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Tapeçaria com poucos fios E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

 

 

 

 José Onofre *   

 

O pampa. Essa imensidão que desconhece suas próprias fronteiras, com seus ranchos de barro de longe em longe, suas taperas que já foram ranchos, semi-destruídas pela fuga ou expulsão dos moradores, os pequenos cemitérios, por vezes uma tumba perdida na imensidão. E os vilarejos, acanhados, sem passado e sem futuro, como eternizados em sua mediocridade. Esse é o pampa, a campanha, território da literatura de Cyro Martins, que mostrou a grandeza do cenário com a miséria e a falta de perspectivas dos gaúchos exilados em sua própria terra. É a miuçalha da campanha - pequenos arrendatários, modestos chacareiros, peões sem emprego - que se vê obrigada a sair do campo para encontrar emprego nas vilas e cidades e nada encontrando, vivendo de bicos, mergulhando na miséria e na marginalidade. O comércio perde seus fregueses, lojas fecham, bolichos se resumem a vender cachaça, bolacha e fumo. Mas as fazendas se expandem, há mais gado no campo, os ranchos desocupados viram taperas e o pasto para engorda dos rebanhos tem mais espaço.

Porteira Fechada, publicado em 1944, é o segundo volume da trilogia do "Gaúcho a Pé", antecedida por Sem Rumo, de 1937, e encerrada com Estrada Nova, em 1953. Nesta trilogia emerge uma questão social de valor histórico inestimável. Como um morador do pampa, lá nascido e criado, o autor conhece a vida da campanha e foi acompanhando, ao longo dos anos, a transformação que ela sofreu. Viu seu despovoamento crescente, a urbanização que não era mais do que a concentração da miséria até então espalhada. Mais tarde, já médico, teve o olhar adulto, a experiência profissional e emocional diante das conseqüências da mudança social causada pelas novas relações entre patrões e empregados no campo. Mas isto é só o princípio.

Porteira Fechada é o livro mais duro de Cyro Martins. O poeta desce ao inferno, na viagem inevitável diante da desolação do que deveria ser o intocado mundo completo, ao mesmo tempo fechado, porque limitado pela geografia das redondezas da casa; ao mesmo tempo infinito espaço, onde a planura só é quebrada pelas coxilhas eternas. Este mundo, como o autor, perdeu a inocência e se vê diante da versão concreta de uma mudança de ciclo das atividades humanas. O cenário, apenas o de uma terra devastada, é também o do agrupamento precário dos deserdados da terra, um número de pessoas que sequer chegou ao momento moderno da estatística. Eles são os personagens que Cyro Martins arrancou deste cenário desolador. João Guedes, capitão Fagundes, Maria José, João Biga, os fantasmas que vagueiam por esse Hades sem heróis, apenas pequenos guerreiros derrotados na batalha mais elementar: conseguir casa, comida, emprego, firmar os pés no chão. Mas isto também está interdito a eles, a cidadezinha não tem como absorvê-los.

Numa leitura nesse nível, o romance de Cyro parece um gesto de rebeldia social, uma resposta, com as armas de que dispõe, a profunda repugnância que lhe causa a abominação em curso (então, como agora). Mas o romance jamais se submete a esse sentimento de repulsa, que tão bem exprime. Ele se submete só e unicamente ao processo de construção do texto, ao ato de se tornar romance. E esta construção é de minuciosa elaboração. Cyro faz uma tapeçaria com poucos fios, mas o resultado tem a dimensão de um painel, sem perder o detalhe, a pessoa, o personagem e sua dolorosa experiência para os buracos mais fundos de uma planície que já é um inferno. E cada um é mostrado nos momentos mais íntimos e decisivos de sua decadência e degradação. "Porteira Fechada" não é apenas uma referência à interdição de um acesso, um caminho fechado para chegar a uma estrada que signifique uma libertação da chaga social e, ao mesmo tempo, do inferno pessoal. É também o impedimento da fuga, da saída, do recomeço, bem como o símbolo perfeito da cesura da consciência, do embotamento que reduz as pessoas a chegar às suas próprias fontes de energia que lhes restituam um motivo para viver, para continuar a luta. A poética antecipa os temas básicos da psicanálise a que o autor chegaria anos depois. O livro mostra a vocação que alimentaria, para sempre, vida e obra de Cyro.

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* José Onofre
Jornalista e Crítico Literário