a descrição de cenas e cenários e pequenas sequências narrativas, repetidas com mínimas variações e pequenos diálogos, se desenrola o relato.                                                                                                                            Trata-se de um texto exemplar do nouveau roman. O que prevalece é a descrição pura e simples de ambientes ou de ações, como a de A ... penteando os cabelos e o observador ou suposto marido  circulando por espaços da casa, aparentemente sem outro propósito que o de descrever  tudo em pormenor.( p. 38-39):

              Desfeito totalmente o penteado, a escova desce com um ruído         leve      que lembra o sopro e a crepitação. Mal chegada     embaixo, muito    rapidamente, ela sobe em direção à cabeça, onde             golpeia com    toda a sua superfície os cabelos, antes de deslizar de novo        sobre    a massa negra , oval cor de osso cujo cabo, bastante curto, desaparece quase    totalmente       na mão que o segura com firmeza. ( O       Ciúme. Rio de Janeiro,   Nova Fronteira, 1986, p. 38.

 

              Embora a questão do ciúme não se explicite, o título do livro e a perspectiva voyerista levam a pensar em triângulo amoroso.  Mas não se espere uma história, isto é, uma narrativa de acontecimentos cronologicamente apresentados. O texto começa assim:

 

              Agora, a sombra da coluna – a coluna que sustenta o ângulo           sudoeste do telhado – divide em duas partes iguais o ângulo            correspondente da varanda. Essa varanda é uma larga galeria               coberta, cercando a casa por três lados. Como sua largura é igual na parte central e nas partes laterais, o traço da sombra       projetada pela coluna chega exatamente à quina da casa;        mas detém-             se ali, pois apenas as lajes da varanda são         alcançadas pelo sol, ainda               demasiado alto no céu. (....)Assim,          neste instante, a sombra da            beirada do telhado coincide exatamente com a linha, em ângulo       reto, que formam a    varanda e as duas faces verticais da quina da casa.

              Agora, A... entrou no quarto, pela porta interna que dá para o corredor central. Ela não olha para a janela escancarada,    por onde, desde a porta, veria este canto da varanda. Voltou-  se agora    para a porta a fim de fechá-la. ( Id. Ibid. p.7)

 

              O narrador de Robbe-Grillet parece utilizar, para registrar a cena, a impessoalidade da “objetiva”, isto é, da lente da câmera fotográfica ou de filmar.  Tal recurso tornaria o registro mais imparcial, não teria a subjetividade do observador humano, como a  que perturba a visão do narrador-personagem de Machado.

             

              Esse exercício de disciplina obsessiva ( patológica diriam os analistas) tende a irritar o leitor, que fica em suspenso, à espera de algo mais que não acontece... ou acontece a meias.  Enfim, cabe ao leitor construir a história com indícios espalhados pelo texto, como pistas para desvendar um acontecimento, num romance policial. Melhor, num filme policial, pois o que mais se sabe é dos exteriores, do cenário, e nada do que se passa na mente das  personagens.

             

              Os diálogos e atitudes de A... e Franck parecem  artificiais e dissimulados, como se soubessem estar sendo vigiados. Cenas, gestos e falas se repetem qual flashes cinematográficos. Aliás, como cineasta, Robbe-Grillet usa recursos semelhantes. Basta lembrar Ano passado em Marienbad (1961), dirigido por Alain Resnais  com roteiro de Robbe-Grillet.

 

              Enfim, aos poucos o desconjuntado de fios soltos começa a fazer sentido ao leitor. Uma carta que A... escrevia passa para um bolso de Franck ...(p.60) O anônimo narrador espera A ...na casa vazia... Mas A ... não volta... Nem Franck. Ambos, porém, acabam  voltando e, num ritornello,  tudo recomeça ...

 

              Os narradores de Machado e de Robbe-Grillet  estão longe de terem vivido “ciumentos e felizes para sempre”. Bentinho não supera seu ciúme, se deixa envolver pelo ceticismo e desencanto, enquanto o narrador anônimo de Robbe-Grillet permanece enredado em sua sondagem obsessiva e doentia. O que aconselharia  Dra. Donatella a cada um deles?

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Texto a partir de comunicação em mesas-redondas em São Paulo ( 09/11/09) e em Porto Alegre ( 13/11/09) por ocasião do lançamento do livro ...E viveram ciumentos e felizes para sempre, de Donatella Marazziti

 

** Trata-se de novidade  relativa, Kafka, James Joyce, o teatro do absurdo já apresentavam algumas dessas características. Nathalie Sarraute, Michel Butor, Marguerite Duras, Samuel Beckett são alguns desses autores que buscavam, enfim, romper com a escritura tradicional.