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Rastros de um processo de criação *  E-mail
CYRO MARTINS - CM- os anos decisivos: 1908 -1951

Maria Helena Martins


Como professora de Teoria Literária e Literatura Comparada, sinto curiosidade detetivesca para perseguir indícios nos textos que me levem a uma análise e interpretação da obra de modo o mais pertinente possível. Isto é, que caracterizem minha investigação pela objetividade, pois  a literatura, como as artes em geral, dá margem a que nossa imaginação facilmente se desligue da concretude da obra, de sua coerência interna e de seus referencias mais imediatos. Daí minha admiração pela Crítica Genética, o que  se intensifica devido à obra de Cyro Martins, meu pai, ser acolhida pelo DELFOS/PUCRS, com a possibilidade de se tornar objeto de estudos desse teor. Mas, ao contrário do que seria de se esperar, nesta circunstância,  tal admiração é embalada por recordações minhas como leitora e interlocutora do autor, numa aproximação despretensiosa de aspectos de seu fazer literário.

   

Reporto-me à praia de Atlântida, no litoral do Rio Grande do Sul.  Cyro Martins passava lá as férias de verão. E lá também era seu espaço preferencial para escrever ficção. Com frequência caminhávamos à beira-mar e o assunto era o que ele estava escrevendo. Não tratava explicitamente de seu processo de criação, mas relatava o que estava em processo. E eu ouvia, deliciada, a história, os diálogos de personagens, detalhes do cenário em que acontecimentos se passavam.   

        

Antes do almoço, na hora do aperitivo, ele reunia a família e então lia um trecho do que estava escrevendo. Lembro que nas primeiras vezes em que ouvi quase exatamente o mesmo que escutara à beira da praia, dias antes, ficava surpresa. Como ele escrevia quase tal qual o que me havia contado?! 


Era assim, quando o tempo e as férias permitiam. Divertia-se quando podia observar a reação da gente, gostava de dialogar sobre seus escritos. Deixava-nos à vontade para fazer comentários, mas dificilmente acatava palpites.                                                                                                                                                     

Um dia, quando tomávamos o café da manhã, notei que estava quieto, pensativo.  Perguntei-lhe o que havia. Devagar, foi dizendo que estava chateado. Teria que matar o Joãozinho, personagem especialmente querido do romance que escrevia, Gaúchos no Obelisco(1984). Também lamentei, Joãozinho era uma simpática  e  desimportante  figura, embora capaz de  alterar o percurso narrativo. Mas Cyro Martins encerrou o assunto. Dias depois veio me dizer, faceiro, que achara uma solução. Joãozinho continuaria vivo.

Tais registros são amostras de exteriorização do processo criativo; daquilo que o autor, consciente ou inconscientemente, permitia que se captasse do que se passava com ele e de seu fazer literário. Contudo, havia também momentos em que, intencionalmente, expressava sua visão desse processo. No caso, também lembrando o episódio da personagem Joãozinho, reproduzo uma consideração sua, em Na curva do arco-íris,   colhida por Juarez Guedes Cruz, sobre a relação do autor com personagens que cria. Referia-se ao espaço de elaboração interna, que se torna livre das amarras da lógica e do planejamento, a ponto da personagem ir,

 

.....  aos poucos, perdendo a humildade de escrava, de  criatura  sem  vontade, vai pescoceando, esticando a soga, parando p´ra comer pastos verdes da beira do caminho, o autor não quer se precipitar, não quer ser tirano, e ela vai tomando corpo e agarrando o freio nos dentes, até que endurece o queixo e nos arrasta para os rincões da imaginação que somente gaudérios conhecem.

             

Esse recurso alegórico, revestindo o processo de criação com um volteio de linguagem gauchesca e de senso de humor, sem contudo desvendar mistérios insondáveis, na certa é proposital.

 

Seguidamente passava seus manuscritos para eu revisar antes de enviá-los ao Editor. Impressionava-me a limpeza dos textos, escritos à mão ou datilografados. Ressaltava a fluidez da escrita, com pouquíssimas hesitações de escolha vocabular, reconstrução de idéias, reestruturação de frases – sem falar na correção gramatical do texto. Esses aspectos corroboram a probabilidade de elaboração prévia ponderada. Fato é que quando fala sobre a sua escritura, percebe-se a coerência entre o que o autor conta sobre o processo de criação e a obra realizada. Para ele, só com o espaço reservado à maturação e decantação da vivência “o sangue poderia ser fisgado na alma”, sendo necessário “afundar” antes de escrever, deixar-se conduzir pelo fluxo dos sentimentos e pensamentos. 2

    

Vejamos um exemplo de texto ficcional.  Encontrei-o , há pouco, numa pasta, entre os guardados do autor, incompleto, inédito.  Algo raro, para quem a “gaveta era fatal”. Isto é: para ele, muito tempo da escrita guardada, sem vir a público, mataria o próprio desejo de escrever e publicar.  Mas esse texto ficou lá, talvez para ser retomado... Intitula-se  Lonas dos Ventos e começa assim:

 


 

 

                  Essa paisagem e esse contexto tão facilmente visualizáveis estavam distantes da vida do autor há quase cinquenta anos, como se verificará adiante. No entanto, nessas 3 primeiras páginas do texto, em flashback, apresenta-se um panorama ambiental e da vida de personagens do campo, com muita vivacidade. O autor dispõe elementos básicos para o leitor entender o momento histórico, o desenrolar dos acontecimentos e mesmo antever percalços na bucólica vidinha de Manoel e Juventina.  Minha escolha dessas páginas se dá por essas razões e por serem inéditas, retomando a temática campeira na obra de Cyro Martins e mostrando um tanto do processo de escrita do autor. 

                  Há indícios de que seria uma novela, um romance, talvez. Junto ao

texto encontrei um recorte com anotações de nomes de personagens

e suas identificações:

 

 

Mas curioso mesmo foi um outro recorte, onde se encontra a origem do título do texto: Lonas dos ventos. 

Imediatamente lembrei-me da obra que eu trouxera de Portugal de presente para meu pai, em 1991.3 Uma coletânea de inéditos de Fernando Pessoa, organizada pela pesquisadora portuguesa Teresa Rita Lopes, intitulada Pessoa por conhecer. Aliás, logo também confirmei a data da anotação de Cyro Martins, ao deparar, no verso do mesmo recorte, um pedaço de relatório de assembléia de condôminos do prédio em que ele morava, ocorrida a  14 de outubro de 1991.

 

Esses indícios ficam a mexer com a imaginação do leitor, atiçam a curiosidade - são como mostras homeopáticas a acenar com possibilidades de descobertas ...

Porto Alegre, 23 de novembro de 2010.



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Notas

1.Excerto de comunicação apresentada no X CONGRESSO INTERNACIONAL DE

CRÍTICA GENÉTICA - PUCRS – 22 a 27 de novembro de 2010 . Sessão 3: Da idéia à forma: os rastros pluridimensionais do processo de criação – 24/11/2010.

 

2 Reproduzo aqui referência de entrevista de Cyro Martins ao Jornal Universitário de Porto Alegre, em agosto de 1988., citada por Juarez Guedes Cruz, em texcto sobre a relação do escritor CM com a escrita( cf.:http://www.celpcyro.org.br/v4/coluna/ColunaCELPCYRO.JuarezCruz.

Fisgandoosangue.htm )

 

3 LOPES, Teresa Rita. Pessoa Por Conhecer. Vol I e II. Lisboa. Editorial Estampa,

1991.