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MULTICULTURALISMO E IDENTIDADE NACIONAL | Imprimir |  E-mail

Ligia Chiappini
Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada


O multiculturalismo pode ser visto como um sintoma de transformações sociais básicas, ocorridas na segunda metade do século XX, no mundo todo pós-segunda guerra mundial. Pode ser visto também como uma ideologia, a do politicamente correto, ou como aspiração, desejo coletivo de uma sociedade mais justa e igualitária no respeito às diferenças. Conseqüência de múltiplas misturas raciais e culturais provocadas pelo incremento das migrações em escala planetária, pelo desenvolvimento dos estudos antropológicos, do próprio direito e da lingüística, além das outras ciências sociais e humanas, o multiculturalismo é, antes de mais nada, um questionamento de fronteiras de todo o tipo, principalmente da monoculturalidade e, com esta, de um conceito de nação nela baseado. Visto como militância, o multiculturalismo implica em reivindicações e conquistas por parte das chamadas minorias. Reivindicações e conquistas muito concretas: legais, políticas, sociais e econômicas.

Para a maior parte dos governos, grupos ou indivíduos que não conseguem administrar a diferença e aceitá-la como constitutiva da nacionalidade, ela tem de estar contida no espaço privado, em guetos, com maior ou menor repressão, porque é considerada um risco à identidade e à unidade nacionais. Mas não há como negar que, cada vez mais, as identidades são plurais e as nações sempre se compuseram na diferença, mais ou menos escamoteada por uma homogeneização forçada, em grande parte artificial.

O multiculturalismo é hoje um fenômeno mundial (estima-se que apenas 10 a 15% das nações no mundo sejam etnicamente homogêneas). Costuma, porém, ser considerado um fenômeno inicialmente típico dos Estados Unidos, porque este país tem especificidades que são favoráveis à sua eclosão. Essa especificidade é "histórica, demográfica e institucional". Mas, outros países que não necessariamente têm as mesmas condições - as quais, segundo Andrea Semprini, em Multiculturalismo (EDUSC, com tradução de Laureano Pelegrin), são: a existência de instituições democráticas, de uma economia pós-industrial em via de globalização e de uma população heterogênea - também apresentam esse fenômeno. Entre esses, Canadá, Austrália, México e Brasil, especialmente devido à presença de "minorias nacionais autóctones" por longo tempo discriminadas. Canadá e Austrália têm sido apontados como exemplares, devido a algumas conquistas fundamentais e relativamente recentes. Mesmo na Europa, nos lembra Semprini, há minorias que hoje reivindicam seu reconhecimento e, às vezes, como no caso dos Bascos na Espanha, de forma violenta. Conflitos e contradições também se encontram na França e na Alemanha. De acordo com Semprini, na França, o caso do véu islâmico fala por si só e, na Alemanha, a discussão interminável sobre a integração dos turcos e o direito à dupla nacionalidade volta sempre, mesmo que, hoje, disfarçada no que o partido democrata cristão vem chamando de Leitkultur - definido por uns como cultura de referência alemã, à qual os imigrantes deveriam se adaptar (como defendeu, levantando polêmica, Friedrich Merz, presidente do CDU-CSU, em outubro de 2000), e por outros, mais radicalmente, como cultura dominante.

Os estudos sobre a situação nos Estados Unidos mostram um descompasso entre os discursos e as práticas, o risco de se utilizarem as bandeiras multiculturalistas como forma de segregação em guetos dos incômodos diferentes e reivindicantes. O multiculturalismo, assim, vira paliativo. Isso é compreensível sobretudo no quadro histórico em que se deu, desde o século passado, o tratamento da imigração nesse país, através do chamado melting pot de alguns e do desmantelamento das identidades de outros, considerados inassimiláveis. Essa situação se arrasta até o presente, ainda que camuflada (Maria Helena, eu substitui disfarçada por camuflada, porque a nota introduzida acima traz uma construção muito parecida com esta).

Deve-se reconhecer, porém, que a chamada Ação Afirmativa, defendida por uns e atacada por outros, parece ter conseguido, apesar de todos os seus limites, algumas conquistas que, hoje, ameaçam se perder, conforme nos explica Angela Gillian, em "Um ataque contra a ação afirmativa nos Estados Unidos - Um ensaio para o Brasil", que integra o volume Multiculturalismo e racismo: Uma comparação Brasil-Estados Unidos (editora Paralelo 15, organização de Jessé Souza).

No caso dos índios que resistiram ao grande massacre, a defesa dos princípios e ações multiculturais tem levado a uma retomada da visibilidade da herança indígena, provocando uma revisão crítica do passado, tentativas de reparação e, da parte de muitos cidadãos, a busca e reconhecimento de suas origens direta ou indiretamente ligadas a essa herança étnica e cultural. Mas o sonho americano da democracia, com igualdade de oportunidades e de direitos, desmentia-se e volta e meia torna a desmentir-se no apartheid dos negros e dos latinoamericanos. Um caso recente - noticiado pelo Jornal da Tarde, em 16/11/00 ("Herbert viveu o 'sonho americano'. Agora, vai para albergue no Brás"), e pela Folha de S.Paulo, no dia 20 do mesmo mês ("Brasileiro deportado recebe duas propostas de trabalho em SP") - mostrou como é difícil a um jovem brasileiro integrar-se na sociedade norte-americana, mesmo que para lá tenha sido levado bebê, por pais adotivos que eram cidadãos do país. O jovem João Herbert, hoje com 22 anos, foi deportado por ter-se envolvido com drogas, como ocorre com muitos jovens em todo o mundo nessa idade. De volta ao Brasil, sem saber português e sem conhecer ninguém aqui, Herbert passa a identificar-se como brasileiro, já que, excluído do paraíso que para ele se tranformou subitamente em inferno, adota o critério: "a gente é o que nasce". Cuidadoso na crítica ao sistema norte-americano, não deixa de acusar: "Eles tratam os latino-americanos de forma diferente".

Aliás, sobre a diáspora brasileira e as deportações, uma matéria publicada na revista Época, em 13/11/00, intitulada "Sagas inglórias", evidencia quão fechadas para as pessoas são as fronteiras abertas para as mercadorias, contradição para a qual um crítico agudo como Chomsky não cessa de apontar (A minoria próspera e a multidão inquieta, editora da UNB). Segundo a reportagem da revista Época, o número de brasileiros deportados no ano 2.000 foi de 1.359 pessoas contra 177 no ano de 1999. Todos sentindo-se roubados de sua identidade, como seres de um lugar onde é cada vez mais difícil ser.

Andrea Semprini nos explica que "se as causas das controvérsias multiculturais vão longe na história dos Estados Unidos, somente nos últimos dez ou quinze anos esta problemática tem-se tornado objeto de vivo debate social e político." E ele coloca a questão que se põe para todos nós: "Por que agora? Por que o multiculturalismo, de repente, tornou-se assunto da moda e objeto de polêmicas tão violentas?" (Multiculturalismo)

Sua resposta passa por uma análise das transformações por que passou e passa a sociedade norte-americana, sobretudo a partir dos anos 60, quando se processa o movimento pelos direitos civis, contra a segregação racial. Como em muitos outros lugares do mundo, são dos anos 60 que sopram os ventos da abertura multicultural, do reconhecimento dos direitos das chamadas minorias e da luta pelos seus direitos.

Mas entre a integração formal dos negros, latino-americanos e índios (mas também mulheres, homossexuais e outros grupos sistematicamente discriminados) na sociedade do bem-estar e da democracia e a integração real, muitos senões atrapalharam e continuam atrapalhando, pois a população branca, em grande parte conservadora de uma cultura de longa data racista e segregacionista, não aceita isso com tanta facilidade. Por outro lado, o alargamento da base social com a assimilação, mesmo que mais teórica do que prática, mas facultada legalmente, dos antes inassimiláveis, provoca uma reconfiguração do quadro econômico e social do país. Parte da classe média cai do paraíso e parte menor reforça sua posição nele pela concentração da renda. Aumentam os níveis de pobreza e se repete um outro tipo de apartheid: pelo menos 20% da população fica à margem do sonho americano, inacessível para eles.

Em conseqüência, os conflitos das minorias não se dão apenas com a maioria, mas entre elas próprias, transformadas umas para as outras em bode expiatório de sua exclusão social. Esse é apenas um dos desafios que o mundo global e multicultural enfrenta hoje com melhores ou piores condições de manter a paz entre os diferentes que tentam conviver num mesmo território.

Os teóricos do Multiculturalismo costumam opô-lo à Modernidade, a cujo discurso homogeneizador se contrapõem o pluralismo, o hibridismo, a interculturalidade e os discursos e valores de fronteira. Faz parte dessa crítica à Modernidade, a crítica à noção homogeneizadora de nação e de identidade nacional. Em troca, fala-se da nação como um constructo, como uma invenção com base em mitos, cuja narrativa silencia fraturas e contradições.

Mas há quem considere que, na América Latina, nem as nações são homogêneas nem a modernidade é linear, mas palco de múltiplas temporalidades que nunca foi possível disfarçar de todo. E as reflexões menos simplificadoras sustentam que a identidade, uma vez inventada e incutida por gerações e gerações, tem uma positividade para o bem e para o mal, servindo tanto para justificar a violência contra outras nações como para defender as mais fracas - econômica, política e militarmente - contra as mais poderosas. Ou seja, essas reflexões, com as quais me identifico, reconhecem que as identidades são históricas e relacionais, mas ainda identidades. Elas também reconsideram como fator enriquecedor o múltiplo e cada vez mais múltiplo pertencimento dos indivíduos, suas ambivalências, as identidades ambíguas que se combinam: continental, nacional, regional, local, de idade, de gênero, étnica, profissional e de classe. A diversidade cultural e étnica é vista como desafio para a identidade da nação, mas também como fator de enriquecimento e abertura de novas e múltiplas possibilidades.

Um pensamento dicotômico, muito presente em nossos dias e contraditório a toda a vontade de liberdade e relativismo, opõe sistematicamente a classe social à etnia e à cultura, mas há também quem volte a considerá-la com o devido peso. Refiro-me àqueles estudiosos que não querem esquecer o grande apartheid do globo que nesta América do Sul se faz triste realidade quotidiana: entre quem tem para viver e até para esbanjar e quem mal tem para sobreviver. Quem não esquece o papel da classe, tampouco esquece que a queda do muro de Berlim não significou a queda de todas as barreiras que permitisse aos cidadãos do mundo ir e vir livremente e que as alianças econômicas dos grandes têm como contraponto, paralelamente, as barreiras à imigração. A globalização resolveu e resolve sempre quem interessa importar e quem é preciso deportar.

Para uma estudiosa de literatura como eu, interessa pensar um pouco mais o problema do multiculturalismo na educação e nos estudos da linguagem (caberia aqui mencionar o esforço do politicamente correto de "purificação da língua" que, muitas vezes, reforça a tendência de os indivíduos se contentarem apenas com a reformulação do discurso em lugar da realidade), da crítica e da produção de manuais escolares, com atenção ao modo como são aí representadas as chamadas minorias (negros, índios, mulheres, homossexuais, entre outras) e às novas disciplinas e/ou áreas de pesquisa introduzidas nos cursos de humanidades nas universidades do mundo inteiro: sobre literatura e cultura negra, sobre mitos e narrativas indígenas, sobre mulheres ou, mais recentemente, sobre gêneros, entre outros.

Um aspecto que me parece importantíssimo é o da patrulhagem ideológica na língua, na literatura, no cinema e em outras manifestações culturais que, em nome de uma ética igualitária de respeito ao outro e à sua auto-estima, na verdade o encaram de modo condescendente, infantilizando-o, inibindo sua capacidade de luta e defesa pelo que realmente interessa. Nesse mundo da ética do politicamente correto, faz-se silêncio sobre certos valores básicos para a convivência plena do indivíduo consigo mesmo e com os outros, com a natureza e com a sociedade, entre esses o direito à e o gosto pela beleza das coisas bonitas que se fazem sem pressa, devagar, como querem os índios de Darcy Ribeiro.

A busca de normas e códigos perfeitos, da linguagem ao comportamento, sufoca toda espontaneidade, das relações amorosas à arte. O recurso aos tribunais é usado para tudo. Banalizam-se as relações humanas; banaliza-se a Justiça. Casos como o ocorrido em 2000, de um menino suíço acusado de abuso sexual nos Estados Unidos, entre outros tantos, mostram a "penetração do discurso jurídico na esfera privada", que concorre para o duplo distanciamento do indivíduo, em relação a si mesmo e em relação aos outros. Essa sociedade, ao mesmo tempo puritana e hipócrita, ameaça tornar cada homem e cada mulher em um monstruoso "super-ego". Como estudiosa da literatura e apreciadora das artes, confesso que me preocupo, porque sem "ego" e sem "id" não há arte, nem literatura.

Não é ocasional o fato de o debate multicultural nos Estados Unidos ter lugar nos departamentos de literatura e estudos étnicos e não nos de sociologia ou filosofia, porque a literatura sempre deixou dialogar a contradição e tematizou os estereótipos. Mas se a policiarmos, engessaremos o que ela tem de criativo e que possibilitou isso. Fala-se de uma crise da modernidade, presa de suas próprias promessas, que não consegue cumprir quando mais gente quer entrar no paraíso. Fala-se em mudança do paradigma político para o ético, em revigoramento de outros - do econômico, cultural, étnico, nacionalista, religioso -, mas não se fala no paradigma estético. Por que razão o paradigma estético não é mais tema das Humanidades? Porque os ricos têm vergonha do belo? Porque os pobres o acham supérfluo? Porque ele tende a banalizar-se no utile e porque é este que vende? Mas isso nada tem de novo.


(texto apresentado no 1º Encontro Fronteiras Culturais e transcrito na Revista de Literatura CULT/46. São Paulo, junho de 2001)