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De Volta a Freud I | Imprimir |  E-mail

Cem anos foram suficientes para o cinema criar uma mitologia moderna com tudo a que tem direito: histórias, lendas, sagas, deuses e heróis. Como em toda mitologia, nos identificamos mais com certas histórias e personagens, naquilo que mostram o que somos ou o que gostaríamos de ser.

Eu tenho uma dessas, no argumento de De volta para o futuro, o primeiro da série. A história em si não é nova. A criação de uma máquina para viajar no tempo e o retorno a uma época passada para alterar algum fato que virá mais adiante é um mito recorrente na ficção escrita e filmada, sendo que nesta última, a transposição do tempo visualizada, causa um impacto maior. É fácil compreender o significado dessa repetição. É a persistência de um desejo onipotente que nos permitiria, como aos deuses, ter o controle da incessante e inequívoca passagem do tempo.

Esse argumento, nos atraentes e sedutores padrões hollywoodianos (um mito moderno), aliado ao toque de sensibilidade e inteligência do roteirista e das produções de Spielberg (outro mito moderno), adquire nuances psicológicas bastante interessantes em De volta para o futuro. Um jovem viaja no tempo da década de 80 à de 50, e tem a oportunidade de disputar com o pai, àquela época ainda um rapaz, o amor da mãe, então uma jovem começando a despertar a sua feminilidade para o mundo. Por circunstâncias da história, esse jovem, de uma forma magnânima, e também para preservar a sua vida futura, dá uma força para o encontro definitivo dos genitores, ao ajudar o apagado e inibido pai a se aproximar da exuberância da fogosa mãe. Essa trama edípica bem humorada, ou a interpretação que faço dela, certamente foi fundamental para o sucesso do filme, e para o fato de ser o melhor da série que se seguiu.

Na minha volta no tempo, a cena edípica seria outra. A Praça Onze aqui no Rio de Janeiro, era um lugar de encontro dos judeus da década de 40. Apesar da vida renascendo - já consigo entender assim o encontro dos meus pais - aquele ambiente era carregado de melancolia e luto por causa das terríveis cinzas da II Guerra ainda no ar. A minha fantasia, talvez por defesa, eu a realizaria mais distante no espaço e no tempo. Está certo, vocês venceram. Com certeza por defesa. Eu iria a Viena, na primeira sociedade psicanalítica, em uma das suas famosas reuniões científicas, em alguma quarta-feira entre 1908 e 1910. No dia em que eu lá chegasse, estariam todos lá: Freud, Abraham, Eitingon, Ferenczi, Jung, Jones e outros.

Eitingon está perplexo. Quer saber porque alguém vem de tão longe "do Novo Mundo", para participar de uma reunião "que discute coisas talvez estranhas para o senhor", ele frisa bem esta frase.

Ele certamente queria dizer que não percebia o porquê de aborígenes brasileiros, pessoas que andam semi-nuas no meio de animais selvagens em contato íntimo com a natureza, terem algum interesse na Psicanálise. Eu explico que apesar das dimensões continentais, a Psicanálise no Brasil é muito difundida e, ouso dizer, tem muitas contribuições originais. "Ah, é? E o que vocês discutem lá em Buenos Aires?", pergunta Ferenczi ao mesmo tempo que tenta conter o riso zombeteiro com o polegar pressionando o queixo para cima, o indicador contendo o zigoma e o dedo médio como mordaça nos lábios, na postura que se tornaria emblemática para a técnica. "Imagino que os senhores discutem se o paciente deve ou não tirar o sombrero quando deita no divã", Jung fala isso a sério, como um severo professor alemão inquirindo sobre as falhas de um sistema filosófico complexo. Jones tenta conciliar, "vamos deixar o nosso visitante falar, pode ser que um dia um de nós queira escrever uma biografia do Professor, e é importante se colocar fatos pitorescos". Abraham não move um músculo. Os outros aguardam fora da sala o término da entrevista comigo para começar a reunião científica.

Irritado, resolvo que não vou aceitar calado a humilhação, nem por tudo que eles virão a representar e nem pela gratidão que será a nossa dívida com eles. Faço questão de mostrar que com brasileiro não há quem possa. É nessa relação ao desprezo dos outros que se forjam os grandes heróis dos filmes. Digo a eles que no Brasil, o nosso leque de interesses nos assuntos psicanalíticos é bastante amplo, querem saber? Muitos questionam a importância do conflito entre instintos, tanto para a formação da personalidade quanto para a gênese das patologias; cada vez mais enfatizamos a relação do bebê com a mãe no desenvolvimento normal e as falhas desta relação influindo no desenvolvimento patológico; essa relação do bebê com a mãe se estabelece no mundo interno do indivíduo formando o que nós chamamos de objeto interno, e que nós entendemos ter um papel estruturante mais importante que o do Complexo de Édipo; isso não quer dizer que a função do pai é secundária, pelo contrário, ele é fundamental na separação progressiva da mãe com seu bebê; os senhores já devem ter percebido que nessa concepção a psicologia da mulher é entendida de uma forma diversa à do homem, devido à identificação da menina com a primordial função materna; em relação aos quadros clínicos, também não os concebemos como resultantes de conflitos no desenvolvimento da sexualidade, mas como expressões de falhas no desenvolvimento emocional primitivo, ou como dizem algumas correntes, na estruturação do ego, enquanto outras falam na estruturação do self, o que pode parecer um detalhe, mas provoca inúmeras discussões quando não brigas sérias; na técnica terapêutica, evidentemente também temos algumas contribuições, por exemplo, nós aceitamos que as vivências emocionais do analista diante do seu paciente são importantes para a compreensão do que se passa no mundo interno deste.

Com um sorriso nos lábios, que o meu ar pretensamente humilde não consegue disfarçar, é a minha vez de tripudiar. Eu digo a eles que até haveria mais o que expor sobre a Psicanálise no Brasil, mas a minha vinda a Viena não tinha essa finalidade, e sim conhecê-los e sorver da sabedoria de grandes mestres. Olho para eles como quem espera a aprovação. Eitingon não me encara. Ferenczi não precisa mais da ajuda dos dedos, os maxilares trincados de raiva não querem mais abrir os lábios. Jung parece segurar com a mão esquerda um insistente espasmo que lhe estendia o braço direito, tal como alguns iriam caluniá-lo posteriormente. Jones, que secretariava a reunião, faz um gesto de não estou anotando, não estou anotando.

Abraham continua impassível.

Quais as conseqüências desse acontecimento?

A história da Psicanálise seria outra, ou então o impacto da minha visita os obrigaria a tomar certas providências para que não se alterasse o curso visto como natural. Fariam um pacto secreto, um comitê de íntimos como os cavaleiros de Carlos Magno, e aquela situação ficaria guardada entre eles porque a Psicanálise não estaria preparada para a divulgação daquele encontro. Tudo o que comentassem sobre o fato ficaria registrado, mas o conteúdo dos escritos só poderia ser revelado muitos anos após a morte deles, intrigando gerações de psicanalistas que especulariam sobre que segredos precisavam permanecer tão bem guardados.

Ou então... Assim que acabo de falar, o professor Freud, que ouviu a tudo atento e calado, dirige-se a mim, irritado. "Doutor, nós agora iremos chamar os outros que aguardam fora para a reunião científica das quartas-feiras. O senhor pode assisti-la porque seria injusto não permitir a participação de alguém que veio de tão longe. Mas, por favor, não abra a boca para não criar outra situação embaraçosa para o senhor. Há muita gente propensa a achar que a Psicanálise se presta a muito charlatanismo. Eu não conheço o Brasil, nada sei sobre a sua terra e sua gente, mas pelo que ouvi aqui, não parece ser um país sério."

E eu termino aquela viagem com cara de complexo de castração. E nem por isso acho que a volta ao tempo não valeu a pena. Conheci aqueles homens notáveis, a história continuou a mesma, mostrando que era assim mesmo que tinha que ser ou que pôde ser, e ninguém vai precisar reapresentar trabalho para qualificação. E no fim das contas, ainda ficamos sabendo a verdadeira origem de uma frase que há décadas atormenta a nossa auto-estima nacional.


Texto transcrito, com autorização do autor, de Intervalo Analítico ,agosto de 2000, p. 4


Bernard Miodownik
Psiquiatra e Psicanalista